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Antes do orgulho: Jornais do Recife só amenizaram discurso sobre gays e travestis no final dos anos 1970

No final da década de 1970, novos hábitos e novos espaços de entretenimento para o público gay obrigaram os jornais a não ignorar o surgimento de um segmento de homossexuais esclarecidos e bem-posicionados socialmente   

Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:

+ Nas artes, aceitação e desconfiança com os homossexuais andavam lado a lado
+ Travestis encontravam trégua e compreensão nas matérias e colunas dedicadas às artes cênicas

Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
Parte 2: + “Bonecas não têm vez no Carnaval”:  duas décadas de hostilidades e intolerância na cobertura dos jornais
Parte 3: Entre o ódio e o medo

O ano de 1979 marcou o início de uma mudança na forma como a imprensa recifense abordava a questão da homossexualidade. Não que os velhos conservadores tenham desaparecido para sempre como num passe de mágica e o preconceito e a perseguição aos gays e travestis tivessem sido definitivamente varridos das redações, mas, aos poucos certos tabus foram sendo desfeitos. É bom lembrar que no final da década de 1970 a censura do regime militar ainda era atuante e isto de certa forma deixava os jornalistas com um pé atrás quando o assunto era o mundo gay. Em setembro de 1978 um inquérito foi instaurado em São Paulo para processar nove jornalistas da revista Isto É por terem produzido uma matéria de capa intitulada “O Poder Homossexual”. A ordem de instauração do inquérito partiu do coronel Moacyr Coelho, chefe do Departamento de Polícia Federal que considerou a reportagem como um atentado à moral e aos bons costumes. 

Uma série de fatores, no entanto, trouxe novos ares para as redações, sobretudo com a chegada de repórteres mais jovens e mais antenados com o que vinha acontecendo pelo mundo afora em que a homossexualidade deixava de ser uma prática de pervertidos, criminosos que deveriam ser banidos da sociedade ou doentes para serem tratados. A renovação do discurso dos jornais foi paulatinamente se modificando, principalmente nas matérias sobre comportamento e nas editorias de arte e cultura. Os novos hábitos, com bares e boates voltados ao público gay, os grupos de luta pela libertação homossexual, reivindicando mais tolerância e reconhecimento da igualdade de direitos como qualquer cidadão foram, aos poucos, levando os jornalistas homossexuais ou simpatizantes a tratarem o assunto com mais naturalidade e sem julgamento de ordem moral. 

Apesar disso, analisando as matérias não é difícil perceber maneiras bem distintas de se acercar do tema tendo como base a origem de classe e o poder aquisitivo dos protagonistas dessa cena, ou seja, um dos motores para a melhor aceitação dos homossexuais tinha, na verdade, bases econômicas, com a presença de empresários que começavam a ver no público gay um mercado emergente.  Assim, enquanto as bichas e travestis pobres, frequentadoras de locais “mal afamados”, continuavam recebendo o mesmo tratamento preconceituoso de sempre, os chamados “entendidos” que circulavam nos novos espaços, voltados para consumidores abonados, eram vistos como gente bacana desde que se mantivessem discretos. 

Ser homossexual, mas ser contido e não dar pinta era a palavra de ordem. O jornalista João Alberto, em uma de suas viagens internacionais de cortesia por ser colunista social, visitou a cidade de San Francisco, nos Estados Unidos e relatou, em matéria de novembro de 1979 do Diario, ter ficado surpreso, pois, segundo ele, sempre ouvira falar que a cidade era o paraíso do homossexualismo na América e não foi isto que ele testemunhou: “Os homossexuais de San Francisco se comportam naturalmente, pelo menos nas ruas. Confesso que não cheguei a observar um só que pudesse ser identificado facilmente. Soube que nem mesmo nos seus lugares específicos eles saem da linha”.

Matéria da colunista Thais Notare no Diario de Pernambuco sobre a Boate Misty, inaugurada em 1979, dá o tom de como a imprensa local se relacionava com a questão. A jornalista saúda a novidade: “Graças a Deus o Recife está crescendo e evoluindo de mentalidade. A prova está na aceitação por parte da sociedade da buate Misty uma casa “Gay” onde cada um curte a sua sem se incomodar com os outros”. Depois de comparar a casa recifense com a famosa boate Medieval em São Paulo, Notare diz que esteve na Misty e encontrou “muita gente colunável”, mas que os conhecidos podiam ficar sossegados porque ela não iria citar nomes. O texto encerra-se com dois conselhos: “Como diversão recomendo a todos vocês, mas lembrem-se: cada um na sua”. 

Além da Misty, no final dos anos 1970 bares como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, e as boates Stock e Vogue, no edifício Novo Recife, localizado por trás do edifício Duarte Coelho, onde fica o cinema São Luiz, eram bastante movimentadas. A multiplicação de espaços de entretenimento para os homossexuais obrigava, de certa forma, os jornais a não ignorar a existência deles, ficando claro, nos textos, que tal aceitação se dava pela distinção desse público como podemos ver na matéria “Recife começa a quebrar tabus com sua primeira boate gay”, publicada no Jornal do Commercio em abril de 1979, onde se informava que com a proliferação de discotecas regionais, “Recife está devidamente inserida no contexto geral, inclusive no que se refere à quebra de tabus sexuais e sociais. Isto pode ser observado na primeira boate GAY – Misty – funcionando há quatro meses, com forte sedimentação na clientela de ‘entendidos classe A’”. 

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E, nesta “seleção”, mais uma vez eram as travestis as mais discriminadas. Na matéria “Boate de travestis é mais um atrativo nas noites do Recife”, publicada no Diario de Pernambuco, em maio de 1979, o relações públicas da Misty José Roberto Gouveia ao anunciar a realização de um espetáculo permanente de travestis, disse que a casa podia ser considerada uma discoteca gay “tendo em vista a acolhida cordial e antidiscriminatória que tem dado aos homossexuais”. Todavia, na mesma matéria ficamos sabendo, pelo redator não identificado, que a boate não permitia a entrada de travestis, “salvo os profissionais do ‘Grupo Vivencial’ que ali foram para receber homenagem, retirando-se logo após a entrega dos troféus”. Isto é, no palco como atração: sim, como plateia: não.

Rebolados e inquietações 

De qualquer forma não deixava de ser surpreendente um jornal como o Diario de Pernambuco que, durante anos, noticiara e até apoiara a proibição das inúmeras tentativas de realização de bailes de travestis, publicar a matéria intitulada “Mundo Gay elege seus destaques”. O evento, realizado em maio de 1979 na boate Misty, entregou troféus a destaques indicados por uma comissão julgadora. Entre outros, foram agraciados os jornalistas João Alberto Sobral e José de Souza Alencar e a colunista Thais Notare, por publicarem matérias sobre a Misty (sic); os costureiros Ricardo de Castro e Paulo Carvalho e o maquiador Múcio Catão.  A matéria ganhou chamada de capa e fotos, apesar do texto ainda apresentar as habituais descrições do ambiente da festa com chavões estereotipados metidos a engraçados. 

Mais espantosa ainda foi a reportagem “Rebolado ‘gay’ sacode as noites do Recife” publicada no Diario em junho de 1979 sobre o show Bonecas Falando para o Mundo em cartaz no Vivencial Diversiones, o famoso cabaré localizado no Complexo de Salgadinho conduzido pelo grupo teatral Vivencial de 1979 a 1982. A matéria, em página inteira, produzida pelas repórteres Ana Maria Guimarães e Ângela Lacerda, trazia uma longa entrevista com Guilherme Coelho, diretor do grupo, onde ele relatava toda a trajetória artística do Vivencial e destacava, entre outras coisas, o fato de que a maior parte do público do Diversiones era composta por pessoas heterossexuais.  A matéria trazia também o perfil de vários integrantes do espetáculo e descrevia em detalhes de forma leve e divertida o que acontecia nos camarins da casa.

O tema da homossexualidade, contudo, permanecia sinônimo de inquietação e matérias continuavam sendo produzidas para esclarecer os leitores num esforço hercúleo de se dar nome aos bois. Um exemplo claro dessa situação é uma longa reportagem, também de página inteira, feita pelo jornalista Fernando Machado com o título “Homossexualismo: uma opção ou um mal genético irremediável?”, publicada no Diario em setembro de 1979. Na abertura do texto era flagrante que a cidade do Recife já tinha uma população gay à vista de todos, mas, pelo jeito, causadora de incômodos como revelava o jornalista: “Desprezados como cachorros sem dono, presos como marginais e tratados como doentes, os homossexuais lutam desesperadamente para construir um futuro melhor e serem considerados pessoas normais, mas a sociedade ainda não sabe o que fazer com eles”. 

“Desprezados como cachorros sem dono, presos como marginais e tratados como doentes, os homossexuais lutam desesperadamente para construir um futuro melhor e serem considerados pessoas normais, mas a sociedade ainda não sabe o que fazer com eles”. 

Texto publicado no Diario de Pernambuco em setembro de 1979.

Na verdade, a matéria era constituída por entrevistas, em formato de perguntas e respostas, realizadas com professores universitários locais de vários campos do conhecimento – Sociologia, Teologia, Direito, Psicologia, Psiquiatria e Endocrinologia – formando um painel de opiniões que, de alguma maneira, revelavam as contradições e equívocos que ainda predominavam, embora, bem ou mal, sinalizavam outras possibilidades de compreensão. E não resta dúvida de que esse movimento de buscar entender a homossexualidade estava relacionado com o fato de pessoas das elites dominantes estarem cada vez mais assumindo abertamente as suas opções sexuais.

Mundo Guei

Em termos de espaço editorial para a questão da homossexualidade, no entanto, uma das iniciativas mais interessantes na imprensa local na época foi a coluna Mundo Guei publicada no jornal Diário da Noite, de setembro de 1979 a março de 1980. Apesar de circular apenas por sete meses e não focar unicamente nas questões sobre homossexualidade, pois noticiava também fatos ligados ao movimento feminista, negro e de outras minorias, ela teve um papel importante no Recife. Diferentemente de Rio de Janeiro ou São Paulo, onde a partir de meados dos anos 1970 surgiram publicações da imprensa alternativa como o jornal Lampião da Esquina, a Mundo Guei pode ser considerada como um dos primeiros veículos de informação e sociabilidade destinados ao público homossexual do Recife, como observou Sandro José da Silva na sua dissertação Quando ser gay era uma novidade: aspectos da homossexualidade masculina na cidade do Recife na década de 1970.

 A Mundo Guei saía aos sábados com um conteúdo diversificado e nela publicavam-se informações sobre conquistas jurídicas de homossexuais do exterior, endereços de grupos militantes do Brasil e tinha espaço para os leitores mandarem poemas, histórias de vida, contos, sugestões de bares, cinemas, boates e lugares públicos do Recife frequentados por gays e lésbicas. O Diário da Noite pertencia à Empresa Jornal do Commercio e, naquela fase, fazia um jornalismo popular com uma circulação relevante que atingia tanto a Região Metropolitana do Recife quanto cidades do interior. Por sua linguagem simples e direta, a Mundo Guei podia ser lida não apenas pelos gays, mas também por pessoas dos diversos segmentos sociais, contribuindo para que se tomasse conhecimento da crescente movimentação pela defesa dos direitos homossexuais. 

Uma das repórteres e redatoras da coluna era a jornalista e fotógrafa Ana Farache que circulava neste meio e conseguiu formar uma rede de informantes que encaminhavam pautas e notícias sobre shows, encontros, que eram noticiados junto com notas e matérias informativas sobre o que estava acontecendo no Brasil e em outros países que pudessem interessar a comunidade gay, tanto em termos de comportamento quanto militância. Ao analisar a coluna, Silva ressalta a contribuição da Mundo Guei por funcionar “como um veículo de prestação de serviços em que os leitores agiam como agentes fomentadores das informações veiculadas. Os leitores eram convidados a participar diretamente na legitimação de sua “classe”. Da mesma forma que eram oferecidas redes de apoio e solidariedade necessárias neste momento de liberação homossexual”. 

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Silva observa que a seção também tratava sobre questões relacionadas com a afetividade: “Procurava-se, dessa forma, desconstruir as imagens dos homossexuais como sujeitos interessados apenas em relações sexuais promíscuas e desprovidas de qualquer afeto e romantismo. Por isso, a seção abria um espaço para os leitores enviarem poemas, mensagens e contos sobre os amores e o romantismo entre homens”. Um dos exemplos é o conto Os homens que nunca beijam, publicado em fevereiro de 1980, sobre a história de um michê e um adolescente nas ruas do Recife.

O historiador, todavia, observa que “apesar da homossexualidade estar ganhando sua própria voz nos meios de comunicação, as falas possuíam limites pela hostilidade social historicamente imposta sobre sexualidades destoantes da normatividade heterossexual”. Segundo Silva, utilizava-se todo um jogo de metáforas e uma elaboração discursiva moralmente mais adequada a ser publicada na imprensa como era o caso do Diário da Noite ao descrever, por exemplo, práticas amorosas entre homens. Assim, expressões do universo heterossexual como “flertar”, “paquerar” e “namorar” eram substituídas por palavras como pescar, caçar e pegar.

Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário