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Em Bruxas, Minhas irmãs, Chantal Montellier conta histórias de bruxas à luz da misoginia atual

Autora francesa disseca o medo social da feminilidade ao longo da história com um sabor contemporâneo e incrivelmente verdadeiro

Em Bruxas, Minhas irmãs, Chantal Montellier conta histórias de bruxas à luz da misoginia atual
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Bruxas, Minhas Irmãs
Chantal Montellier
Veneta, 80 páginas, R$ 69,90 / 2023
Tradução de Maria Clara Carneiro

O embate das forças patriarcais contra as mulheres moldou a mentalidade do Ocidente a partir de um medo social que foi personificado na figura da bruxa, um ser que guarda mistérios e desperta desconfianças, medo e repulsa, e consequentemente reações violentas de ódio e vingança. A bruxa é sempre vista como um atentado à norma vigente, uma transgressora, uma rebelde contra o poder instituído, uma questionadora.

Este é o mote de Bruxas, Minhas Irmãs, da celebrada quadrinista francesa Chantal Montellier, que reuniu sete histórias curtas que trazem mulheres perseguidas ao longo do tempo, da Idade Média ao coronavírus dos tempos recentes.

O grande feito da HQ é conseguir construir essa ponte histórica que mostra que as vítimas seguem as mesmas, ainda que separadas por séculos de distância. “De Um Diabo a Outro” mostra a história de Françoise, uma camponesa em um pequeno vilarejo da Idade Média que é disputada por dois homens, um jovem ferreiro por quem está apaixonada e um homem para quem foi prometida contra sua vontade.

Cegos pelo próprio orgulho, os dois entram em um embate, sendo um deles gravemente ferido. Na Paris de 2021, ainda vivendo a epidemia de coronavírus, encontramos Nassera uma jovem jornalista de ascendência árabe, também cobiçada por dois homens. Em ambas as situações, o homem preterido cria um clima de hostilidade e desconfiança como vingança: na Idade Média, Françoise é acusada de bruxaria; nos dias de hoje, de estar contaminada por uma nova variante de Covid-19.

Chantal Montellier.
Imaginativa: Arte de Chantal Montellier fica entre o ensaio visual e a narrativa sequencial.

O livro traz ainda a história de mulheres que serviram de bode expiatório para os mais diversos medos humanos, como a peste negra no período medieval (“A Ironia da Fortuna”), bem como mulheres punidas com a fogueira por simplesmente se sentirem bem com a própria sexualidade (“Eva Desloups”). Há também espaço relembrar o triste destino de Camille Claudel (em “Fogo na Floresta”), escultora famosa que foi julgada e taxada como louca por desenhar e esculpir corpos de homens e mulheres nus. Rodin, seu grande mestre e mentor, nada fez para lhe salvar da ruína e da violência que sofreu (ela acabou presa por 30 anos em um manicômio).

Chantal Montellier é uma contadora de histórias habilidosa e tem como uma de suas mais importantes características a centralidade de sua narrativa. Ela vai direto e sem rodeios naquilo que quer discutir, analisar, como se não tivesse muita paciência com tentativas vãs de relativizar sua indignação. Em Bruxas, Minhas Irmãs transparece ainda a necessidade de tornar explícito o quanto essas violências seguem vivas, com novas tintas, mas com os mesmos alvos.

O texto de Montellier é muito rico e adiciona ainda mais camadas à leitura para além do desenho, o que inclui descrições de cenas e ações que levam a imaginação do leitor a lugares improváveis, indo e vindo no tempo. É um trabalho meticuloso, que mistura narrativas tradicionais com ensaio visual, bem como intervenções oníricas de monstros e seres demoníacos que ressoam os medos e delírios da humanidade ao longo do tempo. Uma intrincada colcha de retalhos construída com maestria.

Chantal Montellier se baseou no trabalho do historiador Jules Michelet (1798-1874) como base e usou trechos de seu livro A Bruxa (1862) para abrir os capítulos. “Se, do meu ponto de vista, as coisas até que mudaram, acredito, no entanto, que o imaginário e a sexualidade das mulheres continuam a dar medo, sobretudo quando elas gozam de certa liberdade”, escreve Montellier no prefácio da obra, que teve tradução cuidadosa de Maria Clara Carneiro. “Medo de não poder controlá-las, dominá-las. Medo do incêndio que elas poderiam provocar”.

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