Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho”, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:
+ Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
+ “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
+ Casos de amor e cadeia: gays e travestis como “destruidoras de famílias”
Nas décadas de 1960 e 1970, o olhar e o tratamento sobre a homossexualidade e a transexualidade nos meios de comunicação no Brasil não eram muito diferentes de décadas precedentes marcadas por abusos e repressão a esse grupo social. Num período em que não existia a palavra gay ou siglas para identificar quem era do Vale, os termos “invertido”, “pederasta”, “boneca”, “sodomita”, “anormal” e a imagem estereotipada dos homossexuais masculinos e das travestis como criaturas imorais e histéricas era constantemente reforçada pelos redatores, desde o repórter de fait-divers (jargão jornalístico para casos excepcionais e insólitos) aos articulistas e cronistas. E no Recife isso não foi diferente.
Esse quadro só começou a mudar no final da década de 1970 e início da década de 1980, à medida que os movimentos de libertação sexual conquistavam espaço e respeito no exterior e a imprensa pernambucana foi recebendo informações vindas da Europa e dos Estados Unidos, onde este processo já ocorria há pelo menos uma década. O avanço observado nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo e a influência que essas capitais exerciam nos centros menores também contribuíram para que os termos, expressões e a abordagem preconceituosa das notícias e artigos aqui publicados fossem sendo paulatinamente atenuados.
Um aspecto significativo do período em questão é o fato de que em boa parte dele o Brasil estava vivendo sob uma ditadura militar. Esse contexto atingiu a comunidade homossexual, aumentando a perseguição e a discriminação aos que viviam abertamente sua orientação sexual, pois o ambiente repressivo e a moral conservadora da sociedade estimularam as forças policiais e responsáveis pela ordem pública a se tornarem ainda mais autoritárias e violentas.
Nossa escolha, todavia, é por um recorte modesto nesse vasto campo da história social contemporânea. O que queremos mostrar com essa série de reportagens documentais, que iniciamos agora, é uma panorâmica de como a imprensa pernambucana retratava os acontecimentos do cotidiano protagonizados por homossexuais e travestis nesse período de transição e mudanças de paradigmas ocorridas entre 1960 e 1980. A intenção é, a partir da leitura de diversos textos publicados, sobretudo no Diario de Pernambuco, realizar uma viagem no tempo revendo histórias, às vezes tristes e violentas, mas também curiosas e instigantes pela irreverência de pessoas que, mesmo diante da discriminação, não renunciaram a suas escolhas.
São muitos casos e episódios, tanto trágicos quanto pitorescos, protagonizados por personagens, em geral homens cis ou mulheres trans, muitas vezes sem sobrenome e identificados apenas pelo nome de fantasia que usavam nas ruas. Vale lembrar ainda que nas redações de jornais os editores e repórteres eram, sobretudo, homens cis heterossexuais reproduzindo o machismo vigente e, portanto, detratando e perseguindo os homossexuais masculinos. Uma maneira, talvez, deles reforçarem suas pretensas masculinidades e condenar os gêneros desviantes.
Assim, não é de surpreender que os protagonistas desses acontecimentos aparecessem com frequência, sobretudo, no noticiário policial e nas coberturas do período carnavalesco. Nas editorias de sociedade e cultura o tema também era abordado, sendo, porém, apresentado com mais sobriedade, embora também não faltassem ataques, comentários irônicos e reprovações ao “homossexualismo”, palavra que ainda era corrente para designar a relação afetiva e sexual entre pessoas do mesmo gênero.
Evidentemente não é nossa pretensão esgotar o assunto e nem realizar aqui um estudo sociológico ou historiográfico aprofundado, mas apenas trazer à tona um pouco de como essas histórias cotidianas foram registradas pela imprensa local de modo a reavivar a nossa memória sobre as dificuldades e obstáculos de um passado nem tão distante vividos pela comunidade homossexual. É uma maneira também de dar visibilidade, em outra chave de compreensão, aos anônimos que enfrentaram a repressão nas suas vidas cotidianas e, de certa forma, valorizar a luta constante que a comunidade LGBTQIA+ trava todos os dias para não ser discriminada, mostrando que sempre existiram vozes discordantes.
Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário