Nota do editor: Este texto foi publicado em uma versão anterior de O Grito!, em maio de 2010. Reeditamos para destacar a memória e a relevância do trabalho de Zé Celso. Zé Celso morreu na quinta (6) após um incêndio em seu apartamento.
NO VIETNÃ TROPICAL O PALCO ERA DE BATALHA
Desafinando o coro dos contentes, agredindo o mundo pacato do cidadão de bem. Era essa a premissa da peça Roda Viva, exibida em 68 e alvo do ataque do Comando de Caça aos Comunistas
Por Thalles Junqueira, especial para O Grito!
“Você acha que a gente pode admitir aquela putaria com a Virgem Maria? Botar Nossa Senhora de bobs na cabeça!… Eu não acredito em porra nenhuma de religião, mas um negócio desse não pode. Vocês acham que as famílias vão ao teatro para ver isso?” Um homem atarracado e corpulento, vermelho, alourado e com olhos de ódio questionava ameaçadoramente Caetano Veloso. Esse homem era sargento de uma Vila Militar do Rio de Janeiro onde o cantor e compositor estava preso. Numa sala mobiliada como um escritório, sentado em frente ao sujeito com pinta de diretor escolar, Caetano argumentava não ter achado a cena ofensiva. “Você é amigo daquela corja que montou a peça, né?”. E continuou em tom de confidência: “Pois eu estava lá. Eu fui um dos que desceram a porrada naquele bando de filhos da puta!”
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A corja de filhos da puta eram atores do Teatro Oficina. A tal peça inadmissível era Roda Viva que se tornou um acontecimento singular do teatro brasileiro de 1968. O texto de Chico Buarque com direção de José Celso Martinez Corrêa foi apresentado naquele ano pelo Oficina e veio na esteira de diversas manifestações artísticas que questionaram o lugar da classe média no contexto autoritário brasileiro, mas com uma violência e agressividade até então desconhecidas em nossos palcos de batalha. Sendo o primeiro trabalho de José Celso depois da guinada que representou sua montagem tropicalista de O Rei Da Vela, de Oswald de Andrade, Roda Viva levou às últimas conseqüências o estilo anárquico iniciado pelo diretor em 67.
Os espectadores da primeira fila do teatro eram agarrados e sacudidos pelas atrizes, vestidas de garotas-propaganda, que berravam “comprem! comprem!”. Uma música sacra anunciava a crucificação de um famoso cantor popular da televisão. No corredor do teatro iniciava-se um ritual antropofágico no qual as atrizes representando fãs disputavam, estraçalhavam e devoravam um fígado de boi cru, simbolizando o coração do cantor que acabava de morrer. Não raro, aqueles que estavam sentados nas poltronas do meio junto ao corredor, eram atingidos pelo sangue verdadeiro que vinha do fígado, erguido pelas mãos crispadas da fanática turba. Além das “macacas de auditório” devorando o ídolo morto, a pura e honesta noiva do falecido, depois de simular sexo com uma câmera, era coroada rainha da televisão, com manto, coroa e biquíni, assumindo a imagem da Virgem Maria, sem, no entanto, tirar os rolinhos de cabelo de dona de casa.
Tudo isso acontecia em tom de revelação e não poupava nada nem ninguém, fossem os atores convertidos em Coro bárbaro ou os espectadores que assistiam a tudo aquilo estarrecidos. No dia 18 de julho de 1968, após mais uma noite de apresentação no galpão do Teatro Ruth Escobar (SP), cerca de vinte homens encapuzados do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, armados de cassetetes e soco inglês sob as luvas invadiram o local, depredaram o cenário, destruíram os equipamentos e espancaram os atores, principalmente as mulheres.
Marília Pêra estava no elenco e foi agredida no camarim. Primeiro lhe bateram com um cassetete, depois suas roupas foram rasgadas e ela foi arrastada nua para avenida. Em um jornal da época, ela disse que não apanhou mais porquê a camareira veio em seu auxílio, jogando-se sobre ela para defendê-la. “Marília Pêra diz que se encontrar seu agressor poderá reconhecê-lo. Mas que não sabe descrevê-lo: ‘Era uma fisionomia moça de cerca de 30 anos, mas com um rosto terrivelmente deformado pelo ódio.”, trazia com destaque o jornal.
O exército nunca admitiu participação no caso que ficou conhecido como ação exclusiva do CCC, mas o sargento que disse para Caetano ter descido o pau na corja de filhos da puta mostra que os militares poderiam estar envolvidos nesse episódio bizarro. Roda Viva fez escândalo não por usar um tom político que desafiava o regime ditador ou pelo quebra-quebra protagonizado pelo CCC no Ruth Escobar, mas sobretudo, pela selvageria de sua proposta cênica.
A celebração ritualística do Coro de Roda Viva expandiu a ribalta, rompendo as fronteiras entre ator e público de maneira violenta: os atores abandonavam a jaula do palco, avançando sobre a platéia, sacudindo e encarando os espectadores, fazendo perguntas e pedindo assinaturas em manifestos. A peça, contudo, não esclareceu o limite entre a provocação real e a artística, extrapolando os conceitos artaudianos do Teatro da Crueldade e gerando forte tensão entre “um grupo unido – o nosso no palco”, como explicaria José Celso, e o público, “um grupo ainda não solidário, ainda estraçalhado, ainda morto”.
Antes desse episódio no Ruth Escobar, já eram constantes as ameaças de ataque, nos mais diversos níveis, aos artistas e à Roda Viva. Essas ameaças partiam de grupos que em nome da família brasileira e dos bons costumes queriam acabar com manifestações subversivas. Depois da invasão do CCC, a peça ficou pouco tempo em cartaz, sofreu algumas modificações no elenco e iniciou uma turnê, a começar por Porto Alegre. Com casa lotada, o espetáculo fez sua estréia no sul. Durante o intervalo foram espalhados panfletos com os dizeres: Hoje poupamos a integridade física dos atores e espectadores, amanhã não!
Na manhã seguinte o teatro estava todo pichado. Os panfletos também foram espalhados pelas ruas da cidade e a peça foi censurada por respeito “às nossas mais arraigadas tradições cristãs, que figuram entre os componentes ativos da nossa sensibilidade cívica.” E Zé Celso dizia: “Os jovens não querem compactuar – querem um teatro de choque. Por isso devemos criar um, dois, três Vietnãs culturais”. E muitos vietnãs foram criados por bichos que desafinavam o coro dos contentes, agredindo o mundo pacato do cidadão de bem. Abaixo da linha do equador, vietcongs tropicalistas nos palcos de batalha lutavam pelo movimento de papel crepom e prata, por Eros, pelo direito de trepar, de comer, de dizer o que quiser, pela liberdade absoluta na explosão do superego, pois aquele era o tempo sem tempo de temer a morte: tempo 68.