Uma casa imaginada pode ser considerada uma casa real? Embora eu tenha dúvidas, a casa de João é assim para mim ou, sendo mais preciso, é a única maneira pela qual me é permitido vê-la, pois nunca pude ir até ela. Dessa forma, em vez de tijolos, cimento, telhas, peças de cerâmica, a casa de João, para mim, é feita de fragmentos que vagam pela minha memória. Ela existe a partir de algumas poucas fotos e lembranças de coisas que ele me falou. E agora que eu não posso mais vê-lo, fico querendo encontrá-lo na minha imaginação, na casa que inventei para ele.
A minha casa de João é uma casa pequena, em uma rua sem saída em uma comunidade perto da beira de um rio. Como tantas outras casas da periferia, ela foi erguida em uma ocupação, em um pequeno terreno com várias outras casas perfiladas, encostadas ao muro de um motel. A parte frontal da casa eu lembro direitinho como é graças ao Google Maps. João, aos risos, me mostrou, certa feita, a imagem da sua rua postada pelo site onde dava para ver a casa e ele encostado no portão. Na foto, a frente da casa, na verdade, resumia-se a um grande portão de metal com a pintura gasta. Segundo João, depois do portão tem um pequeno terraço, depois a sala, um quarto, uma cozinha e, nos fundos, um banheiro e uma pequena área coberta. A casa não tem quintal! Ela acaba no muro do motel. Foi assim que João me falou. E a casa não é dele. Foi sua mulher quem ocupou o terreno e a construiu. Quando eles brigam, a primeira coisa que ela fala é para ele sair da casa. Ele me disse que depois disso todo dinheirinho que ele consegue, guarda um pouco para fazer pequenas reformas, pintar as portas, ajeitar o portão para ver se ela deixa de botar ele pra fora de casa.
A casa de João é de tijolos sem reboco. Isso eu também sei por que eu vi uma foto dele dentro de casa, de bermuda e sem camisa, no Facebook, com a parede nua ao fundo. O piso dos cômodos, desconfio que seja de cimento, sem cerâmica. Na sala eu sei que tem uma televisão enorme, dessas de quarenta e tantas polegadas em cima de um rack, acho que é assim que chama esses móveis onde se colocam os aparelhos de televisão. Em algum lugar tem uma TV de tubo. A antiga. Ele me disse que não ia jogá-la fora. Tem também um sofá com almofadas, mas não sei qual é o tamanho e nem a cor desse sofá. Da cozinha também não sei muita coisa. Deve ter uma geladeira branca. Toda casa tem uma. E um fogão, claro. Como a casa só tem um quarto, deduzo que nele dormem ele, a mulher e a filha. Mas, desse quarto não tenho a menor ideia de como ele seja. Dele, nunca vi foto e nem ouvi uma só palavra. Não sei se tem guarda-roupa, se tem cômoda, quadros na parede. Nada. Também nunca quis pensar muito como era esse quarto. Achei melhor ficar sem saber.
Ah! Na casa de João tem plantas. Ele gosta de plantas. Ele me disse que tem umas duas ou três caqueiras com pés de bromélia. Ele até me deu uma mudinha, alguns meses atrás. Mas, onde ficarão essas plantas? Encostadas no muro do motel? João também gosta de gatos. Ele disse que três deles vivem por lá. Eu consigo ver os gatos caminhando por dentro da casa, roçando seus corpos nos tijolos, se esgueirando pelo portão para ir para a rua. E o banheiro? Como será? Eu sei que não tem chuveiro elétrico, pois ele me falou que banho em sua casa é só de água fria.
Já ia esquecendo. Como todo mundo nos dias de hoje, João tem um computador. Um computador que ele mesmo montou. Comprou um monitor, uma fonte, um HD e outras peças e botou o bicho pra funcionar. O computador fica numa mesinha num cantinho do terraço. E tem também uma cadeira que ele diz ser ergométrica. Não sei a cor do tecido da cadeira, se é vermelha, se é preta, capaz de ser amarela. Ele adora a cor amarela, disse que quando tiver um carro, vai ser amarelo.
É tarde da noite. Estou outra vez com insônia. Fecho os olhos e invento que estou diante do terraço da casa de João. Sinto-me espiando por uma brecha do portão. Por ela vejo João sentado numa cadeira amarela, de olhos grudados na tela do computador jogando San Andreas, um game de aventura e ação. Continuo divagando. Olho para dentro da casa e está tudo escuro e em silêncio. Um gato passa perto de minhas pernas e solta um miado. Vejo João virar o rosto por uns segundos, mas voltando-se rápido para as teclas do seu computador. Na tela do monitor, imagino o desenho de um jovem tatuado disparando tiros contra um carro em movimento. Reabro os olhos e avisto o vaso, com as bromélias que João me deu, por fora da janela do meu quarto. Uma flor lilás, viva e cintilante até alguns dias atrás, começou a murchar. Fico triste, mas me conformo. Sei que amanhã retornarei a minha casa de João.
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