Cobertura: Bob Dylan

DYLAN, INCOERENTE
Sem prestígio pelos próprios sucessos, cantor faz versões de seus clássicos e platéia se esforçou em cantarolar os refrões
Por Maria Carolina Santos, especial para O Grito!, no Rio de Janeiro

BOB DYLAN
Rio Arena, Rio de Janeiro
08 de março

No refrão de “Things Have Changed” – música que deu o Oscar a Bob Dylan em 2000 – está uma boa pista para entender um dos lados do show do artista: “I used to care/ but things have changed (eu costumava me importar/ mas as coisas mudaram)”. Nos três shows que fez neste mês no Brasil, a lenda viva parecia não estar nem aí para o público, nem aí para seus clássicos. Falou pouco, muito pouco com a platéia – no Rio de Janeiro nem uma única palavra, a não ser para apresentar a banda.

Mudou o ritmo e o andamento das músicas, tornando impossível cantá-las junto. Aliás, Bob Dylan não canta, apenas fala, com a voz mais rouca que nunca. No show do Rio, depois da terceira música ele abandonou a guitarra e ficou de lado para o palco, olhando poucas vezes para o público. Concentrado no teclado, mas parecendo se divertir à beça durante toda a apresentação, Dylan não presta nenhum tributo aos seus sucessos. Muda sem cerimônia até mesmo o hino de protesto “Blowin’ in the Wind” até transformá-la numa música de bailinho.

Fazer mudanças radicais nas apresentações ao vivo, porém, não é algo recente na carreira de Dylan. Desde a década de 1960 o bardo faz versões completamente diferentes de suas canções gravadas. O que pode levar a entender as músicas de uma forma também diversa. Exemplo disso é “It ain’t me babe”, segunda música que Dylan cantou no Rio Arena. Na versão do álbum é uma uma balada repleta de agudos angustiados sobre uma mulher que quer um homem perfeito e Bob diz que simplesmente não é ele. Na versão ao vivo, a letra adquire um tom de desprezo insuspeito na versão do álbum The Other side of Bob Dylan. Alguns chegam a dizer que, na verdade, o refrão é uma resposta de Dylan aos que creditam a ele o título de cantor de protesto.

Outra forma de se lembrar do show de Dylan é a oportunidade única de se ver ali no palco um senhor de 66 anos, com quase 50 de carreira, ainda extremamente criativo, que não se contenta em oferecer a platéia apenas mais do mesmo. De cara, as mudanças que ele faz nas músicas assustam o público. Em “Like a Rolling Stone”, a última música antes do bis, muitos fãs se esforçavam para cantarolar a versão mais lenta e instrumental que Dylan tocava no palco. Outros não se conformaram. Simplesmente ignoravam o que estavam ouvindo e cantavam a música na versão do single de 1965.

Orinalmente incluída em The Freewheelin’ Bob Dylan – aquele álbum em que Dylan aparece com Suze Rotolo na capa, uma de suas incontáveis namoradas – “Masters of War” ganhou uma força impressionante no palco. Se a letra já era carregada de veneno e tinha um clima pesado só com violão e a voz ainda límpida do artista na década de 1960, na versão 2008 ganhou uma levada mais blues com um vocal tão rústico que quando ele canta “E eu espero que você morra/ E que sua morte logo virá/ Seguirei teu caixão/ Na tarde pálida/
E assistirei enquanto eles lhe abaixem/ Para seu leito de morte”, mas parece um agouro que uma música.

O público do Rio Arena – construído para os últimos jogos panamericanos – era de apenas 4.600 sortudos, quase dois mil pessoas a menos que o número de ingressos colocados à venda. Uma pena. Mais que um show polêmico – principalmente pela intransigência de Dylan em dar ao público o que ele queria – foi um show memorável. No palco, o artista que uma vez disse “Peçam-me tudo, menos para ser coerente”, mostrou toda a criatividade que a incoerência cultivada por décadas e décadas é capaz de produzir.

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