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Cena do filme "Geração 65 aquela coisa toda", de Luci Alcântara, que conta com depoimento de F. Monteiro. (Foto: Luci Alcântara/Cortesia da autora).

Algumas lembranças de Fernando Monteiro, por Paulo Cunha

Super-8, cartas e arte pernambucana: Professor e pesquisador, Paulo Cunha relembra a convivência com o escritor Fernando Monteiro, morto nesta quinta (13)

Por Paulo Cunha

Nós éramos de turmas bem distintas. Fernando Monteiro era um pouco mais velho (seis, sete anos, o que naquela fase fazia muita diferença), vestia-se de maneira mais formal e era mais fechado. Já formado em Sociologia, tinha passado um tempo na Itália e gostava muito de westerns, Howard Hawks, Visconti. Já o bando à parte do Super-8 era formado por cabeludos, recém-chegados na Universidade (a maior parte na Universidade Católica de Pernambuco) e aprecidores de Glauber Rocha, chanchadas e Godard.

Em 1973, quando o surto do Super-8 efetivamente começou no Recife, esse pequeno grupo se uniu a partir da influência paternal do crítico de cinema Fernando Spencer. Uma maneira de explicar seria essa: Geneton Moraes Neto começera, ainda menino, a escrever no suplemento Júnior do Diario de Pernambuco, também editado por Spencer (que acumulava essa tarefa com a página de cinema), e foi ali na redação que teve notícia do aparecimento das pequenas câmeras de Super-8 e dos primeiros festivais daqueles anos (Salvador, Curitiba). Na Unicap, Geneton espalhava a novidade e, de repente, todos começamos a bolar curtas experimentais.

Fernando Monteiro não dava muita bola para o Super-8. Achava coisa de amadores (tinha toda razão, é claro), longe das exigências técnicas e estéticas de um cinema rodado em 35 milímetros, gerando filmes que deveriam ser exibidos nas telas grandes das salas de rua. Os superoitistas sabiam que eram olhados por Fernando Monteiro com condescendência. Ou com um pingo de ironia. Em 1972, ele já havia realizado em 35mm o curta Visão Apocalíptica do Radinho de Pilha, no qual discorria sociologicamente sobre os impactos da cultura de massa no Nordeste. No bando do Super-8 nós gostamos do filme e principalmente adoramos o título. No ano seguinte, quando os cartuchos de 8 milímetros começaram a zumbir nas nossas maquininhas amadoras, Fernando Monteiro lançou um livro de poemas que também tinha um título impactante: Memória do Mar Sublevado.

E assim seguimos construindo esses dois caminhos, próximos porque lidávamos todos com cinema, com poesia — e no entanto distantes, porque as ambições eram muito diferentes.

Fernando Monteiro fez 15 curtas, retratando artistas (Brennand, João Câmara), debatendo a cultura brasileira e a arte popular (Bumba-meu-boi, Mercado de São José, arte rupestre). Um deles me encantou particularmente: Leilão Sem Pena, que nasceu assim de repente, durante uma caminhada de Fernando Monteiro pelas ruas do Recife. Grande flâneur, ao perceber que havia um leilão de móveis e objetos antigos, num casarão colonial que estava à venda, para ser derrubado e transformado em edifício, Fernando Monteiro convocou Rucker Vieira e com uma velha câmera e restos de negativo filmou cenas do leilão. O curta funciona com essas cenas e um texto belo e melancólico que depois viraria livro.

Quando fiquei um tempo fora do Recife, nos últimos anos da década de 1980, passamos a nos escrever. Cartas, de verdade, porque ainda não nos viciáramos em trocar e-mails. Discutíamos coisas estranhas, como a cultura muçulmana e o cinema de Antonioni. Devo ter essas cartas guardadas em alguma pasta.

Nos reencontramos em 2022. Eu escrevera a biografia de Rucker Vieira e, sabendo que haviam trabalhado juntos, pedi a Fernando Monteiro para escrever o prefácio. Em plena pandemia da COVID, nos falamos muitas vezes pelo telefone, trocando ideias sobre Rucker (ele me deu informações preciosas que acabei incorporando ao livro), e sobre o cinema. Acabei percebendo que tínhamos mais coisas em comum do que eu mesmo acreditava pelas lembranças dos anos 1970.

Agora, com sua morte, sinto como foi ótimo ter convivido com Fernando Monteiro, que cobrava rigor e honestidade dos amigos.

Paulo Cunha é pesquisador e professor titular aposentado da UFPE, realizador de curtas do Ciclo do Super-8 do Recife.