Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho”, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:
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A violência contra gays e travestis não é de hoje. Se atualmente, mesmo com a maior parte dos crimes sendo notificada e a existência de leis de combate ao preconceito e discriminação, ainda somos o país no mundo onde mais se mata LGBTs, imagine quando isso não existia. Alguns desses assassinatos chegavam aos jornais e, lendo os relatos, nos damos conta que os motivos não eram muito diferentes do que vemos hoje: michês que matavam seus clientes para roubá-los, espancamentos de travestis por homofobia, crimes passionais, etc.
A diferença é que atualmente o tratamento dado pela mídia às ocorrências policiais envolvendo pessoas gays, em geral, observam as normas jornalísticas e cobram a punição dos culpados, enquanto décadas atrás, sem a conduta ética imposta pela legislação anti-homofobia, a exploração sensacionalista era escancarada, normalizada e aparentemente, ninguém se queixava.
Quando o caso apresentava elementos sórdidos e tramas rocambolescas, esses aspectos eram realçados e os relatos quase sempre resvalavam para um julgamento moral dos envolvidos, algo que lembra muito certos apresentadores de telejornais policiais sensacionalistas da atualidade. Os homossexuais vítimas de algum crime tinham seus hábitos expostos e associados a condutas censuráveis, insinuando que por causa de seu comportamento e “maus hábitos” eram culpados pelo que sofreram.
O violento assassinato de um bancário no Edifício Califórnia, conhecido como Boni, em 1963, é um exemplo. A vítima é apresentada pelo noticiário como “um pederasta que recebia em seu apartamento de Boa Viagem jovens amigos com quem fazia bacanais”. A matéria prossegue dizendo que “nessas reuniões fumava-se maconha, tomavam-se entorpecentes e ingeriam-se bebidas alcoólicas”. O bancário foi encontrado morto com 25 peixeiradas. O acusado pelo assassinato só foi a júri em 1967 e acabou absolvido por unanimidade.
E se os infratores fossem gays, essa condição, pela maneira como era abordada, acabava sendo, às vezes, mais relevante do que outros aspectos que configuram o caráter ou a índole de alguém capaz de cometer delitos graves. Ou seja, ir para a cama com alguém do mesmo sexo não era bom sinal. Dessa forma chama atenção no noticiário policial envolvendo personagens gays as inúmeras matérias em que eles são identificados apenas como “homossexuais”, ou seja, não se coloca a qualificação profissional do indivíduo – garçom, pedreiro, motorista etc. – como é usual ao se nomear uma pessoa citada na notícia.
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Essa ênfase na orientação sexual do personagem, sobretudo num ato qualificado como crime em que ele aparece como suspeito ou acusado, reforçava a ideia vigente no período de classificar a homossexualidade como doença, perversão, desvio moral e característica de uma mente perturbada com tendências criminosas. Esse discurso era corriqueiro e certamente encontrava eco nos leitores.
A notícia sobre um assassinato ocorrido no bairro de Areias, zona oeste do Recife ilustra bem essa situação. A matéria abre afirmando que “O homossexual A.B.F.*, solteiro, 45 anos, detido na madrugada de ontem em Areias é o principal suspeito do assassinato do pintor F.A.G. ocorrido na quinta feira passada”. Mais adiante no terceiro parágrafo quando é descrito o teor da relação entre o suspeito e a vítima, que eram amantes, o redator não hesita em colocar que: “O delegado de Roubos e Furtos está convicto da culpabilidade do homossexual”.
Em outra ocorrência, o proprietário de um bar foi preso por disparar tiros em uma briga, mas o que o identifica em primeiro lugar é a sua orientação sexual e não sua posição social: “O homossexual J.M.C, conhecido como o ‘Ringo de Peixinhos’ devido a uma briga no ‘Bar Meira Drinks’ de sua propriedade, disparou dois tiros e feriu o ‘amiguinho’ Jairo e o comerciário G.B.”.
É o que vemos também em uma pequena matéria sobre prisão ocorrida em Caruaru em março de 1977. Com o título “Homossexual é capturado”, o texto abre informando que “o homossexual L.C.F.S., de 25 anos, natural de Pesqueira, onde trabalhava como cozinheiro, mas também se dedicava a matar pessoas foi capturado pelos agentes Concerva, Washington, João e Wilson nas proximidades do viaduto da BR-232”.
As descrições dos fatos ganhavam contornos ainda mais estigmatizantes quando a palavra homossexual era substituída por termos depreciativos como vemos em uma matéria publicada em maio de 1974 cujo título foi “Promotor denuncia irmãos que mataram homossexual”. No corpo do texto, no segundo parágrafo, está assinalado que “a vítima foi atingida por quatro facadas desferidas por Rui, enquanto Enock e Raimundo impediam o irmão Francisco (que mantinha ligações com o anormal) de tomar qualquer atitude para evitar o crime”.
O mesmo tratamento teve J.S.B., um rapaz solteiro de 25 anos, preso por ficar despido na sacada de um prédio na Rua da Moeda. A notícia sobre o fato teve como título: “Anormal detido quando se exibia para os homens da Rua da Moeda”. Segundo a matéria, Lurdinha, como era conhecido o rapaz, “cantava e assobiava para os homens, mostrando os atributos físicos conseguidos a base de aplicação de hormônios”.
Já M.A.S., cujo pseudônimo era Rogéria, além de ser taxado de anormal pelo jornal por exibir os seios por quinze minutos na Avenida Rio Branco ainda teve os detalhes de sua prisão descrito pelo redator: “Rogéria, fazendo beicinho, saltou da UM-11 dando gritinhos histéricos, chamando para si a atenção geral”. Ele reproduziu também supostas falas da travesti: “‘Todos os homens são uns despeitados e sempre que podem me maltratam. Estou acima de tudo e de todos porque sou sexy, tenho fãs e além do mais me considero autêntico’ – disse o anormal”.
Violência em tom de brincadeira
O tom jocoso e debochado dos textos se acentuava quando as ocorrências envolviam as travestis que, na época, eram tratados como “o travesti”. Além disso, como observa Sandro José da Silva em sua dissertação Quando ser gay era uma novidade: aspectos da homossexualidade masculina na cidade do Recife na década de 1970, na imprensa em geral elas só́ tinham espaço quase unicamente quando sofriam ou praticavam algum ato de violência envolvendo conflitos e brigas com clientes, amantes e a polícia. Por isso elas estavam sempre ligadas a termos como violência e ilegalidade. Foram raros os momentos, segundo o historiador, em que elas tiveram voz; a imprensa é quem falava por elas, retratando-as com as cores que lhes apeteciam.
A crônica policial dos jornais, a exemplo do que também ocorria no cinema e no teatro, explorava o estereótipo da travesti como figura exagerada e de personalidade histriônica. Os redatores se esmeravam em descrever o comportamento delas com a clara intenção de ridicularizá-las e, embora entre os fatos noticiados muito deles não tivessem grande valor jornalístico, serviam para corroborar o senso comum de que a homossexualidade era uma ameaça a sociedade, justificando o controle e o seu combate pelas forças de segurança.
Não temos como pensar diferente ao lermos a matéria sobre uma travesti presa por furtar objetos de uma vizinha e confessar que cometia os roubos por inveja da mulher. O redator mais uma vez encerra a matéria dando detalhes do momento da prisão para ressaltar aspectos que evidenciavam a necessidade da detenção: “Antes de ser recolhido ao xadrez da SSP, L.O.V. que também é conhecido por ‘Penha Maria’, caiu no pranto lastimando por sua falta de sorte” (…) Ao dar entrada no xadrez criou um sério problema, pois não queria se desfazer das vestes: o preso só pode ser recolhido ao xadrez em trajes menores e ‘Penha Maria’ estava com um mini-biquini vermelho”.
O mesmo é válido para esta notícia sobre um prosaico furto de galinhas: “O homossexual A.J.L. (“Vitória Régia”), de 20 anos, residente na Rua Aprígio Guimarães, s/n, Tejipió, além de falar fino é especialista em roubar galinhas e pássaros”. Mais adiante o repórter diz que “o fato de estar preso não incomodou ‘Vitória Régia’ que chegou a cantar uma música de Waldick Soriano, provocando risos dos policiais…”. O relato em tom de galhofa do que ocorreu na delegacia para onde o acusado foi levado era outra estratégia discursiva recorrente. Ao tornar o episódio leve e engraçado e informar que Vitória Régia supostamente não ligava por estar detida, encobria-se a violência da perseguição sistemática às travestis e homossexuais, fazendo parecer que tudo era quase uma brincadeira.
Perigosas ou vítimas?
Vivendo completamente à margem da sociedade, sem poder sair às ruas durante o dia, as travestis tinham a prostituição quase como única forma de sobrevivência. Assim eram os bares, boates e pensões alegres, sobretudo no ainda boêmio Bairro do Recife ou no Bairro de São José próximo a Estação Central, os locais por onde elas mais circulavam. O envolvimento em brigas e a prática de pequenos delitos era, portanto, previsível, e aí emergia nos noticiários um outro olhar sobre as travestis, o de pessoas perigosas e violentas, capazes de roubos e agressões por ciúmes de seus amantes. Era inclusive comum notas policiais com títulos curtos como “Travesti desonesto”, “Travesti perigoso”, “Travesti ciumento”.
Alguns desses casos acabavam indo bater nos tribunais, o que nos permite observar que o judiciário também, por vezes, atuava de forma preconceituosa. Não podemos afirmar que isso era uma prática usual, mas elas aconteciam. A matéria sobre a absolvição de J.S.B., conhecido como Zezinho ou Kátia Cristina, sintetiza com precisão como essas situações se desenrolavam e as diversas camadas de atitudes homofóbicas cometidas. Acusado de dar várias dentadas em um comerciário numa pensão na Rua Madre de Deus, o episódio ganhou essa versão do jornal: “Zezinho, de 25 anos, agrediu o comerciário quando este tentava interferir numa briga entre ele e um desconhecido que, por um engano lastimável, deixou-o conduzi-lo a um quarto da pensão, certo de que acompanhava uma mulher, mas comprovou o erro e tentou escapar aos ‘encantos’ do anormal”.
No final do texto, o redator ainda reproduz a passagem do acusado na vara criminal e as palavras do juiz responsável pelo caso: “Vestida de collant, calça feminina e sandálias, falando com voz fina e gesticulando ‘delicadamente’ o homossexual praticamente ‘fechou’ ontem o 3º andar do Forum Paula Batista, e ouviu o juiz Cavalcanti Padilha dizer que ‘o acusado já está condenado pela natureza, tornando-se do sexo feminino após atingir a maioridade’”.
E pelo visto o testemunho de um homossexual podia não valer grande coisa a julgar pelo episódio em que um policial militar foi acusado de invadir embriagado, junto com dois amigos, uma pensão na Rua da Moeda, no bairro do Recife, e espancar duramente duas prostitutas. A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça reformou a sentença anterior de quatro meses de detenção do soldado F.F.O., pois os desembargadores acolheram as alegações dos advogados de defesa Bráulio Lacerda e Gilberto Marques. Segundo a matéria, os advogados argumentaram que “não se poderia determinar a autoria do crime baseado na palavra de uma testemunha duvidosa, muito conhecida no Recife e que vive entre homossexuais e prostitutas”. A tal testemunha era Ivo Alves da Silva ou simplesmente Lolita, uma figura bastante popular e famosa do centro do Recife nos anos 1970.
Apesar de tanta violência, um aspecto que acaba chamando a atenção em muitos dos relatos lidos é a forma humorada como as travestis, a depender da gravidade do caso, enfrentavam esses atropelos. Não queremos com esta observação atenuar a atitude dos jornalistas e justificar o discurso preconceituoso por eles elaborado a partir do pressuposto de que eles apenas narravam o que tinham testemunhado. Ademais, certamente, o tratamento recebido pelas travestis quando eram presas pela Polícia Militar e levadas às delegacias não devia ser nada gentil e isso não incomodava os repórteres, pois as arbitrariedades policiais nunca eram noticiadas.
Todavia, se nos distanciarmos um pouco do mal-estar que a leitura das notícias provocam e encará-las por um novo ângulo podemos inferir, ao lermos certos depoimentos transcritos nas matérias, que a reação dos homossexuais e das travestis e as respostas debochadas dadas por eles nos interrogatórios denotam um quê de irreverência e de ironia. Como se, para eles, isso fosse uma forma de defesa e de resistência, mesmo sabendo que por suas condições de excluídos e marginais isso não mudaria o tratamento que recebiam.
É o que podemos constatar quando vemos matérias como a que narra a prisão da travesti Marly próximo a Faculdade de Direito, no Centro do Recife. Ao delegado de plantão, ela disse que agrediu a vítima porque o rapaz queria praticar atos libidinosos no local e ela se recusou, pois “não se passava para esses papeis na via pública”. Mesmo assim foi detida. Ao final, segundo descreveu o repórter, “a boneca dirigiu-se ao delegado e disse: Doutor, eu não estou com raiva porque estou presa, estou furiosa, mas muito furiosa mesmo porque não meti o salto do sapato na cabeça daquele monstro”.
Em uma matéria sobre quatro agentes e um delegado que ao passarem em uma ronda pela Rua Nova, também no Centro, desconfiaram de uma mulher na calçada também observamos como as travestis tinham a percepção precisa da repressão contumaz a que estavam submetidas. Ao pedirem os documentos de identificação, segundo o redator, eles constataram que ela era “o homossexual e ladrão J.M.L., a ‘Chiquita’”. Prosseguindo o relato, o redator narra que “ao entrar na viatura policial, a ‘boneca’ reclamou: ‘Nunca posso estar sossegada. Quando estou roubando, me apanham porque sou ladra. Se estou paquerando acontece a mesma coisa…’”.
Um jornalismo que só ouvia um lado
De fato, prostitutas e travestis no período da ditadura militar não tinham sossego, sobretudo se fossem para as ruas. Notícia publicada em maio de 1975 conta que nada menos do que 37 prostitutas foram presas por fazerem “calçada” nas ruas Nova e Padre Muniz, avenida Dantas Barreto e Praça Dom Vital, todas na região central do Recife. Nessas rondas, muitas travestis também iam para o xadrez onde passavam algumas horas até serem liberadas. Tais campanhas empreendidas pela Delegacia de Costumes eram resultado direto da onda conservadora e moralizante do regime autoritário cujo objetivo era manter vigilância constante de grupos considerados subversivos e pessoas que não seguiam a ordem estabelecida.
Até mesmo estabelecimentos legalizados como bares e boates estavam sujeitos a serem invadidos ou até mesmo fechados pela polícia. Os chamados “inferninhos” mantinham relações ambíguas com as autoridades policiais, pois muitos clientes e integrantes dessas corporações frequentavam esses locais. No entanto, quando ocorriam confusões nas casas ou nos seus arredores, era comum elas serem interditadas por prática de lenocínio, que é a facilitação para a prática da prostituição. Em março de 1970, um desses locais foi fechado pela polícia e todas as travestis residentes na pensão, incluindo a dona do estabelecimento, a travesti Paquinha, foram levadas para a Delegacia de Plantão.
E mesmo apartamentos em edifícios residenciais, a exemplo do Califórnia e Holiday, em Boa Viagem, que já nos meados dos anos 1960 eram tidos como locais mal afamados, eram vigiados e recebiam batidas regulares realizadas pela Delegacia de Costumes. Essas operações ganhavam destaque nos jornais como pode ser visto nesta matéria de agosto de 1969 com o título “Polícia cerca Holliday e prende ‘gang’ sodomista”. Nela o repórter relata que “onze homossexuais, seis rufiões, três viciados, quatro desocupados, quinze mundanas e um grego foram presos”. Aqui, mais uma vez, apesar da diversidade de envolvidos no episódio, notamos a demonização da homossexualidade, uma vez que metade do texto da notícia foi dedicado a esse grupo.
No trecho em questão o redator ressalta que os homossexuais detidos na blitz policial “perderam a vasta cabeleira” e que “as maiores desordens e todas as bacanais que são realizadas ocorrem nos apartamentos dos anormais”. E para encerrar a narrativa, a incontornável descrição detalhada do momento da prisão de uma travesti: “Por ocasião da batida, um homossexual que reside naquele prédio estava trajando um ‘babydoll’, usava baton vermelho nos lábios, calçava pantufas, estava com cílios postiços e peruca loura e preta. Reagiu à prisão e os policiais tiveram que carregá-lo nos braços. Esperneando e soltando gritinhos, Sharon Tate – nome de guerra – dizia-se perseguido pelo azar”.
Vale, no entanto, ressaltar que os jornais de certa forma replicavam o discurso das autoridades policiais sem empreender nenhuma investigação jornalística a respeito do que era afirmado. Assumiam o discurso dos delegados de costumes que não hesitavam em associar o tráfico e consumo de drogas à orientação sexual dos acusados.
Em matéria do início dos anos 1970, os edifícios California e Holiday, reaparecem como locais suspeitos. Nela, o delegado Mário Alencar afirma que os dois locais seriam os mais usados pelos viciados em suas orgias. O redator completa dizendo que o delegado pretende interditar os apartamentos dos traficantes e que “no decorrer das investigações ficou constatado que o grupo aliciava jovens de ambos os sexos para usá-los nos bacanais frequentados por homossexuais e lésbicas”. A matéria encerra com a declaração do delegado afirmando que “os integrantes do grupo são anormais e que as festas por eles realizadas nada ficam a dever aos famosos bacanais romanos”.
*O jornal publicava os nomes completos dos envolvidos nas ocorrências, mas para evitar a exposição deles preferimos colocar apenas as iniciais