O diretor Marcos Yoshi tinha 14 anos quando, na virada do milênio, seus pais deixaram o Brasil e partiram para o Japão em busca de uma oportunidade de trabalho. Naquela época, a ideia inicial do casal, Roberto Shinhti Yoshisaki e Yayoko Yoshisaki, era permanecer do outro lado do mundo por dois anos, tempo suficiente para juntar algum dinheiro e voltar ao aconchego familiar.
No entanto, a vida reservou outros planos e o que era para ser somente dois se transformou em treze anos distantes dos filhos. Nesse intervalo, Marcos Yoshi e as irmãs cresceram sob os cuidados dos avós em Jales, cidadezinha do interior de São Paulo, enquanto trocavam correspondências, que hoje formam um vasto acervo de cartas, fotografias e filmagens, com a mãe e o pai.
Quando, em 2013, Roberto e Yayoko enfim decidiram retornar ao Brasil, a família se viu reunida pela primeira vez em mais de uma década e desse reencontro nasceram algumas descobertas. A primeira e mais imediata foi a de que pais e filhos já não se conheciam. Com a retomada do convívio, Yoshi, movido pelo anseio de redescobrir quem são seus próprios pais, registrou o momento e anos depois percebeu que a história poderia ganhar as telas.
O resultado é o documentário autobiográfico Bem-Vindos de Novo, estreia do cineasta em longas-metragens, que atualmente está em cartaz nos cinemas de todo o país. Muito além de fornecer um registro dessa história familiar, o filme parte da vivência íntima e particular para falar das lacunas e das questões pouco discutidas sobre um tema universal: a migração dekassegui, fenômeno que atravessa a realidade de milhares de famílias nipo-brasileiras hoje, caracterizado pelo fluxo migratório de brasileiros com descendência japonesa para o país asiático.
Segundo Marcos Yoshi, a ideia inicial era fazer um filme que representasse a situação de separação familiar da forma como ele havia vivido no passado, mas que estivesse acontecendo no momento presente com outra família. Porém, durante a busca por outros núcleos familiares, ele se deu conta de que o retrato que buscava era, na verdade, de uma fase do movimento migratório que já havia passado.
“Ou os pais já tinham voltado, ou os filhos tinham ido para o Japão, ou então as pessoas já estavam com outros desenhos migratórios de, por exemplo, ir a família inteira ou ir apenas um dos pais [para o Japão]. De toda forma, o que eu consegui encontrar foram famílias em que tinha havido separação familiar, mas que era a mesma situação que a minha, ou seja, os pais já tinham voltado e a família estava junta de novo”, detalhou em entrevista para a O Grito!.
Ao conversar com cada uma das famílias, ele notou ainda que era a primeira vez que as pessoas falavam a respeito da separação. “E essas conversas eram muito intensas, emotivas, catárticas mesmo. Das pessoas chorarem, acusarem umas às outras, se desculparem, enfim. Por conta disso, eu me dei conta que esse assunto era uma espécie de tabu dentro dessa situação da imigração, de que as famílias e a minha própria família também não tinham conversado muito a respeito sabe”, explicou.
Marcos Yoshi percebeu então que precisaria ter um forte nível de intimidade com as pessoas filmadas para que todas as questões, tão doloridas, pudessem vir à tona. Foi aí que surgiu a ideia de trazer sua própria família para o centro da narrativa. “Desde o começo, eu tinha essa noção de que era um assunto que dizia respeito a outras famílias também e que tinha essa amplitude social e histórica sabe, mas ao mesmo tempo o que me interessava era entender como isso se manifestava nas relações pessoais, nos pequenos detalhes do dia a dia de uma família.”
Em 2016, ele iniciou as gravações com os pais, trabalho que se estendeu por quatro anos. No início, ele conta, houve um certo estranhamento. Roberto e Yayoko não entendiam muito bem o propósito das filmagens e levantavam algumas dúvidas, chegando até a sugerir a contratação de atores em tom de brincadeira. “Por outro lado, eu também estava tentando descobrir o que eu estava fazendo, mas, apesar disso, sempre houve muita abertura e muita generosidade deles para topar qualquer coisa que eu propunha”, disse.
Além dos pais, também foram centrais para a construção do longa as duas irmãs do diretor, que, ao lado dele, revisitam e reconstroem os anos de adolescência. “Eu realmente não sabia qual era a perspectiva e quais tinham sido os sentimentos das minhas irmãs”, revelou. “Fiquei bastante surpreso, assim, do quanto elas, no fundo, sentiram falta e de como isso não era comunicado entre a gente, mesmo naquela época. Acho que a gente nunca parou para falar ‘pô, tô sentindo muita falta da mãe e do pai’.”
Como um álbum de família
Mas perceber os limites da exposição da própria família não foi tarefa fácil e envolveu, ao lado do montador Yuri Amaral, o árduo caminho de entender a complexidade de cada um dos personagens. “Chamo de personagem porque, no final das contas, o filme tem 1h45min e eu filmei eles por quatro anos, então é uma compilação de minutos da vida deles num intervalo de tempo muito longo. É um recorte muito pequeno deles enquanto pessoas”, definiu Marcos Yoshi.
“No fundo, eu acho que a grande régua era entender o quanto, cada uma dessas dimensões, seja da parte que é engraçada ou da parte que é mais pesada, me dizia respeito também enquanto filho, sobre qual imagem que, no fundo, eu quero conservar sabe”, explicou ele, referindo-se à figura do pai, que protagoniza uma das cenas mais fortes do longa. “Para mim, o filme também tinha um aspecto meio de álbum de família assim, de quais eram os momentos que a gente quer conservar para a posteridade.”
De acordo com Yoshi, a família assistiu ao documentário antes do material ser encaminhado para o corte final e a recepção foi melhor do que ele mesmo esperava. “A gente conversa sobre o filme até hoje. O filme se tornou uma forma da gente também conseguir falar a respeito de outros assuntos como a própria ideia de masculinidade e tudo mais.”
O fracasso e suas possibilidades
Enquanto isso, o cineasta também desmistifica parte dos símbolos que foram construídos e costumam ser associados à imigração japonesa no Brasil, segundo ele, vendida como um fenômeno bem sucedido. Mas, paradoxalmente, é o fracasso e não o sucesso que se impõe como elemento constituinte da história da sua família, atravessando gerações, desde os avós e bisavós, nas fazendas de algodão durante o século passado, até os dias de hoje.
“Eu acho que essa ideia de fracasso, no nível do que é ser nipo-brasileiro, tem esse duplo tabu sabe. No mundo de hoje, o fracassar, óbvio, é algo que ninguém quer assumir ou que ninguém quer enfrentar, mas também dentro da comunidade essa ideia de fracasso também se vincula a uma ideia de vergonha. E, por outro lado, a minha família desde os meus avós é uma família que está fundada no fracasso, sabe, de diferentes ordens”, revelou.
Para Yoshi, esse sentimento de vergonha está atrelado, em algum nível, a um discurso individualista e neoliberal, bastante entoado hoje, que impossibilita o entendimento de “uma certa potencialidade da ideia de fracasso em termos políticos e éticos assim, de entender como isso permite que a gente assuma um lugar de fragilidade enquanto pessoas nas nossas relações, nas nossas dependências.”
Assim, aponta o diretor, o que era para demandar alguma transformação estrutural se transforma em uma gestão individual do sofrimento. “É um pouco uma mistura também do próprio mascaramento e da responsabilização individual que as pessoas acabam assumindo pelos fracassos que elas têm”, concluiu.