Do Ceará ao Mali, passando pelo Rio de Janeiro com a parada final, claro, no Recife. Com shows de Getúlio Abelha, Deize Tigrona, Djely Tapa, Joyce Alane e Afoxé Omô Nilé Ogunjá, a segunda noite do Rec-Beat consolidou que o DNA do festival é justamente o de esperar o inesperado. Essa amálgama surpreendente de gêneros musicais, formatos de apresentações, artistas de origens das mais variadas e públicos aparentemente tão distintos já é tradição no festival que completa 27 anos em 2022. Como num modo aleatório nos aplicativos de música, as apresentações surpreenderam o público do Cais da Alfândega na noite deste domingo (19), que se deixou levar pelo fluxo dessa viagem sonora e visual com começo, meio e fim apoteótico.
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A ancestralidade do Afoxé Omô Nilé Ogunjá, grupo recifense do Ibura, abriu a noite com uma apresentação emocionante. A força das percussões, a delicadeza das vozes e o encanto da dança celebraram as matrizes africanas junto à plateia que, mesmo ainda tímida, já estava se entregando. Em seguida foi a vez de Joyce Alane, jovem cantora de 24 anos que integra a nova cena de música pernambucana. Seu sucesso surgiu durante a pandemia com vídeos acústicos gravados em sua casa e compartilhados nas redes sociais.
Do virtual das telas dos celulares para os encontros reais do Carnaval, seus fãs marcaram presença e estavam com as letras das canções autorais já lançadas na ponta da língua. Além de suas próprias músicas, como “Leão”, “Pausa”, “Foi um prazer” e “Contramão”, que misturam pop com soul, Joyce apostou em versões próprias de bregas clássicos do Recife. Foi inclusive com um cover de “Dizem que sou louca”, da banda Kitara, que ela viralizou nas redes. Uma apresentação bem amarrada e com uma presença de palco segura, Joyce Alane mostrou que só tem a crescer – nas redes e muito mais para fora delas.
Na mesma medida que está na essência do Rec-Beat trazer nomes da música local que estão despontando, também está o fato da curadoria se propor a integrar ao line-up artistas internacionais ainda pouco (ou nada) conhecidos do público recifense. A chegada da malinês-canadense Djely Tapa no palco por volta das 22h foi, por si só, um acontecimento. Nascida na região de Kayes, no oeste do Mali, Djely carrega consigo a tradição dos griots, contadores de histórias e transmissores das culturas locais. Os 40 minutos de show passaram rápido demais e o público estava em uma hipnose com a potência de Djely, revelando uma sintonia recíproca bonita de ser ver e de se sentir.
Em entrevista após o show, ela pontuou que o fato de ser uma guardiã da cultura sabe pelo que seu povo passou e como ele se reencontra no Brasil. “Sabendo nossa trajetória entendo essa ligação tão forte com o Brasil. Temos a mesma ancestralidade e isso eu senti desde o momento em que meu avião pousou no Recife. É minha primeira vez no Brasil! Sei que tem também griots aqui, ver a apresentação do Afoxé mais cedo e me deu a certeza que estou em casa no Brasil. Não falamos a mesma língua, mas a música nos une.”
Pelo amor de Deize
Uma das atrações mais aguardadas da noite, Deize Tigrona chegou com a plateia já completamente aquecida e sedenta graças à apresentação de seu parceiro musical, DJ Mu540, originário da baixada santista e conhecido na cena trap e funk nacional. O Cais da Alfândega se transformou em uma imensa pista de dança que só fez ferver ainda mais quando Deize iniciou os versos de “Monalisa”, faixa de seu último disco, Foi eu que fiz (2022). Logo em seguida foi a vez de “Injeção”, música que fez a funkeira carioca despontar, cerca de 20 anos atrás.
A relação de Deize com o Recife é antiga e forte. No palco, ela chamou a cidade de “meu país” e saudou amigos dos bairros de Casa Amarela, Ibura e do Coque. Emocionada de estar de volta, ela falou sobre a saudade que estava do público local e, de presente para quem também estava com muita saudade dela, entregou um show impecável, reverenciando não apenas sua própria obra como também todo o funk carioca do início dos anos 2000. Um pot-pourri com clássicos como “Agora eu sou solteira”, “Atoladinha”, “Adultério” e “Elas estão descontroladas” tomaram nova vida na sua voz e astral incomparável. “Prostituto”, “Vagabundo”, “Bondage” e “Sadomasoquista”, músicas próprias que revelam a maior marca de Deize, a sagacidade nas letras e a sinceridade ao revelar os próprios desejos, arremataram a grande aula de safadeza e de liberdade que foi seu show.
A energia deixada por Deize foi o gancho certeiro para a entrada da última atração da noite, Getúlio Abelha. Teatral e comprometido até a última gota de suor com a performance, o cantor e compositor do Piauí radicado no Ceará fez uma chegada triunfante do meio do público até o palco. Com um corpo de baile e uma banda afinadíssimos entre si, Getúlio fez uma apresentação instigante do início ao fim, se jogando no canto e nas coreografias à la Companhia do Calypso e Limão com Mel. O humor escrachado e inteligente, uma das maiores características das suas letras, também esteve presente o tempo todo nas pausas que dava para conversar com o público.
Ele contou sobre a primeira vez que esteve na cidade (pós desilusão amorosa e em pleno Carnaval), do seu primeiro show no Rec-Beat, cinco anos atrás (“a diferença é que agora vocês estão sabendo cantar minhas músicas”) e ainda protagonizou um momento subversivo e amoroso ao chamar quem quisesse para passar pela grade e subir ao palco. Cerca de 20 fãs formaram duplas para dançar forró e se jogar nos braços de Getúlio, com direito a selinhos e declarações mútuas de admiração. Foi em coro que a plateia cantava as músicas do primeiro álbum do artista, Marmota (2021). “Tapuru”, “Sinal Fechado”, “Voguebike”, “Vá se lascar!” e os já clássicos “Laricado” e “Tamanco de fogo” integraram o setlist. Uma noite marcada pela entrega completa dos artistas com seus fãs, provando que não há fronteiras para a música e que é possível, sim, ir do afoxé a um forró/pop/brega em uma noite com muita linearidade e paixão.