Anatomia de Uma Queda
Justine Triet
FRA, 2023. 2h31, Gênero: Drama/Suspense. Distribuição: Diamond
Com Sandra Hüller, Samuel Theis e Milo Machado Graner
Quando Anatomia de Uma Queda venceu a Palma de Ouro em Cannes, as primeiras reações sempre destacavam que se tratavam de um “drama de tribunal” sofisticado, que investigava os percalços de um caso, de maneira meticulosa e sufocante. Filmes de tribunal se tornaram um subgênero dramático no cinema com excelentes produções, mas o novo filme da francesa Justine Triet é muito mais do que isso, ainda que se agarre a esse subgênero para desconstrui-lo com maestria. Indicado a cinco Oscar, incluindo melhor filme, direção, roteiro original e montagem, trata-se de um drama humano que aposta na batalha de narrativas em meio a uma morte misteriosa para avançar em um debate ainda mais complexo, que é própria noção de verdade.
A maior parte do filme se passa nos Alpes franceses e foca na vida de uma escritora alemã (Sandra Hüller, incrível) morando com seu marido (Samuel Theis) e filho (Milo Machado Graner) nas montanhas, em uma vida aparentemente tranquila em meio a um cenário que é igualmente lindo, inspirador, mas também inóspito e misterioso. Veremos mais adiante que essas dualidades estão o tempo todo se revelando ao espectador como forma de embaçar o nosso juízo, nossas percepções da realidade. O que rompe esse tecido fino de aparente normalidade é a morte repentina de Samuel, ao cair da varanda de casa. Tratada inicialmente como um acidente ou suicídio, essa queda vai se tornar o motor da narrativa quando Sandra passa a ser a principal suspeita de assassinato.
Sandra Hüller (revelada no ótimo Toni Erdmann) está incrível em uma das interpretações mais difíceis da temporada. Atuando em inglês e francês, ela consegue calibrar diferentes nuances de uma personagem que é bastante contida, cerebral, mas que consegue arroubos de emotividade inesperados. A constrição se dá pelo fato da personagem estar o tempo todo acuada, fora de seu ambiente. Em primeiro lugar está a dificuldade de provar sua inocência morando em um país diferente do seu, em outro idioma. Em seguida, no curso do julgamento, ela precisará também defender sua própria moral, seu papel de mãe e até mesmo sua capacidade artística (em meio à investigação, ela é também acusada de plágio do marido morto, também escritor).
O filme, nesse sentido, até usa o artifício já conhecido em filmes de tribunal, que é jogar uma série de “coincidências” no labirinto da investigação para guiar o espectador a uma possível conclusão. No entanto, o que o roteiro faz de forma brilhante é colocar as tensões da dúvida para outros personagens no entorno da protagonista. Dessa forma, todos vão buscando construir uma verdade particular, a mais plausível, ou, em última instância, a mais possível.
O jovem ator Milo Machado Graner faz um excelente trabalho como o filho que pode decidir o destino da mãe a partir de seu depoimento. Até mesmo o advogado da ré, interpretado por Swann Arlaud, precisa lidar com o fato de que a verdade absoluta nunca venha à tona. O filme nos confronta com essa possibilidade de que tudo é narrativa, tudo são escolhas, seja na ficção ou na vida real. O ponto de vista do observador, suas convicções e crenças e mesmo a relação com o acusado ou a vítima, são levadas em conta na construção de uma narrativa.
O roteiro, assinado por Justine Triet e Arthur Harari, é meticuloso para deixar sempre no limiar a elucidação completa do caso. É um jogo de revelar e esconder muito preciso e que brinca também com as falsas aparências. A mãe “fria/carinhosa”, o marido “frágil/manipulador”, o advogado “obstinado/vacilante”, e por aí vai. Chega a ser sufocante o modo como o roteiro vai costurando essas nuances ao longo de todo o filme. Por isso é impactante a cena em que Sandra e Samuel discutem a relação em meio a uma briga intensa, como se tudo fosse levado a esse momento de catarse no filme. O texto desta cena é incrivelmente bem escrito e a entrega de Sandra Hüller a torna ainda mais dilacerante.
Justine Triet usa um estilo de direção muito cru em Anatomia de Uma Queda, sem muitos artifícios (não há nem mesmo trilha sonora), o que ajuda a tornar seu mistério ainda mais potente. Porém, sua câmera vai fazendo comentários, pelo modo como os personagens são enquadrados ou mesmo os cortes bruscos que vemos nas cenas de tribunal. Nestes momentos, o longa discute as relações de poder que existem na sociedade e que colocam Sandra em uma clara posição de vulnerabilidade.
É a única verdade que o filme atesta de maneira clara: as questões de gênero atuam contra a ré, seja na tentativa de provar sua inocência, mas até mesmo em seu casamento. Ou seja, Sandra é também julgada por sua ambição, sua inteligência, sua força de vontade, sexualidade, atributos que nos homens nunca são colocados em questão.
Bem mais do que um drama de tribunal, mas ainda assim um excelente, cerebral e complexo filme desse subgênero, Anatomia de Uma Queda sustenta sua narrativa pela impossibilidade de vermos uma verdade completa, por mais evidente ou possível que ela possa parecer.
Leia mais críticas
- “As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco
- “Queer”: Quando desejo e drogas alucinógenas se dão os braços
- “Clube das Mulheres de Negócios”: boas ideias esbarram em narrativa acidentada
- “Wicked”: adaptação do musical da Broadway é tímida, mas deve agradar fãs de Ariana Grande
- “Herege”: com boa premissa, novo suspense da A24 se perde em soluções inconvincentes