Mais recente longa-metragem do cineasta pernambucano Cláudio Assis, Piedade estreia nesta semana (05/08) comercialmente nas salas brasileiras, após um longo tempo de espera devido à pandemia. O momento, no entanto, traz uma triste coincidência para o filme: está proibido, desde o final de julho, e por tempo indeterminado, o banho de mar em um trecho da praia que fica próximo à Igrejinha de Piedade, no Grande Recife. A medida foi adotada após ocorrerem dois ataques de tubarão nessa área em 15 dias, que resultaram em uma morte e em um ferido. A decisão foi do Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit) e da prefeitura de Jaboatão.
Na piedade de Assis, na mesma praia, porém, a população luta para manter-se sã diante do abandono causado pela chegada de uma petrolífera, cuja exploração da região não só mudou o cenário natural, transformando-o em ilhotas e lagoas uma boa parte de um gigantesco recife, e também trouxe poluição o suficiente para zerar o turismo na região. “Pra mim, filmar Piedade foi de uma loucura tão grande, tão medonha, que eu me sinto empolgado, me sinto fora de mim”, revela o diretor.
O realizador nascido em Caruaru é um incansável: trilha sonora do filme A luneta do tempo (2014), dirigido por Alceu Valença, a música “O sertão precisa é disso” ganha videoclipe de nova versão. A regravação foi feita pelo cantor e compositor Juba, filho de Alceu, para seu álbum de estreia, Ethos (2020), junto com a banda Anjo Gabriel. O videoclipe estreou em junho, em comemoração aos 123 anos do nascimento de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Em meio a uma conversa entre vizinhos, Juba convidou Assis para assinar a direção do clipe. Também participaram do projeto os diretores Bernardo Valença e Carol Montenegro. O videoclipe foi gravado no Parque Nacional do Vale do Catimbau, no Agreste de Pernambuco, e faz uma espécie de prólogo de A luneta do tempo. Inspirado no imaginário do cangaço e do misticismo sertanejo, Juba interpreta uma figura profética que consegue enxergar diferentes momentos do tempo enquanto sobrevoa o parque.
A figura do cangaceiro remete automaticamente a outro Lampião que marca a carreira de Assis: o personagem interpretado pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos no longa-metragem Baile Perfumado (1996). Nos idos de 1985, com o fim da ditadura militar, a efervescência do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco representou um capítulo importante para o cinema nacional. Um vislumbre de Retomada, mesmo que lenta, da produção profissional no estado. O filme, dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, com produção de Assis e de Marcelo Gomes, é visto como um pontapé desse momento. Hoje, Assis e seus colegas que ajudaram a edificar a cena, agora assistem ao desmonte das conquistas. “Nós não temos governo, não temos nada nesse Brasil”, detona.
No começo dos anos 1980, Assis dirigiu pelo menos quatro curtas antes de compor a equipe do filme, entre eles Padre Henrique – Um Crime Político (1989) e Soneto do Desmantelo Blue (1993). Em 2002, Cláudio dirigiu o primeiro longa, o marcante Amarelo Manga, dando início a uma das filmografias mais reconhecíveis do cinema brasileiro da retomada. De personalidade forte e destemida, Cláudio tem mantido uma postura impoluta ao longo do anos, construindo uma obra que já conta com cinco longas, a maior parte deles vencedores de festivais nacionais. Só no Festival de Brasília, ele conquistou três vezes o cobiçado Candango de Melhor Filme: Amarelo Manga, Baixio das Bestas (2007) e Big Jato (2015). Em 2011, Febre Rato ganhou o “Troféu Menina” do Festival de Paulínia.
Nesta entrevista, Cláudio Assis fala da própria vida, do seu clipe, carreira, além de detalhes do filme realizado com a atriz Fernanda Montenegro e com o ator Cauã Reymond. Confira:
Seu trabalho mais recente é “O Sertão Precisa Disso” de Juba. Como foi pensada a direção para o videoclipe?
Simplesmente, a gente mergulhou no universo do Sertão do Catimbau. O que significa isso? A importância que tem essa dramaturgia e essa eloquência do lugar. É um lugar que responde muito por essa questão. Juba, eu e a equipe discutimos, então, que lugar seria esse. E isso foi do caralho!
Como e quando você descobriu o cinema?
Faz tempo! Faz um tempo da gota serena que eu descobri cinema. Eu fiz teatro, né? Fiz teatro com o [teatrólogo] Vital Santos, em Caruaru. Daí, eu descobri que tinha que fazer uma outra coisa. Eu tinha um certo olhar e esse olhar me carregou pra cá, pra Recife. Então, eu fiz o Padre Henrique [curta-metragem “Padre Henrique — um crime político” de 1987, sobre vida e morte do religioso assessor de Dom Helder Câmara, que foi assassinado pelos órgãos de repressão]. Foi esse filme que me detonou. E a gente tava com uma turma muito guerreira, combativa, eloquente mesmo. Então, tudo isso foi um processo. Eu só fiz arrumar amigos, que contribuíram universalmente com o meu trabalho.
Você tem uma relação quase epidérmica e intensa com o Festival de Brasília ao longo de sua carreira. Quais momentos você destaca desses anos todos?
Brasília, pra mim, é como uma cidade-irmã. Ela é muito parecida com a minha aqui. Brasília representa o poder central. Eu sempre fui lá: como cineclubista, curta-metragista, diretor de longa-metragem… Eu sempre briguei com o poder e, em Brasília, sempre ganhei prêmios lá. É uma coisa louca e maravilhosa pra mim! É empolgante, instigador. O nosso universo bate o bombo. E onde bate o bombo? Em Brasília! Pra mim é do caralho!
Em Piedade, você aborda a construção do Porto de Suape e de como tudo impactou no ecossistema e nas relações das pessoas com as praias. O que você quis destacar? É algo familiar pra você?
Existe aqui o tubarão. Pra mim, ele é uma coisa eloquente, uma coisa louca, maravilhosa! A Fernanda Montenegro faz um papel que representa a minha mãe. E o Cauã Reymond representa o meu irmão. São pessoas da minha família, da minha comunidade. Pra mim, filmar Piedade foi de uma loucura tão grande, tão medonha, que eu me sinto empolgado, me sinto fora de mim. É bacana de se ver, pode acreditar!
Em Piedade, Irandhir Santos interpreta Omar Sharif e canta, sentado sobre uma rocha de frente para o mar, os versos de “Perseguição”, música de Sérgio Ricardo feita para a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, clássico de Glauber Rocha. Além de uma certa ligação histórica sua com o Cinema Novo de Glauber, revelando ao Brasil as mazelas de seu povo, a cena é a peça-chave para compreender a constatação que ampara o filme nos mecanismos de opressão que se tornaram mais sutis, embora igualmente brutais?
Você ver esse tipo de relação com Gláuber Rocha, tudo isso que você falou pra mim é do caralho. Simplesmente, é bater no mesmo bombo, bater no bombo certo, na mesma hora.
É papel do cinema fazer este tipo de denúncia?
O cinema tem um papel de andar na vanguarda, tem que ser o detentor de todas as coisas, ele tem quer fazer tudo isso. A sua função é essa: determinar, gritar e dizer para os quatro cantos do mundo e dizer o que o mundo tá sentindo. É isso, essa é a questão do cineasta.
Em Amarelo e Febre do Rato a câmera é urbana, ela anda atrás das coisas. Em Baixio das Bestas a câmera absorve o tempo parado daquelas pessoas. Como é a câmera de Piedade?
É uma câmera visionária, que vê e assimila as coisas. É uma câmera do Marcelo Durst maravilhosa, sensacional.
Como se prepara para as filmagens? Realiza storyboards? Faz muitos ensaios?
Eu realizo e conto as histórias para as pessoas. Eu converso os atores, fotógrafos, depois reconverso. Eu trabalho no anteparo das coisas, convivendo com as pessoas. O meu trabalho como diretor é fundamental, pois eu fico contemplando, desde roteiro, passando pela questão técnica e todas as etapas. É questão de contemplar o que você vai ver e observar o que você vai querer dizer. É algo maior do que o cinema em si. É uma questão que eu tenho que dominar, eu tenho que controlar, saber o que eu vou fazer e dizer para as pessoas. E isso tem que ser sincero, tem que ser honesto, tem que ser olho no olho, tem que ser verdadeiro! O que eu quero do fotógrafo, da atriz, do maquiador, de todas as pessoas, todos que estão envolvidos no projeto.
Alguns consideram seus filmes violentos. Considera isso uma hipocrisia?
Hipocrisia? Eu não tô preocupado com isso. Eu acho que a sociedade é muito mais violenta do que o meu cinema. O meu cinema faz crer. É um cinema objetivo, dinâmico, determinante. Eu faço jus ao dinheiro que eu pego do público, do Governo do Estado. É um cinema que eu faço questão de demonstrar as coisas que estão ditas ali. Pra mim, esse cinema é uma questão de caráter, de amor e de respeito à humanidade. Por isso que eu faço cinema.
Você poderia falar um pouco sobre sua parceria com Hilton Lacerda? Como funciona?
Hilton, pra mim, é um amor de pessoa. É uma pessoa genial. A gente dialoga e tem um respeito e é uma coisa muito carinhosa, muito legal, muito bacana.
Como está sendo esse período de pandemia? Você já está trabalhando em uma nova obra?
Tô trabalhando no Gigante pela própria natureza. É um projeto pré-aprovado, aprovado, aliás, mas eu e nem ninguém pode fazer nada. É um filme de anões, de nanicos, de pessoas pequenas, mas são grandes, são enormes. Eu tenho ele na minha cabeça há cerca de 15 anos e só desenvolvi agora, mas é um filme do caralho. Nós vamos fazer. É questão de tempo! E o Matheus Nachtergaele disse que quer fazer um personagem de joelhos. Eu não sei se eu quero colocar esse filho da puta não [risos].
Como o atual governo tem tratado a classe artística no Brasil?
O atual governo? Nós não temos governo, não temos nada nesse Brasil. Nesse país a gente tá fodido, fadado ao fracasso. Nós temos que retomarmos essa questão pra ver pra que lugar nós vamos caminhar. Nós temos que lutar por uma vida melhor pra todo mundo, para todas as pessoas. Não é só o cinema, não só o teatro, não só a dança, a música… mas todas as questões… etc e tal. Tem que lutar, lutar e lutar sempre!