O No Ar Coquetel Molotov realizou a sua 24ª edição no último sábado (6) com ingressos esgotados e shows de Urias, Gaby Amarantos, Don L, Jambre, Zaho de Sagazan, entre outros. Por mais um ano, o festival comprovou o sucesso de sua proposta de trazer ao seu público mais do que uma excelente curadoria de bandas (que é o mínimo que esperamos de todo bom festival), mas uma experiência completa que tem muito mais a ver com estilo de vida, atitude e experiência viva de curtir o encontro.
O novo espaço do Campus da UFPE, por trás do Teatro da UFPE, se mostrou mais uma vez perfeito para a proposta. Os fãs veteranos do festival se recordam de que tudo começou ali, com shows no teatro (uma ousadia à época), mas o No Ar de então tinha um verniz “indie” que se manteve colado à sua personalidade por anos. A produção, no entanto, soube se adaptar às mudanças no cenário musical e acompanhou as transformações do mundo para alcançar novos públicos. Isso se reflete na audiência atual, muito formada por pessoas na faixa dos 20 e poucos anos, com uma diversidade de corpos e identidades bem evidente.
A presença jovem no Coquetel Molotov (ou em qualquer festival mais antigo, na verdade) é um forte indicativo de sucesso e de renovação de público. A maioria das pessoas que estavam ali curtindo os shows não tinham nascido ou eram crianças quando o Teenage Fanclub tocou no Teatro da UFPE no longíquo ano de 2004. Com essa vigilância constante para as inovações no pop e as mudanças sociais no mundo, o No Ar pode se manter relevante por mais décadas adiante.

Shows pra todos os gostos
Os shows novamente se dividiram em três palcos, o principal que leva o nome do festival, o Kamikaze, voltado à música eletrônica e a Concha Acústica. Todos estavam bem adaptados às suas escalações de artistas e tudo funcionou de maneira bem coerente com a proposta de cada espaço.
Duas ressalvas, porém: o som das batidas do Kamikaze por vezes “vazava” para as bordas do palco principal, mas sem chegar a comprometer a experiência de quem estava ali. E teve o atraso de algumas atrações, que prejudicou quem fez uma “escala” para tentar curtir ao máximo shows nos três espaços (mas era uma maratona complicada, obviamente).
A apresentação do Terno Rei foi uma das primeiras do dia e foi marcada pelo afeto. Apesar de ser um dos primeiros shows do Palco Concha, os fãs da banda paulistana, que voltou ao festival após seis anos, estavam lá às cinco e meia da tarde, cheios de energia, para acompanhar as músicas do seu novo álbum Nenhuma Estrela e antigos hits que marcam a carreira do grupo.
Quem curte a melancolia urbana de suas canções embaladas pela mistura de indie-rock, sonoridade pós-punk e influências da música brasileira não se frustrou. O vocalista e baixista Ale Sater e seus companheiros Bruno Paschoal (guitarra), Greg Maya (guitarra) e Luis Cardoso (bateria) trouxeram ao Molly um show que reflete a maturidade do seu novo álbum e uma renovação em sua sonoridade, mas que não trai o estilo que consagrou a banda na cena no rock nacional.
Já a paraibana Clara Potiguara, ainda pouco conhecida dos molotovianos locais, não conseguiu atrair tantos seguidores. Uma pena, pois a artista indígena originária da Baía da Traição, no litoral do estado vizinho, trouxe um show refinado em que mescla a memória e a resistência dos povos originários com uma sonoridade enraizada nas tradições musicais de sua região.
Intitulado Akajubaté, o show tem como principais referências os ritmos locais como o coco de roda potiguara e o toré, retrabalhados e atravessados por batidas eletrônicas criando um clima sonoro e poético de rara beleza. Quem acompanhou a apresentação não se arrependeu e saiu de lá certamente encantado.

No palco principal, depois do belo espetáculo do Maracatu Feminino Baque Solto Coração Nazareno formado só por mulheres da cidade de Nazaré da Mata, duas jovens artistas mandaram ver e ouriçaram a galera que a partir das seis da tarde já começava a lotar o Molotov 2025. A primeira foi a rapper Duquesa. A cantora e compositora baiana é indiscutivelmente uma das vozes mais potentes da atualidade com suas rimas que colocam as mulheres em um lugar de força e autoconfiança.
A apresentação foi eletrizante e Duquesa desfiou suas músicas sem papas na língua. Seu trap é marcado por uma diversidade sonora e letras que exaltam a negritude e onde o pudor passa longe. E é essa autenticidade que tem feito dela um fenômeno nacional e que no Molotov pode ser medido com a energia e domínio absoluto do palco e quando ela entoou a música “Fuso” um dos seus grandes sucessos acompanhada pelas fãs em delírio.
Embora inicialmente fosse uma incógnita, a banda colombiana Maiguai rapidinho conquistou o público do Molotov e fez uma apresentação estabelecendo uma ponte entre Recife e Bogotá sem grandes dificuldades. Formada por Marisol e Álvaro, a Maiguai experimenta a fusão de sons eletrônicos com ritmos tradicionais latinos e o resultado é um som dançante e envolvente que bota todo mundo para balançar.
Participou do show da Maguai a pernambucana de Goiana Sam Silva. Sam é produtora cultural, técnica de som, cantora e compositora. O encontro do toque psicodélico dos colombianos com a pegada pop de Sam, que entrou no palco fantasiada de unicórnio e disse que Marisol era sua “pareia”, deu liga e foi um dos momentos mais legais e divertidos do show.
A cantora Zaho de Sagazan ratificou o seu status de estrela em ascenção no cenário pop internacional com um show que engajou a audiência e fez todo mundo dançar. A francesa ficou famosa após uma apresentação no Festival de Cannes este ano, mas explodiu no Brasil ao fazer parte da trilha sonora do remake de Vale Tudo, com uma nova versão de “Modern Love”, de Bowie. Zaho chegou empenhada em conquistar o público. Para além do seu carisma inegável, a cantora mostrou-se dedicada a se comunicar com a plateia ao trazer anotações com falas em português, o que obviamente deu muito certo. O seu som remete às influências oitentistas que são típicas do pop francês, mas trazem uma interessante mistura de dance e rock, apresentadas com uma ótima interpretação.

Em seguida Urias fez um show catártico ao apresentar o espetáculo do elogiado Carranca, seu novo trabalho que discute questões sociais a partir da perspectiva preta e trans. Com troca de figurino, bailarinas, coreografia, videoinstalação exibida no telão e uma excelente banda, o show da artista justifica o salto de grandeza que ela conquistou no pop com esse novo trabalho. O álbum serviu para mostrar o alcance da voz e interpretação de Urias, o que foi comprovado ao vivo em faixas como “Quando a Fonte Secar”, “DEUS” e Venus Noir”. A apresentação contou ainda com duas participações especiais, Don L, na música “Paciência” e Giovani Cidreira (um dos principais compositores do disco), em um apoteótico dueto da faixa “Herança” (este momento foi um dos pontos altos de todo o festival!).
Don L retorna ao palco principal do No Ar para apresentar faixas do seu novo disco Caro Vapor II – Qual a forma de pagamento?, lançado no primeiro semestre. Este é um trabalho que dá um salto enorme não só na carreira do artista cearense, mas também das possibilidades do rap enquanto gênero. E também aponta para a afirmação da personalidade muito própria que o gênero assumiu no Brasil. Há muito balanço, referências aos ritmos nacionais e também um intercâmbio forte com a América Latina. Faixas como “para Kendrick e Kanye” (com sampler de Para Lennon e McCartney), trazem a reafirmação do orgulho latino americano com participação de Giovani Cidreira. O repertório trouxe ainda “aFF Maria” e hits de trabalhos anteriores. O show do No Ar mostra que o rappper vem construindo lastro de um trabalho sólido admirável na música brasileira.
Gaby Amarantos encerrou o No Ar 2025, com o dia já amanhecendo. A artista é dona de um dos mais importantes discos lançados este ano, Rock Doido, e novamente provou sua relação íntima com Recife, cidade que acompanha sua ascenção no pop BR desde que lançou o hit “Xirley” em 2012. As faixas do novo trabalho refletem a explosão sonora paraense em suas diversas influências latinas, tecnobrega, eletrônica e rock. Esse caldeirão tenta sintetizar a experiência de um dj-set de aparelhagem paraense.
O show de Gaby no Coquetel ainda “selou” a paz entre Recife e Belém, que volta e meia rivalizam pelo título de “capital do brega”. Com a presença da Nega do Babado no palco, a artista celebrou um simbólico “tratado de paz”, assinado pelas duas. Em seguida, a cantora pernambucana cantou o seu maior sucesso, “Milkshake”.
Outros momentos memoráveis do No Ar Coquetel Molotov 2025 incluem o fuzuê de frevo proporcionado pelo Guerreiros do Passo na Concha Acústica, o delicioso deboche electropop do Vera Fischer Era Clubber e o set inspirado de Dj Marky na tenda Kamikaze.
Colaborou Alexandre Cunha e Rafaella Soares.
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