“É de fazer chorar quando o dia amanhece e obriga o frevo acabar…”. A música ecoava pelos alto falantes fanhosos espalhados pelos postes da avenida Dantas Barreto anunciando o fim da folia, mas não era do frevo que Claudionor lamentava o fim. A tristeza que sentia, caminhando meio mole pela madrugada, era pelo fato de que só dali a um ano ele iria poder rever os seus amados caboclinhos. Para o balconista das Casas José Araújo, já beirando os cinquenta anos de idade, carnaval não era Vassourinhas, Pitombeiras, Batutas de São José, mas Carijós, Sete Flexas, Tabajaras, Canindé… A atração que sentia pelo folguedo vinha de longe. Dos tempos de moleque na cidade de Goiana, na Mata Norte de Pernambuco, e da libido excitada quando, ainda adolescente, sentia uma comichão entre as pernas e a cintura quando via os torsos desnudos dos brincantes com seus lindos cocares em formato de diademas e saiotes de penas exibindo as coxas grosas nos desfiles das ruas da cidade. Se os gladiadores das matinês do Cine Rex já mexiam com sua imaginação, os índios em carne e osso das tribos carnavalescas inspiravam muitas punhetas numa touceira fechada de carrapateiras no quintal de casa. Os anos passaram, mas o encanto não desapareceu.
Quando entrou na avenida Guararapes para seguir até a Conde da Boa Vista para ver se conseguia uma condução para casa, Claudionor tomou um choque ao ver caminhando, no lado oposto ao que ele estava, um grupo de brincantes de caboclinhos. Diademas na mão, eles seguiam lentamente enfileirados como se ainda estivessem desfilando diante da comissão julgadora do concurso das agremiações do carnaval, mas sem fazer os saltos e bate-pés das evoluções que executam ao som dos pífanos, caracaxás e dos estalidos dos arcos e flechas que dão ritmo ao bailado. Os homens iam na frente, seguido pelas mulheres e crianças. Claudionor entrou numa espécie de êxtase transcendental ao vê-los, recordou os caboclinhos dos tempos de menino, quando só homens desfilavam, e das suas tentativas de acompanhar, sem nunca obter muito êxito, os passos em que eles, simulando lutas, se abaixam e se levantam como se tivessem molas nas pernas. A fadiga que sentia deu lugar a um frenesi incontrolável. Claudionor apressou o passo e logo estava lado a lado com o grupo. Identificou pelo estandarte, carregado por dois moleques, que eles integravam a Tribo Sete Flexas, do bairro de Água Fria. Um dos homens fantasiados de índio olhou para Claudionor e deu um sorriso. Claudionor olhou para trás e não viu ninguém. O sorriso havia sido para ele.
Ao chegar no pé da ponte Duarte Coelho, o grupo parou e se espalhou pela calçada. Claudionor ficou meio sem jeito quando percebeu que, além de duas mulheres e um senhor idoso que parecia ser o dirigente da agremiação, apenas ele não estava fantasiado. Trajava uma bermuda jeans azul, uma camiseta amarela e uma alpercata de couro surrada. De adereço carnavalesco apenas um colar havaiano com flores de plástico cor de rosa que comprara para ajudar uma vizinha que ganhava um dinheirinho extra fazendo colares e máscaras de papel crepom. Ao ver os cocares, a maioria confeccionado com penas de emas e pavões nas cores verde, laranja e azul amontoados lado a lado, Claudionor ficou embevecido e logo esqueceu sua condição de estranho no ninho. Buscou um cantinho no murinho de cimento que separa a calçada da rua do Sol da margem do Capibaribe e se sentou. “Foi muito lindo o desfile de vocês”, disse para uma moça ao seu lado, enquanto ela pousava o diadema de penas no chão com cuidado para não amassar as bandeiras do Brasil e de Pernambuco bordadas com lantejoulas nas laterais inferiores do adereço. Claudionor não mentiu. Como fazia todos os anos, ele havia assistido todas as apresentações. Chegava cedo nas arquibancadas da passarela da federação carnavalesca de modo a ficar numa posição onde pudesse acompanhar a passagem dos caboclinhos com a melhor visão possível. A tribo Carijós tinha sido a sua preferida aquele ano, mas a Sete Flexas também fizera bonito. Honrou o caboclo da Jurema que dava nome ao grupo com muito fervor. A moça, ao ouvir o elogio, deu um sorriso e disse um obrigado sem muito entusiasmo. Quando Claudionor levantou os olhos se deparou com o homem que sorrira para ele há pouco. Tirou a vista rápido com receio de parecer inconveniente, mas percebeu que ele caminhava, com o arco e flecha em uma das mãos, em sua direção. “Ele é alguma coisa da moça e vem tomar satisfação” foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu. De imediato fincou os dois pés no chão com força para se levantar, baixou a cabeça para não encarar a possível ameaça e já estava pensando o que ia dizer quando o homem o interpelou. “E aí? Vai pagar uma cerveja pro cacique aqui não?”
Claudionor olhou para os pés do cacique. Grandes e robustos. Foi levantando a vista lentamente. Os tornozelos ainda guardavam os adereços de penas. As batatas das pernas e as coxas eram grossas e musculosas. Seu olhar subiu um pouco mais. O cacique já tinha tirado a indumentária de índio e Claudionor se deparou com uma sunga preta apertada e um generoso volume a recheando. Seu olhar seguiu então até o ventre já não tão musculoso, com uma barriguinha de cerveja em formação, e em seguida enquadrou o peito carnudo e bem-feito, coberto por uma camada fina de pelos enroscadinhos amarelados. Finalmente ele mirou o rosto do cacique. A face era dura, de linhas retas, o queixo quadrado com barba por fazer sobre uma pele marcada pelo sol. Claudionor criou coragem e encarou o homem, encontrando um par de olhos castanhos claros de onde emanava a doçura de uma alma boa. Da boca carnuda saiu um “E aí? Bora nessa?”.
Claudionor deu um até logo para a moça que seguiu com os olhos os dois homens se afastando como se perguntasse “o que esses dois vão fazer?”. O pretenso cacique tomou a dianteira, subiu a ponte e rumou em direção a uma carroça encostada na murada que vendia salsichão e bebidas. “Tem cerveja aí meu véio?” perguntou o cacique ainda de longe, espalhando seu vozeirão pela ponte. “É pragora meu chapa. A Brahma tá geladinha”. O cacique virou-se para Claudionor e fez um gesto de indagação com a cabeça. “Pra mim tá bom”, Claudionor respondeu sem muita convicção. Ele não era muito chegado à cerveja, gostava mais de uma cachacinha. O cacique pegou a garrafa. “Essa num tá muito gelada não”. O homem da carroça remexeu o depósito onde as cervejas estavam e catou outra garrafa. Claudionor viu a mão do cacique envolver a cerveja e imaginou aquela mão apertando docemente seu braço. “Essa tá boa, vê dois copos”. Cerveja na mão, copos cheios, sentaram-se no meio fio. O cacique posou o arco e flecha no chão e levantou o copo dele num brinde. O líquido amarelo borbulhante molhou a garganta de Claudionor e pela primeira vez na vida ele achou cerveja uma bebida gostosa. “Faz o quê da vida?”. A pergunta feita assim de supetão surpreendeu Claudionor. Deu um tempo e respondeu: “sou balconista da Zé Araújo lá de Casa Amarela”. O cacique esboçou uma expressão como se pedisse desculpas: “mas que falta de educação. Nem perguntei o nome do cidadão. Ribamar às suas ordens. E o seu?”, fez a pergunta estendendo a mão. Claudionor respondeu, sentindo a mão áspera do cacique tocar sua pele fina. A comichão de outrora ressurgiu.
O cacique gostava de falar. Entre um gole e outro de cerveja desfiou sua vida para Claudionor que ouvia tudo atentamente e encantado. Nos alto falantes dos postes um coral feminino entoava um frevo de bloco… “me apaixonei por você, mas você gosta de alguém, vou procurar esquecer…” Agora, além da comichão nas partes íntimas, o coração de Claudionor tremia. O cacique tinha 42 anos, nascera em Limoeiro, mas viera para o Recife com apenas 16 anos, fugindo de umas confusões que se metera por lá. Conheceu uma mulher mais velha que o acolheu e ficou com ela por alguns anos até ela morrer num desabamento de barreira no córrego onde moravam. “Foi uma tristeza, eu tinha saído pra trabalhar, choveu que só a porra e o barraco que a gente morava desceu ribanceira abaixo”. Claudionor que tinha o choro frouxo, encheu os olhos d’água. “Meu Deus. Mas depois arranjou outra não?”, perguntou, com segundas intenções. “Oxe, nada. Eu gostava muito dela visse. O desgosto me levou pra cachaça. Passava o dia todo com os papudinhos. Fiquei sem trabalhar e quase virei esmoler. Minha salvação foi o terreiro do Sete Flexas. Foi eu entrar na Jurema os caminhos se abriram. Agora todo carnaval eu saio na tribo pra agradecer meu protetor”.
Claudionor queria saber mais. Enquanto o cacique falava, ele já se imaginou dançando no terreiro ao lado dele. Criou coragem e prosseguiu na enquete: “E continua sozinho? Um homem tão vistoso…”. “Tenho uns pés quebrado por aí”, respondeu com um sorriso malandro. “Sou varredor de rua, na prefeitura, sabe? Ganho pouco, dá pra sustentar casa não. Tem mês que tenho que arranjar um dinheirinho por fora, pras farras”, ao dizer isso o cacique deu uma piscadela e segurou o olhar de um jeito que Claudionor percebeu o rumo que aquele encontro podia tomar. O cacique deu outra risadinha marota e perguntou em tom provocativo: “e você homem? Conte aí da sua graça”. Claudionor já queria passar as mãos pelos cabelos crespos do cacique e cheirar o cangote dele. “Casado num é, num tou vendo aliança”. Claudionor balbuciou: “eu já disse, sou balconista de loja”. “Oxe, só isso? Mora onde?”, insistiu o cacique. “No Vasco da Gama, sabe onde é?”. “Demais. Vou muito lá, tem um cabra que varre comigo que mora praquelas bandas”. “Ah é?”, ao perceber as possibilidades que se desenhavam Claudionor respondia por monossílabos por conta do nervosismo instalado no seu espírito. Não conseguia parar de pensar em libidinagens, já se via alisando a sunga do cacique, quando foi despertado dos seus devaneios. “Posso pegar outra cerveja?”. Claudionor percebeu que estava ainda no primeiro copo enquanto o outro já devorara a garrafa. O cacique não esperou a resposta, pegou a cerveja e já foi puxando mais conversa, aproximou-se de Claudionor para encher o seu copo e, quando estava com o rosto bem pertinho ao de Claudionor, disse baixinho “você é entendido, né? Eu já manjei”. Como em um passe de mágica, o recato até então demonstrado por Claudionor sumiu. Quase encostando a boca no ouvido do cacique sussurrou “sou e tou a fim de você”. O homem recuou com ar de conquista. “Oxe, só isso? Vamo conversar”.
A cabeça de Claudionor entrou em convulsão. “Pra onde eu vou com esse homem, Jesus? Carnaval… o D’Ouro vai tá cheio uma hora dessa. O jeito vai ser ir pra pensão de Salete. Lá o povo não demora, entra, trepa e sai. Será que ele vai querer ir lá pro Mercado de São José? É longe que só, o lençol é sujo e pra limpar a seboseira depois só tem papel higiênico. Minha Nossa Senhora! E ele com certeza vai pedir dinheiro pras farras”. Claudionor lembrou que só tinha 50 cruzeiros na carteira. Ia ter que pagar a cerveja, a pensão e o homem. Enquanto Claudionor conjecturava, o cacique emendava história atrás de história e já estava terminando a segunda cerveja. Claudionor ouvia sem ouvir. A empolgação inicial de ter o cacique nos braços se transformara num mar de dúvidas. Mesmo assim ficava comendo com os olhos os músculos dos braços do cacique que ainda tinha um adereço marcando a pele exatamente na divisa entre a parte queimada pelo sol e a parte mais alva do seu bíceps. “Seja o que Deus quiser, eu vou pegar esse homem!”. Mal concluiu sua decisão, um dos moleques que carregava o estandarte da Sete Flexas se aproximou deles. Era um moço magrinho de olhos grandes e vivos. “Seu Ribamar, Seu Ribamar!”. “Que é menino? Oxe! num vê que tou aqui bebendo uma cerva”, reagiu o cacique com rispidez. “Seu Alfaiate mandou chamar. Os ônibus que vai levar a gente chegou”, respondeu o garoto. O cacique deu um salto e ficou em pé. “Eita danou-se! Desculpe aí, mas tenho que ir m’imbora”. Claudionor atônito só conseguiu emitir um “já?”. “Apareça lá no terreiro”, disse o cacique já seguindo o menino. No pé da ponte, os diademas de penas coloridas se mexiam num bailado desordenado e apressado. Claudionor ainda ficou uns minutos sentado com o copo vazio na mão. “Quanto foi moço?” “Foi sete cruzeiros, patrão, se tiver trocado me ajuda”. Claudionor deu o dinheiro, levantou-se com dificuldade e quando ia tomar seu destino o homem apontou para o chão. “Isso é do senhor?”. Claudionor olhou para a calçada e lá estava o arco e flecha do cacique. Olhou em direção a rua do Sol e viu os ônibus, levando a Tribo Sete Flexas, partirem. Pegou então, com ternura, o objeto esquecido. “É meu sim, obrigado”. Retomou seu caminho e lembrou de um velho frevo canção dos Irmão Valença… “Tive um sonho que durou três dias/ Foi um sonho lindo, sonho encantador/ Eu sonhei que tu me conduzias/ Ao castelo azul onde mora o amor”.
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