O Segredo da Força Sobre-Humana
Alison Bechdel
Todavia, 240 páginas, R$ 134,90, 2023
Tradução de Carol Bensimon
Alison Bechdel, em seu projeto minucioso de investigação pessoal, tem conseguido apresentar obras que são ao mesmo tempo pessoais e universais ao abrir sua intimidade em obras como Fun Home e Você é a Minha Mãe?. Agora, em mais uma HQ autobiográfica, a autora norte-americana revisita sua relação com os exercícios físicos, desde a infância até a chegada aos 60 anos, em uma narrativa repleta de ironia e humor, mas sem deixar de lado momentos mais dramáticos, como sua relação com a ansiedade ou a descoberta das limitações do seu corpo.
Como em suas outras obras, a investigação pessoal de Bechdel é um veículo para discussões mais amplas e coletivas. Ao fazer uma HQ sobre sua relação com os esportes e exercícios, ela também traça um panorama histórico de como a sociedade ocidental evoluiu na busca de um corpo saudável. O livro é dividido em décadas, indo da autora na sua infância, aos 10 anos, passando pela casa dos 20, 30, 40 anos e assim por diante. É um passeio interessante que acompanha modas passageiras como as aulas de spinning, os vídeos de aeróbica, clubes de caratê feminista, mas também traz registros interessantes do surgimento de atividades como ioga, corrida e HIIT, hoje bem populares.
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O que Bechdel também deixa claro é que falar de nossa relação com o corpo é também falar de relações humanas e de como nos relacionamos com o nosso entorno. O que, em certa maneira, desconstrói a noção clichê do exercício como uma prática prioritariamente individualista. Metódica e obsessiva em alguns momentos, Bechdel buscou de todas as maneiras superar os próprios limites em todas os esportes e atividades em que praticou, mesmo que isso muitas vezes afetasse seus relacionamentos.
A HQ traz ainda reflexões pertinentes sobre as razões de se exercitar em um mundo moderno, indo muito além da discussão vazia sobre bem-estar e trazendo conceitos mais filosóficos sobre transcendência e nossa relação com o tempo e a natureza. No caso de Bechdel, fica também clara uma tentativa de manter sua própria vida sob controle, como se dominar seu próprio corpo a ajudasse a lidar com um mundo em constante transformação.
Como em seus outros trabalhos, Alison Bechdel também busca paralelos com figuras históricas e personalidades literárias. Aqui ela busca na biografia de nomes como Jack Kerouac, Margaret Fuller, Adrienne Rich e Samuel Colerigde pontos em comum para falar sobre os exercícios físicos. A autora traça ainda mais paralelos a partir da sua vida “fitness” ao abordar subjetividades LGBTQIA+, como o ativismo, sexualidade e as relações amorosas, além de questões políticas, relação com a criatividade e sua saúde mental (ela lidou com ansiedade e depressão durante toda a vida adulta).
Bastidores de Alison Bechdel
Para quem acompanha o trabalho de Alison Bechdel há mais tempo, O Segredo da Força Sobre-Humana traz ainda um sabor adicional que é acompanhar os processos criativos e bastidores da produção de suas obras mais conhecidas. Revisitamos sua relação com seu pai e o luto de sua morte (temas tratados no clássico Fun Home) e a conturbada relação com sua mãe, que é o foco de Você é a Minha Mãe?. Ao revisitar essas obras, a autora adiciona ainda mais camadas que instigam a releitura das HQs citadas.
Ao contrário das obras anteriores, aqui ela também reflete sobre sua relação com a criatividade e a fama. Bechdel é um dos casos mais emblemáticos de quadrinistas que furaram a bolha da cena de quadrinhos para se tornar uma celebridade cultural de peso. Além do enorme sucesso de Fun Home (bastante premiado e que foi depois adaptado para a Broadway), ela também fez fama por conta do Teste Bechdel, uma metodologia usada para definir se uma obra de ficção traz uma boa representação feminina. O teste se baseia em uma tira da série Dykes To Watch Out For, de 1985. A Todavia publicou uma seleção dessas tiras na coletânea O Essencial de Perigosas Sapatas, porém essa HQ específica acabou de fora.
Por essas e outras razões, O Segredo da Força Sobre-Humana soa como um encerramento de um longo projeto iniciado com Fun Home. Uma investigação pessoal que acaba dando conta de um largo espectro da vivência LGBTQIA+ no mundo através do tempo. Uma longa narrativa em que o pessoal e o político dialogam o tempo todo na tentativa de compreender diferentes temas.
O domínio da narrativa dos quadrinhos de Bechdel é impressionante. Com um traço realista, porém simples, ela promove uma imersão em seu universo cotidiano de maneira muito fluida. E, ao contrário de seus livros anteriores, sempre trabalhados e duas cores básicas, aqui vemos um trabalho todo colorido (assinado por Holly Rae Taylor, companheira da autora, para quem o livro é dedicado).
Um brilhante fechamento de uma das autoras mais generosas de sua geração. Ao abrir suas experiências pessoais na tentativa de compreender o mundo e a si mesma, Bechdel acabou fazendo parte da educação sentimental de inúmeros leitores LGBTs em suas jornadas pessoais por autoconhecimento. Não é pouco.
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Consuella, o filme que lançamos em 2023
2023 foi bem especial pra gente! Lançamos o curta Consuella, dirigido por Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!. O filme resgata a história de uma importante personalidade artística do Recife, que viveu seu auge nos anos 1970-80 e que abriu portas para diferentes artistas LGBTQIA+. O curta percorreu o circuito de festivais e teve uma première concorrida no Teatro do Parque, com a presença de pessoas que conviveram com Consuella, além da equipe que produziu a obra. Trata-se de uma importante memória da excelência trans, de alguém que ousou peitar as convenções tradicionais e conservadoras de sua época.