A penúltima noite do Rec-Beat foi incendiária. Um encontro entre a chama que vem ganhando corpo nas cenas musicais das periferias do país com o fogo aceso de gerações de diferentes movimentos musicais que se empenharam em absorver o que há de mais rico na cultura popular do país e do globo. Tudo para um público que, independente da sonoridade que vinha do palco, não se deixava ficar parado e celebrava os diferentes caminhos que a música encontra para mexer com a gente.
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O set de abertura do DJ Calani já dava o tom da noite com sua diversidade de ritmos, que passava pelas texturas eletrônicas do funk e do tecnobrega, assim como as batidas do coco e outros ritmos locais. Assim, ele deu as boas-vindas para o público e também não deixou a festa parar nos intervalos entre os shows.
O Cais já se encontrava cheio quando Marley no Beat, uma da figuras mais proeminentes do brega pernambucano, subiu ao palco ao lado do também produtor TomBC para trazer um leque de novas vozes que vêm trazendo novos ares e vivências para o ritmo local com o projeto Baratino Loko.
Se revezaram no palco nomes como Laryssa Real, Amun-ha – que, como ela mesmo exalta, é a primeira travesti não-binárie a gravar um disco de brega – e o CH da Z.O. Foi a primeira grande dose de euforia que seria a pedida da noite dali pra frente, para uma plateia que mesmo diante da aglomeração, encontrava alguns espaços para poder dançar.
Logo depois, foi a vez da carioca Slipmami, uma das atrações mais aguardadas do festival, mostrar que essas expectativas tinham um porquê. O show teve como repertório o seu pesadíssimo disco de estreia, Malvatrem, de músicas abraçam uma variedade de batidas e sonoridades igualmente pesadas, do trap ao rock, acompanhadas por seus versos afiados que misturam deboche, autoafirmação, sensualidade e combatividade com muita habilidade e flow.
Ela pôde contar com um público que não só cantava junto, mas também se pendurava onde dava para ter uma visão, sempre gritando seu nome e até trocando os aplausos por batidas na grade do palco para expressar o apreço pela jovem revelação. Se depender do que ela apresentou no palco do Rec-Beat, esta primeira passagem da artista pelo Recife está longe de ser a última.
Depois da periferia do Rio de Janeiro, a noite cruzou o Atlântico para receber o multi-instrumentista Simon Winse, de Burkina Faso. Com uma multiplicidade de instrumentos, que misturam cordas, percussão e sopro, o músico foi conduzindo uma grande e imersiva experiência sonora, mesclando ritmos do seu país com o jazz fusion e o blues e transformando uma contemplação que talvez no começo instigasse pela curiosidade em uma de verdadeira conexão com o que Winse fazia no palco. Carismático e comunicativo, ele cativou com facilidade quem o acompanhava.
De volta ao Brasil, as Suratas do Tapajós, primeiro grupo musical de carimbó formado só por mulheres indígenas, fez o penúltimo show da noite. Trazendo também seu disco de estreia, Kirĩbasawa Yúri Yí-itá – A Força que vem das Águas, trazendo as suas vivências e de seu território por meio do tradicional ritmo paraense. Mais uma vez, a dança voltou a tomar conta do Cais e não pararia por aí.
O encerramento da noite veio com a passagem do aguardado retorno do Mestre Ambrósio, um dos grupos mais emblemáticos das misturas sonoras que propunha o manguebeat, voltando a tocar em um palco tão ligado à sua história e a do movimento como é o Rec-Beat. Em dado momento, o músico Helder Vasconcelos pergunta ao público quem já havia presenciado um show do grupo, que passou quase duas décadas sem se reunir para apresentações, e quem assistia pela primeira vez, tendo respostas positivas dos dois lados.
É uma síntese do grande apelo dessa volta da banda, se reconectando com quem viveu sua história, mas também encontrando gerações que só puderam lhe acompanhar pelos fones de ouvido ou estavam conhecendo seu trabalho ali naquele momento. O repertório traz um verdadeiro mapa do que é a Mestre Ambrósio e como eles sabem fazer conversar as guitarras, rabecas, cocos, maracatus, cirandas e rocks, com muita performance e estímulo ao mexer o corpo. Então a noite se encerrou como começou, sem ninguém ficar parado.