Kendrick Lamar entrega o maior testamento do hip-hop no século 21
Por Maurício Ângelo
Da Movin’Up
Pouquíssimos artistas tem a capacidade de, em pleno 2015, gerar um verdadeiro fenômeno cultural. Kendrick Lamar é um deles. Sucedendo o hypadíssimo good kid, m.A.A.d city, de 2012, To Pimp a Butterfly chegou com ares de revolucionário, quebrando recordes imediatamente: 9.6 milhões de streamings apenas via Spotify no primeiro dia de lançamento.
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De súbito, o mundo caiu aos seus pés: a nota média para o disco no Metacritic, que reúne textos do mundo inteiro, são incríveis 96 pontos em 100. Kanye West, não exatamente conhecido por sua política de boa vizinhança, se derreteu: “Kendrick é uma inspiração. Obrigado pela vibração e pelo espírito. O que você transmite e a maneira como você faz isso são presentes para o mundo”.
É fácil entender por que. Com o risco de cair em hipérboles típicas de lançamento, creio ser razoável afirmar que To Pimp a Butterfly é o maior testamento do hip-hop no século 21 até aqui. Nem Stankonia (2000), do Outkast, Supreme Clientele (00), do Ghostface Killah, Like Water For Chocolate (00), do Common, The Blueprint (01), do Jay Z, Madvillainy (04), do Madvillain, A Piece Of Strange (05), do CunninLynguists, Donuts (06), do J Dilla, My Beautiful Dark Twisted Fantasy (10), do Kanye West, enfim, nenhum destes reúne as características que To Pimp A Butterfly congrega.
Da capa às letras, passando pela sonoridade riquíssima, temos uma infinidade de camadas e de leituras possíveis. Com este disco, Lamar sai da mediocridade permeada por alguns ótimos momentos para entrar no panteão das principais vozes da música negra da atualidade, que precisava urgentemente de um expoente desse quilate.
Da sintomática abertura com o sampler de “Every Nigger Is a Star” (Boris Gardiner) e a participação de George Clinton, possivelmente a maior influência para o hip-hop desde a sua criação, Kendrick entrega uma obra complexa, desafiadora e corajosa.
Seja em “King Kunta”, “These Walls”, “u”, “Alright” ou “Momma” (e seu swing espetacular), a estonteante “Complexion (A Zulu Love)”, o excelente single de “i”, Lamar se sobressai terrivelmente entre a produção atual. Há tudo aqui: hip-hop, soul, funk, jazz (e a participação de Robert Glasper, um dos melhores em fazer esse amálgama de estilos), rock, eletrônico, experimentalismo, pop.
E 2Pac, a figura espiritualmente onipresente em quase todo hip-hop que veio depois dele, aparece em “Mortal Man”, o encerramento, numa entrevista imaginária. To Pimp a Butterfly é aquilo que todos os grandes discos são: ambicioso, multifacetado, com muito mais significado e expressão do que é possível resumir numa mísera resenha.
Numa das melhores disponíveis, Matthew Philips escreve:
To Pimp A Butterfly exige um comprometimento extra. Mesmo a atenção mais casual para as letras podem desvendar a complexidade da crítica de Lamar sobre o racismo institucional, o capitalismo de consumo, a cultura hip-hop, a justiça, e as suas próprias escolhas como artista, como homem negro, e como ser humano. Embora alguns críticos reconheçam que as miríades de personas vocais de Lamar e seus pontos de vista líricos lhe permitem abordar essas questões de vários ângulos (resultantes, para alguns, em desorganização e fragmentação), poucos têm procurado captar o peso do álbum nas aparentes investigações paradoxais de suas principais questões.
O que se segue é uma tentativa de ler o álbum numa narrativa subjacente, uma história que une todas as camadas de crítica do disco em um todo coerente. To Pimp a Butterfly oferece nada menos do que uma narrativa dialética da relação entre a consciência revolucionária constantemente emergente da cultura negra e o materialismo cru e a institucionalização que ameaçam destruí-la. Ao fazer isso, o álbum se organiza em torno de três grandes pólos: dinheiro, poder, e o indivíduo, o navio de consciência.
Cada frase do disco, cada música se potencializa em algo maior, transcende a obviedade da duração a que está confinada. E, claro, é um disco negro até a medula. Faz questão de encarnar isso em todos os aspectos, desde o primeiro segundo.
E ele faz isso mais que qualquer outro disco recente. Se junta a Black Messiah, de D’Angelo e Channel Orange, de Frank Ocean – três discos em 5 anos – que ficarão para a posteridade, ultrapassando (e muito) a barreira de um único estilo, uma única abordagem, um único mundo possível dentro de rótulos pré-estabelecidos.
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=6AhXSoKa8xw
E temos The Blacker The Berry, que não poderia ser mais incisiva (e ótima canção, acima de tudo):
I’m the biggest hypocrite of 2015
Once I finish this, witnesses will convey just what I mean
Been feeling this way since I was 16, came to my senses
You never liked us anyway, fuck your friendship, I meant it
I’m African-American, I’m African
I’m black as the moon, heritage of a small village
Pardon my residence
Came from the bottom of mankind
My hair is nappy, my dick is big, my nose is round and wide
You hate me don’t you?
You hate my people, your plan is to terminate my culture
You’re fuckin’ evil I want you to recognize that I’m a proud monkey
You vandalize my perception but can’t take style from me
And this is more than confession
I mean I might press the button just so you know my discretion
I’m guardin’ my feelings, I know that you feel it
You sabotage my community, makin’ a killin’
You made me a killer, emancipation of a real nigga
The blacker the berry, the sweeter the juice
The blacker the berry, the bigger I shoot
Contando com a produção e a nítida influência de gente graúda como Flying Lotus, Dr. Dre e Thundercat, To Pimp A Butterfly tem tudo já citado e ainda urgência e precisão, apesar dos seus 80 minutos. É um dos melhores e mais relevantes discos dos últimos anos, que ainda será ouvido e debatido exaustivamente daqui em diante.
KENDRICK LAMAR
To Pimp A Butterfly
[Universal Music/TDE, 2015]
10
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* Maurício Ângelo é jornalista, editor da revista Movin’Up e autor do blog Crimideia.