Os contos de fadas são uma das instituições culturais mais perenes da humanidade. Além de sua inegável popularidade, essas obras também possuem um valor literário muitas vezes subestimado. E de todas as narrativas poucas são tão conhecidas quanto as escritas pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.
Os Grimm tem como principal legado o fato de terem compilado histórias passadas através da tradição oral de povos europeus. A Editora 34 lançou recentemente Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos, uma coleção completa desses textos a partir da primeira edição da obra, publicada em dois volumes em 1812 e 1815, e agora traduzidos diretamente do alemão por Christine Röhrig.
O volume traz ainda ilustrações de Rapunzel, Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho. Mas esses textos aparecem aqui em sua forma mais bruta, do mesmo modo como era contado às crianças do século 17. Conforme os anos se passaram esses contos chegaram até nós com um verniz cultural modificado, seja amenizando alguns tons sombrios das histórias, seja adicionando elementos modernos. Mas o trabalho original dos Grimm conserva um fascínio que perdura até hoje, mais de duzentos anos depois.
Tais contos foram os “primeiros conselheiros da humanidade”. Era o modo que os pais, babás e demais cuidadores utilizavam para alertar os pequenos dos perigos do mundo. Por isso, os contos são cheios de uma moral que hoje nos parece violenta, de morte, raptos e traições. Há também a presença ostensiva da fome, que aparece em diversos contos, o que era algo bastante comum naquela Europa empobrecida e desigual.
O mesmo vale para os personagens monárquicos, que era algo do cotidiano das pessoas nos anos 1800. “Muitos dos contos povoavam a memória da minha infância e continuam me encantando até hoje”, explica Röhrig, em entrevista à Revista O Grito!. “Há, porém, entre eles alguns com histórias bastante bizarras e assustadoras, contendo terríveis preconceitos. Tive muita dificuldade em traduzí-los sem prejulgá-los ou censurá-los.”
Além dos contos mais conhecidos, o livro traz muitas surpresas, como microcontos que impressionam pela narrativa concisa e quase minimalista e cantigas, que aqui aparecem em versos como no original. A editora ainda trouxe curiosidades sobre as crenças infantis, que estavam presentes no primeiro tomo da primeira edição.
Nascidos em Karlsruhe, na Alemanha, em 1785 e 1786, respectivamente, os irmãos Grimm tiveram uma infância pobre, mas chegaram a frequentar o liceu Fridericianum e formaram-se na universidade de Marburg, espaços tradicionalmente frequentados pela elite. Foi o professor da dupla, Friedrich von Savigny, que lhes despertou o interesse pela literatura e pela história medieval alemã. Em 1805, Jacob acompanhou Savigny numa temporada de estudos em Paris; uma vez de volta à Alemanha e instalado em Kassel, começou, na companhia do irmão Wilhelm, a coletar contos populares.
No conto original da Branca de Neve a mãe (e não a madrasta) manda o caçador matar a menina e ainda come seu pulmão e fígado com sal
Em 1812, os irmãos Grimm publicaram o primeiro tomo resultante desse longo trabalho de coleta e pesquisa, sob o título de Contos infantis e domésticos (Kinder- und Hausmärchen); o segundo saiu pouco depois, em 1815. Em 1819, uma segunda edição incorporou novos materiais à coletânea. Vivendo juntos por toda a vida, mesmo depois do casamento de Wilhelm, os irmãos seguiram adiante em seu trabalho de pesquisa sobre as antigas literaturas germânicas. Entre 1816 e 1818, publicaram Lendas alemãs; em 1829, Wilhelm lançou seu estudo A saga heroica alemã, ao passo que Jacob publicou o primeiro volume de sua Mitologia germânica em 1835.
A tradução da edição brasileira ficou a cargo de Christine Röhrig, que é amante da tradição literária germânica assim como os Grimm. Conversamos com ela sobre essa nova edição da editora 34 e também dos desafios em traduzir um dos mais conhecidos textos da cultura popular ocidental. “Além do texto original ser em alemão antigo, onze contos eram em “baixo-alemão”, uma língua regional”, conta.
Veja abaixo a entrevista que fizemos com Christine Röhrig:
Quais os principais desafios desta tradução a partir da primeira edição da obra? Pode nos contar um pouco do processo de trazer para o português essa obra que já foi tantas vezes editada?
Durante o trabalho de tradução me deparei com algumas dificuldades: além do texto original ser em alemão antigo, onze contos eram em “baixo-alemão”, uma língua regional. Como os irmãos sempre buscavam preservar o tom popular, registravam o que ouviam, mesmo se fosse em padrão dialetal. Para decifrá-los, construí um “dicionário de verbetes”, e fui vendo as palavras que se repetiam, um trabalho que se assemelhava ao jogo de palavras-cruzadas. Inúmeras vezes recorri a avós de amigas e às próprias amigas, principalmente àquelas cujas famílias haviam se estabelecido no sul do Brasil e que ainda reconheciam palavras que, às vezes, na própria Alemanha, já haviam caído em desuso. Alguns deles consegui encontrar numa versão em alemão clássico, com modificações e “suavizações”.
Um desses contos, “O homem selvagem”, não existe mais em alemão, só em dialeto e na nossa edição em português. É um conto bastante curioso em que um homem selvagem que anda destruindo as florestas é atraído por um velho caçador com uma garrafa de cachaça, outra de cerveja e uma de vinho. Embriagado, acaba sendo capturado. Na época dos irmãos Grimm, o homem selvagem era apresentado como uma pessoa solitária, com forças de gigante e muito cabeludo, que andava nu ou coberto de musgo ou de folhagem e que vivia na floresta ou nas montanhas selvagens e inóspitas. Parece que também ocupava a imaginação das mulheres. Seu modo de vida era considerado algo entre o meio-animal e o primitivo e também paradisíaco, e ligado à natureza.
Outra dificuldade que encontrei foram os diversos trechos em verso, com métricas e rimas. Muitos dos contos povoavam a memória da minha infância e continuam me encantando até hoje. Há, porém, entre eles alguns com histórias bastante bizarras e assustadoras, contendo terríveis preconceitos. Tive muita dificuldade em traduzi-los sem prejulgá-los ou censurá-los.
Quanto ao “estilo” que adotei na tradução, minha orientação/inspiração se encontra nos escritos dos próprios irmãos: “O canto junto à lareira ou perto do forno a lenha na cozinha, os feriados que ainda se festejam, os pastos e as florestas em seu silêncio, e sobretudo a fantasia – são essas as cercas vivas que protegeram essas histórias e levaram a tradição de uma época a outra”.
Você teve contato com outras edições da obra? Qual o principal diferencial dessa compilação feita pelos próprios irmãos Grimm em relação a outras edições desses contos?
Sim, já vi diversas edições, especialmente as alemãs. Acho que a principal diferença da primeira para as demais talvez seja sua crueza e aspereza. Marcus Mazzari lembra também que Jacob Grimm procurou apresentar os Contos maravilhosos infantis e domésticos como a mais genuína manifestação da “poesia da Natureza”, criação espontânea de uma coletividade anônima. Esta primeira edição é certamente a que mais se aproxima dessa concepção. Na passagem oral para a escrita, até que houve certa elaboração estilística e certas padronização e homogeneização, mas isso se deu de forma muito mais acentuada a partir da segunda edição em 1819. Passaram também cada vez mais a moldar as narrativas à leitura das crianças, modificando passagens como a gravidez de Rapunzel, e passaram a culpar as madrastas e não mais as mães de certos crimes, como no conto original da Branca de Neve em que a mãe manda o caçador matar a menina e ainda, como prova de que sua ordem fora cumprida, exige que lhe tragam o pulmão e o fígado da menina, os quais ela irá cozinhar com sal e comer.
Nos últimos anos temos vistos muitas edições de clássicos ganharem novas edições com um cuidado cada vez maior em relação ao conteúdo original. O que achou do resultado dessa edição da 34?
Há alguns anos houve uma edição muito bonita com ilustrações do mestre J.Borges que eu gostava bastante. Também gostei muito do resultado dessa edição do selo Fábula da Editora 34. Sempre acompanhei as publicações da editora e fico muito feliz em agora poder fazer parte de seu catálogo. O projeto gráfico e as ilustrações de Raul Loureiro, que também fez uma releitura da tipografia de 1812, apresentam uma nova perspectiva. A publicação também contou com o rigoroso trabalho de edição de Samuel Titan e da equipe da 34. Sob sua coordenação, pudemos “escovar” o texto, acertar imperfeições, corrigir erros. O texto de Marcus Mazzari no posfácio fecha muito bem a publicação. E, mais que tudo, voltar a trabalhar e a publicar um livro com os meus queridos parceiros Raul e Samuel é uma alegria tremenda.
Os contos dos Grimm sempre exerceram fascínio e suas histórias serviram como argumento (ou inspiração) para muitos produtos da cultura pop. O que esses textos originais têm a dizer para os leitores de 2018, na sua opinião?
Desde o seu surgimento, os contos influenciaram importantes autores como Brecht, Thomas Mann, Günter Grass na Alemanha e diversos escritores em muitos outros países. Chegaram ao Brasil na bagagem de Dona Leopoldina, que trouxe com ela um grupo de intelectuais e artistas que certamente se reuniu, em suas horas de lazer, para ouvir os contos maravilhosos. Aqui os contos se alastraram e viraram literatura de cordel, inspiraram escritores como Mário de Andrade e Guimarães Rosa, e folcloristas como Silvio Romero e Luís da Câmara Cascudo.
Na verdade, os contos maravilhosos se espalharam pelo mundo de tal modo que muitas vezes é difícil identificar a sua origem. Acho mesmo que todos os contos têm um parentesco secreto e que podemos reconhecer semelhanças entre eles em todas as culturas. Por tratarem da essência humana, penso que esses textos são e continuarão sendo fundamentais até o século XXX!
Como surgiu seu interesse pelos autores alemães, sobretudo os dramaturgos?
Minha família é alemã e desde criança tive contato com a literatura, a música e o teatro alemães. Sempre me interessei por histórias e sempre gostei de ouví-las, daí o meu entusiasmo pelos irmãos Grimm. Meu interesse pela dramaturgia talvez também venha do gosto pela oralidade. Sempre gostei das peças de Bertolt Brecht, mas a primeira peça de teatro que traduzi foi de Heiner Müller, um inquietante autor alemão. Depois disso, tive a grande sorte de ser convidada pelo mestre Fernando Peixoto a ajudar a cuidar da coleção de teatro completo de Bertolt Brecht. Ao cotejar as traduções feitas para a coleção, fui aprendendo e me “aperfeiçoando” com tradutores como Roberto Schwarz, Millôr Fernandes, além do próprio Fernando Peixoto. Depois disso não parei mais.
Contos Maravilhosos Infantis & Domésticos [1812-1815], de Jacob e Wilhelm Grimm
[Editora 34, 624 páginas, R$ 98 / 2018]
Tradução: Christine Röhrig