Caetano & Bethânia
Recife, Classic Hall, 25/10/2024
Arrastando multidões pelo Brasil, o show Caetano & Bethânia, cuja turnê desembarcou no Recife, nesta sexta-feira (25), com a sensação de melancolia. É uma festa, mas celebração esta que sinaliza o fim da era da MPB e, consequentemente, o fim do tempo de gerações de artistas e espectadores unidos em torno dessa MPB. A turnê, considerada o espetáculo mais esperado do ano no Brasil, estreou em agosto deste ano no Rio de Janeiro (RJ), circula em diversas capitais do Brasil, até dezembro, com 16 apresentações ao todo, e chegou ao Classic Hall, na capital pernambucana, com ingressos esgotados. Os irmãos escrevem mais um capítulo da história: a de uma música que, há gerações, vem fazendo a trilha sonora de um país.
A dupla contou com a interação e animação de jovens, adultos e idosos nas mais de duas horas de apresentação. Com os shows acontecendo somente em capitais, admiradores dos cantores vieram de diferentes partes de Pernambuco e do Nordeste para prestigiá-los. Passava das 21h quando Caetano Veloso e Maria Bethânia subiram ao palco para mais 11 mil espectadores, de acordo com informações da organização da casa.
Caetano e Bethânia são nomes importantes não apenas para a Música Popular Brasileira (MPB), mas também para história do Brasil, sobretudo no período da Ditadura Militar (1964-1985), com o movimento Tropicália. Além disso, os cantores nascidos em Santo Amaro, na Bahia, são irmãos, construíram suas carreiras de maneira independente e fazem sucesso há mais de 60 anos.
O que se viu, logo na abertura da apresentação, não foi apenas alegria, alegria. Ela estava lá, mas também dividiu espaço com lágrimas de emoção inenarrável compartilhada entre os presentes. A segunda música, “Os Mais Doces Bárbaros” é uma referência aos Doces Bárbaros – grupo formado por Gilberto Gil, Gal Costa (1945-2022), além dos irmãos baianos, que em 1978, realizaram turnê pelo Brasil para comemorar os dez anos de sucesso em suas carreiras individuais.
A grandiosidade do espetáculo se mostra também em termos visuais, com o fundo do palco tomado por painéis verticais que funcionam como telões onde são projetadas imagens ao vivo do show e grafismos ou fotos, compondo o cenário. Além deles, há mais dois telões laterais. O da direita é dedicado a Caetano, enquanto o da esquerda mostra Bethânia. O gigantismo se mostra também na perspectiva musical, com a banda que reúne 14 músicos.
O sentimento de aperto ficou mais claro adiante, quando os irmãos orquestraram, juntos, a resposta para todas as coisas: tempo, tempo, tempo, tempo. Em 2024, Caetano e Bethânia completaram, respectivamente, 82 e 78 anos, e não devem demorar a puxar as despedidas dos palcos. O público parecia sentir. O show é montado com roteiro retrospectivo, cantando as músicas da obra dos irmãos baianos que marcaram o tempo da MPB, rótulo que designa música a rigor plural que, surgida na era dos festivais da década de 1960, se tornou hegemônica na mídia e no mercado ao longo dos anos 1970. A dupla segue os passos de Gilberto Gil, aos 82 anos, anunciou Última Turnê, show derradeiro em temporada em 2025.
Na mesma toada, Milton Nascimento, aos 81 anos, pendurou as chuteiras dos palcos. Já Chico Buarque, 80, chamou Mônica Salmaso para dividir o palco com ele no seu mais recente trabalho. Caetano fez este ano aquela que, segundo ele, é sua última turnê internacional.
Caetano e Bethânia chegaram a recorrer ao teleprompter que exibia as letras das canções. Dos poucos momentos de estranhamento ou silêncio no show, um deles chamou bastante a atenção da faixa “Deus Cuida de Mim”, do pastor evangélico Kleber Lucas. A escolha da canção num repertório de devoção à música popular brasileira surpreendeu parte considerável do público presente, mesmo não tendo sido inédita. Essa é uma das canções – se não a única – que não recebe aplausos entusiasmados do público.
Caetano não dava muita bola para Deus. Chegou a citar sua descrença numa música de 1985 cheia de referências a religiões afro-brasileiras, “Milagres do Povo“. “Quem é ateu e viu milagres como eu/ sabe que os deuses sem Deus/ não cessam de brotar, nem cansam de esperar”, ele cantava então.
Ao todo, os irmãos baianos trouxeram 41 músicas, embora algumas músicas sejam tocadas apenas um trechinho, meio que unidas, como se fosse uma espécie de pout-pouri. Apesar desse número parecer grande, para abarcar toda essa trajetória, caberiam 51, 61 músicas… porque ainda ficaria faltando bastante músicas da obra do duo baiano. Ao mesmo tempo, é um desafio montar um repertório de seis décadas de carreira em apenas duas horas.
No segundo momento do show, Caetano e Bethânia fazem sets separados, privilegiando sucessos. O irmão mais velho canta o super-hit “Sozinho” como o consagrou, no formato voz-e-violão. A abelha rainha, por sua vez, lembra canções como “Negue”. A homenagem a Gal Costa surge na parte final, com os dois novamente reunidos no palco. O trio se cruza nas duas canções escolhidas para o tributo. “Baby”, lançada por Gal, nasceu de uma encomenda de Bethânia de uma canção que usasse a palavra “baby” e tivesse o verso “leia na minha camisa”. E “Vaca Profana”, clássico do repertório de Gal composto pelo baiano, menciona um “amor Bethânia”.
Caetano e Bethânia se arriscaram em “Gita”, de Raul Seixas. Surpresa do repertório, a canção “Fé”, de Iza, foi cantada e forma enérgica na reta final, com o refrão: “Fé pra quem é forte/ Fé pra quem é foda/ Fé pra quem não foge à luta/ Fé pra quem não perde o foco/ Fé pra enfrentar esses filha da puta”. No roteiro couberam, ainda, homenagens a Gil, Gal, a Mangueira, além de memórias de encontros anteriores da dupla.
Para dar um dengo ao público recifense, os irmãos acrescentaram a música “Festa”, composição de Gonzaguinha, no setlist da turnê. A canção foi uma surpresa para o público, que foi ao delírio ao vê-los cantar a música: “Belo é o Recife pegando fogo / Na pisada do maracatu”. “Reconvexo” pôs o público a requebrar novamente, antes da dupla reconsiderar “Tudo de Novo” após seis décadas de carreira e duas horas de show. No apagar das luzes, “Odara” fechou a noite, pra ficar tudo joia rara.
Caetano e Bethânia em estrutura mega
A estrutura do show envolveu os espectadores com o show de luzes, imagens dos telões e músicos talentosos. O espetáculo emocionou os fãs e deixou gostinho de quero mais. A apresentação engloba não somente a carreira, mas a vida inteira de Caetano e Bethânia, com referências à cidade de origem deles. O talento e a representação histórica dos irmãos são notáveis e esta turnê é tão marcante para os fãs por ter um valor especial: o caráter de evento único e que não vai acontecer de novo está muito presente nisso, o que valoriza muito a apresentação. Não só isso, mas a união do Caetano com a Maria Bethânia é muito singular.
Mais do que um produto a ser vendido, a turnê dos irmãos promove um resgate histórico da caminhada que os trouxeram até aqui. A apresentação passeia por lembranças e personagens importantes para as canções mais relevantes dos dois. Relevância essa que, acertadamente, não vê o sucesso comercial como régua principal da seleção. Talvez por isso parte dos pagantes tenha criticado o repertório da apresentação, que, de fato, deixou algumas faixas mais conhecidas de fora, mas nada deixou a desejar aos que compareceram para prestar ode à música popular brasileira.
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