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Entre o ódio e o medo: a vigilância da homossexualidade pautou o discurso da imprensa recifense nos anos 1960-70

Dos suplementos dominicais às editorias de geral, política e colunas sociais explicar as causas da homossexualidade e meios de preveni-la se tornou uma obsessão nas páginas do Diario de Pernambuco

Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:

+ A paranoia estava por toda parte
+ O caso do congresso de cura gay que virou caso de polícia
+ Terreiros em conflito
+ O candidato dos “frangos”

Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
Parte 2: + “Bonecas não têm vez no Carnaval”:  duas décadas de hostilidades e intolerância na cobertura dos jornais

Apesar da perseguição sistemática aos homossexuais e travestis nas décadas de 1960 e 1970, empreendida pelas forças policiais e o olhar preconceituoso dos veículos de comunicação recifenses, a questão da homossexualidade foi, aos poucos, sendo abordada de forma diferente em algumas editorias e nas revistas dominicais dos jornais, sobretudo em matérias de comportamento. 

O que observamos nas duas décadas em questão é a configuração de dois eixos discursivos. De um lado jornalistas com uma mentalidade conservadora e dificuldades em aceitar mudanças na forma de entender a homossexualidade e, do outro, profissionais cujos textos evidenciavam a disposição para compreender o que estava acontecendo, mas que se chocava com o senso comum marcado pela intolerância que eles ainda compartilhavam. 

No segundo caso, nota-se, aqui ou acolá, o esforço para empreender uma visão mais humanizada do tema, mesmo que essa visão consistisse em dizer que a homossexualidade era uma doença, um desvio de personalidade, uma coisa má, mas que nem por isso se deveria martirizar os que sofriam com o “problema”. O correto seria ajudá-los a superá-lo. 

A tentativa de encontrar respostas de cunho científico para explicar o que levava uma pessoa a praticar a homossexualidade se tornou, no entanto, uma verdadeira obsessão. Encontrar uma causa plausível que atendesse a manutenção dos valores morais vigentes era fundamental para sustentar o discurso de que a homossexualidade poderia ser evitada ou revertida.  

Além disso, era impossível não repercutir localmente os movimentos de libertação gay que estavam acontecendo nos Estados Unidos e na Europa e, nesse contexto, novos olhares para a questão foram surgindo, embora só a partir dos anos 1980 eles se concretizaram efetivamente. E é isso que iremos conhecer melhor nesta terceira reportagem de nossa série.

Prevenir para evitar o pior

Embora não crucificassem os homossexuais e citassem estudos e pesquisas, ao final, as matérias sempre apresentavam a homossexualidade como um problema a ser tratado

A famosa “teoria do espelho” estudada nas grades curriculares dos cursos de jornalismo afirma que os jornais seriam um espelho da realidade e que as notícias são como são porque a realidade assim as determina. Hoje, essa teoria é bastante contestada, porém ainda encontra eco na comunidade jornalística porque a credibilidade e legitimidade dos jornalistas estão fundadas na crença social de que as notícias refletem a realidade e que os jornalistas são imparciais por respeitarem as normas profissionais. Outros teóricos, no entanto, afirmam ser essa teoria uma metáfora bastante limitada, uma vez que as notícias não apenas reportam os fatos, mas ajudam a construir essa realidade.

Embora não estejamos aqui para debater as teorias do jornalismo, a ideia de espelho nos ajuda a pensar um pouco sobre como os veículos de comunicação, no nosso caso, os jornais recifenses das décadas de 1960 e 1970*, noticiavam e debatiam o tema da homossexualidade. Se partirmos da ideia de que os jornais são feitos de textos informativos e opinativos e com diversos agentes sociais produzindo discursos sobre um assunto é válido pensar que, passeando pelas páginas desses jornais, vamos nos deparar com um panorama de como a sociedade recifense lidava com o assunto. 

Portanto, mesmo com as sabidas limitações da teoria do espelho, não seria errado tomarmos esse panorama como um dos possíveis espelhos dessa sociedade, o espelho construído em cima do preconceito e do medo, ou seja, não um espelho de imagens nítidas e fiéis, mas um espelho diáfano como esses que ficam por dentro da porta de um guarda-roupa velho, de imagens borradas, subtraídas, equivocadas, camufladas que só pouco a pouco alguns tiveram a coragem de torná-las visíveis para mostrar que a homossexualidade não é doença, crime ou pecado.

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Uma questão de saúde

No início dos anos 1960 vamos encontrar indícios de um desejo de falar da homossexualidade de uma maneira mais equilibrada nos artigos de cunho médico ou científico. As análises e argumentos são, por vezes, bem distantes do que conhecemos hoje, mas neles apreendemos a intenção de alguns autores de não demonizar os homossexuais. O Diario de Pernambuco, por exemplo, publicava em suas páginas a coluna Medicina para Todos assinada pelo médico estadunidense Walter Clement Alvarez, que atuava em uma clínica em Nova York. Vez por outra, entre conversas sobre narcolepsia, bursite ou doenças cardíacas a homossexualidade entrava em pauta. 

Alvarez era conhecido nos Estados Unidos por sua abordagem esclarecida da homossexualidade e pelos esforços para educar médicos e o público em geral sobre o tema. Era considerado um aliado do Movimento Homófilo, que entre os anos 1950-1970 precedeu os movimentos de libertação homossexual. Mas, pelo visto, mesmo em Nova York o tema ainda mexia com as pessoas, pois Alvarez em uma de suas primeiras colunas de 1960 comentava que “volta e meia era censurado por falar em homossexualismo”.  

O médico respondia a cartas enviadas por leitores estadunidenses, dando conselhos e orientações como podemos ver nessa coluna publicada em fevereiro de 1961 onde uma senhora de uma pequena cidade lhe pergunta como proceder diante do fato de ter descoberto que um dos “estimados membros de sua comunidade religiosa era homossexual”.  

Preocupada, a senhora indaga como a comunidade deveria olhá-lo e se deveria advertir os jovens contra ele, ao que o Dr. Alvarez responde: “certamente, não. Quanto menos se falar sobre o caso desse pobre homem, melhor será. Ele não ofende a ninguém, nem pretende ofender”. A resposta prossegue com o médico fazendo um arrazoado onde reforça que o homem em questão deve ser tratado como os demais e sem que se demonstre nenhum horror a ele. 

No decorrer da década, outros artigos tratam da questão e neles vemos, ao menos, uma certa cautela dos autores dos textos, convocando estudos de pesquisadores renomados para balizarem suas afirmações, embora, ao final, sempre vislumbrem a homossexualidade como um problema para ser tratado, como podemos ver, a título de ilustração esse artigo intitulado “Você, Seu Filho e Seus Problemas” de Rodolpho Rolão publicado no Diario, em fevereiro de 1967.

Na coluna, voltada para o tema Educação, o autor discorre sobre a homossexualidade entre os jovens e desenvolve seu raciocínio a partir do pensamento freudiano, entre outras teorias, e assinala o fato dos jornais estarem comentando “a necessidade de maior compreensão e tolerância da sociedade em relação aos que experimentam tais problemas. Contudo, mais importante que remediar é prevenir e, para fazê-lo, é mister o conhecimento de suas implicações. É uma obrigação a que os pais e responsáveis não podem fugir”. 

Colunistas muito lidos e tidos como pessoas cultas e sofisticadas volta e meia soltavam notas dando a impressão de que o “homossexualismo” (sic) estivesse à espreita de cada lar.

Esse era um discurso recorrente nos jornais, “prevenir para evitar que acontecesse o pior” como vemos num artigo do jornalista Samir Abou Hana, publicado na revista dominical do Diario em novembro de 1970, sobre questões de audiência na televisão brasileira. Para ele as novelas estavam dando um grande passo porque nelas estavam “sendo evitados os enredos sobre infidelidade conjugal, homossexualismo e violência. Pelo fascínio que exercem no público, principalmente o feminino, as novelas tendem a abordar assuntos sérios, educativos mesmo, excelente veículo cultural para difundir os bons costumes”. 

Colunistas muito lidos e tidos como pessoas cultas e sofisticadas volta e meia também soltavam notas no mesmo tom dando a impressão de que o “homossexualismo” estivesse à espreita de cada lar. É o que observamos na nota “Fixação erótica” publicada em fevereiro de 1975 na coluna diária de Paulo Fernando Craveiro: “Para os pais que desejarem evitar que o filho seja homossexual a revista Paris Match acaba de publicar matéria orientando-os. Segundo modernos estudos, o homossexualismo não tem qualquer causa endócrina, sendo uma fixação auto-erótica que se segue ao período ambíguo da adolescência sob a forma de um amor excessivo a si próprio”. 

A prevenção, no entanto, podia virar perseguição num piscar de olhos. O mesmo colunista, um ano depois, em 07 de abril de 1976 escreveu uma nota queixando-se do fato de a censura ter proibido, anos antes, a participação do costureiro Denner na TV e fechar os olhos para os programas cheios de “pessoas do sexo masculino com jeito feminino”. Quatro dias depois, ele voltou ao assunto pelo fato da censura “permitir no vídeo os requebros do cantor Ney Matogrosso. É simplesmente constrangedor o testemunho da propaganda do ‘gay power’ em ebulição via Embratel”. 

O que se percebe, na verdade, em quase todos os colunistas é uma certa esquizofrenia. Ao mesmo tempo em que eles soltavam notas sobre acontecimentos que demonstravam que o “gay power” – a expressão que foi se firmando a partir de meados da década de 1970 – estava se expandindo, também publicavam notícias ou comentários que iam na direção oposta.  É interessante observar que o uso da palavra “gay” ganha relevância neste período, mesmo entre os homossexuais, que até então usavam o termo “entendido” para identificar pessoas que tinham relações homoafetivas. 

Machos em crise

Não seria exagero também afirmar que tantas matérias e notas versando sobre a homossexualidade refletiam a crise da masculinidade que já se instalava nas redações. Ela fica evidenciada nas reportagens e artigos que expunham o comportamento homossexual como ameaça à imagem do homem viril e poderoso e como responsável por muitos males sociais da contemporaneidade. Isso talvez explique um jornal como o Diario de Pernambuco estampar em destaque na sua capa da edição de 11 de dezembro de 1972 a manchete “Seria homem candidata ao título de Miss Mundo” para uma matéria de agência de notícias cujo texto era tão curto que nem remetia para uma matéria interna.

O artigo “Considerações em torno do sexo”, publicado em março de 1974, de autoria de Selênio Homem de Siqueira, é outro bom exemplo do heterossexual masculino em crise. No texto ele afirma a existência de uma conspiração em marcha para desmoralizar o sexo masculino sendo as mais perigosas as “baseadas em tendências subconscientes, tais como nazismo e comunismo que, dependentes da machice pura, animal e integral, paradoxalmente tentam desprestigiá-la”. Segundo Siqueira “as senhoras do ‘Lib’ e do ‘gay power’, que se equiparam na guerra ao macho, dependem, para o êxito de suas afirmações, de um fato simples, biológico e psicológico: a virilidade masculina que ambas pretendem cercear e reduzir”. 

O jornalista classifica os homossexuais que militam pelos seus direitos de bonecas evangélicas e sugere que eles não propagandeiem sua condição: “Um outro grupo de pressão contra o macho é o das bonecas. Eu as tinha em conta de inteligentes, mas, agora, vejo esse julgamento comprometido. Não conheço nada mais estúpido do que a generalização da “coluna do meio”. (…)Boneca sabidinha deve ser tudo menos aliciante, evangélica, propagandista. Na sua, muito na sua – isto sim – e de mansinho, muito de mansinho”. 

O tom alarmista dos argumentos dos redatores evidenciava o machismo que mobilizava seus discursos. O repórter Severino Barbosa escreveu duas reportagens, uma em setembro de 1976 e outra em setembro de 1979, sobre o “aumento da criminalidade feminina” tendo como base dados dos Estados Unidos e do Brasil. A primeira intitulava-se “O ‘sexo frágil’ em tempo de violência” e a segunda “Crime sem fronteiras”. Curiosamente, nas duas matérias, ele usa os mesmos argumentos e repete praticamente as mesmas palavras para construir seu texto.

Em um parágrafo ele resume suas inquietações: “Terrorismo, drogas, roubo, assaltos, sequestros, assassinatos, movimentos feministas, campanhas do Womens’Lib, berros virulentos de Betty Friedman, passeatas gay, comícios de protesto, mas em favor de tudo o que é licenciosidade, do adultério ao homossexualismo, do fim da virgindade ao aborto criminoso. Não estaria a vida moderna, com toda esta explosão de revolta incontida e de permissividade, quebrando estruturas e violentando conceitos morais inatingíveis? E não seria isso que estaria conduzindo a mulher cada vez mais para o crime?”.

Talvez para acalmar os ânimos, o Diario recorreu, vez por outra, ao médico pernambucano Nelson Chaves, um endocrinologista renomado, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e que se destacava no cenário nacional pelos seus estudos e pesquisas sobre nutrição, curso inclusive por ele fundado na UFPE.  Em 1968, Chaves lançou o livro Sexo, Nutrição e Vida, onde um dos capítulos era dedicado a intersexualidade. 

Pelo menos duas grandes reportagens e um artigo assinado pelo próprio Nelson Chaves foram publicados pelo Diario na década de 1970, sendo um deles dedicado exclusivamente ao tema da homossexualidade: “Tudo que você deve saber sobre o homossexualismo” de dezembro de 1976. A matéria, não assinada, saiu no caderno Viver  e o redator ou redatora observa que Chaves “não faz sensacionalismo do problema, limitando-se apenas a explicar os fatores determinantes da bissexualidade nos indivíduos”. A explanação do professor em todas as matérias se destacava pela fundamentação científica e o tom acadêmico dos argumentos o que o distanciava dos textos raivosos e repletos das habituais insinuações vulgares.

Vozes cordiais

Enquanto os homens vociferavam contra os gays, as repórteres e colunistas mulheres eram mais sensíveis e tolerantes como é o caso da jornalista e advogada Zenaide Barbosa, da coluna Diario Feminino e da repórter Ana Maria Guimarães. Na Diario Feminino publicada aos domingos no suplemento dominical do Diario de Pernambuco, Zenaide Barbosa reproduzia material recebido das agências de notícias com matérias como “Menino brinca com bonecas?” em que um pediatra da Pensilvânia dizia que um menino podia ter uma boneca desde que tivessem vontade, pois segundo ele “a melhor maneira de desenvolver a masculinidade era estabelecer um relacionamento afetuoso entre pai e filho”. 

Em alguns casos ela reportava o assunto e introduzia comentários pessoais no corpo do texto. A matéria “Homossexualismo: Dúvidas Britânicas”, por exemplo, fala da publicação de um guia e de um filme da Compaing For Homosexual onde se ensina aos “educadores homossexuais e aos jovens que se sentem diferentes, como enfrentar as inevitáveis crises e como aprender a viver e conviver com sua tendência homossexual masculina ou feminina”.

O texto questiona, sem negar o valor da contribuição da iniciativa, se tais conselhos não tornariam mais fortes nos adolescentes determinadas tendências que se não fossem tão promovidas, não acabariam se tornando mais fortes, ou se convém dizer a uma jovem “que só procura a companhia de uma amiga que fique tranquila e trate de ser feliz como lésbica ou insistir para que ela procure a mesma serenidade, mas com um rapaz”. 

Bem mais incisiva e transparente era a repórter Ana Maria Guimarães que produziu em outubro de 1978, no Diario de Pernambuco, uma reportagem que destoava completamente ao que se lia normalmente sobre a homossexualidade nos jornais até aquele momento. Com o título “Liberdade Gay, evolução ou perversão moral?” a jornalista apenas fez o que qualquer profissional sério do jornalismo faria, tratou as personagens de sua matéria com dignidade e lhes deu voz.

A reportagem teve como foco as relações homossexuais femininas e um dos motes para sua realização foi uma matéria da revista Veja sobre a efusiva recepção das lésbicas recifenses ao show da cantora Simone com a compositora Sueli Costa no Projeto Pixinguinha, no Teatro do Parque. No longo texto de página inteira, Ana Maria abordou a homossexualidade feminina de forma ampla, contextualizando historicamente o amor erótico entre mulheres, desfazendo os estigmas dos discursos sobre o tema e trazendo aspectos da vida cotidiana das lésbicas locais, das dificuldades em assumirem sua opção aos sentimentos por elas experimentado nas suas relações afetivas.

A jornalista abre a reportagem apresentando uma jovem que distribuía, no Bar Mustang, no Centro do Recife, panfletos de Baiardo de Andrade Lima que, em 1978, lançara-se candidato a deputado federal, tendo como uma das bandeiras a liberdade gay. Ela destaca como tal fato era significativo: “mostra uma disposição inusitada e corajosa partindo de uma jovem que depois de assumir o homossexualismo, enfrenta a sociedade e suas críticas, impondo a sua maneira de ser/opção de vida, sem agressividade, mas com segurança e até certa tranquilidade”. 

No texto Ana Maria observa que no Recife “muitas pessoas se mantêm ‘enrustidas’ temendo a marginalização, mas não restam dúvidas quanto a veracidade do fenômeno do súbito aparecimento de milhares de moças e rapazes que preferem companheiros do mesmo sexo. Os costumes mudaram vertiginosamente e a liberação passou a ser objetivo de todos”.  A repórter ouviu diversas mulheres e narra o que elas lhe disseram com franqueza. Sobre uma jovem universitária que não hesitou em falar de sua vida amorosa escreveu: “Antes já tinha tido namorados, até que conheceu o grande amor da sua vida e… assumiu. Acha natural amar outra mulher e sente-se realizada, sentimental e sexualmente. As duas estão inclusive planejando oficializar a união com um casamento que poderia ser na umbanda”. 

*Para essa reportagem, em particular, o jornal pesquisado foi o Diario de Pernambuco pela facilidade de acesso a suas edições na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário