O aborto no Brasil é uma das maiores causas de morte materna. Segundo o Ministério da Saúde, quase 200 mil internações são registradas por ano devido à complicações pós-abortivas, sobretudo hemorragias. O tema, que deveria ser tratado como um assunto de saúde pública, quase sempre assume um viés punitivista e moralista. O alvo, em sua grande maioria, são as mulheres negras e pobres. É este o mote de Tira, reportagem em HQ feita por Nathallia Fonseca e Eduardo Nascimento e ilustrada por Berta V.
O debate segue intenso, sobretudo depois dos avanços pró-legalização em diversos países ao redor do mundo. Os contrários ao procedimento diz que o ato significa o assassinato do feto, enquanto que os que pedem uma revisão da lei dizem, entre outros argumentos, que a interrupção da gravidez é um direito da mulher e uma questão de saúde. Segundo a legislação brasileira, o aborto é permitido em caso de estupro, quando a gravidez põe em risco a saúde da mãe ou quando é comprovado que o feto é anencéfalo.
Enquanto a discussão segue polarizada, o aborto clandestino segue firme. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, mais de meio milhão de brasileiras já realizaram o procedimento. Desamparadas da lei, muitas mulheres recorrem às clínicas ilegais, muitas delas sem as mínimas condições sanitárias. Ou acabam fazendo por conta própria aumentando o risco de complicações decorrentes do uso incorreto de medicações.
A HQ foi financiada pelo edital Jornalismo Investigativo em Direitos Humanos Aborto e Saúde Pública, do Instituto Patrícia Galvão em parceria com a Global Health Strategies e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. A obra está disponível para leitura online.
São três histórias reais de mulheres que fizeram o aborto e que tiveram suas vidas transformadas pelo ato. A HQ tem como sua maior força humanizar o que, em geral, é tratado apenas como estatística. O aborto clandestino é uma violência contra a mulher. As histórias relatam casos de assédio por parte dos médicos que realizaram os procedimentos abortivos, o descaso dos genitores e as péssimas condições das clínicas ilegais do Recife. Fala também dos julgamentos morais do sistema de saúde, que deveria amparar, mas acaba amplificando a violência de quem busca auxílio.
O roteiro da HQ é ágil e tem boas saídas para entrecortar as histórias. Nathália e Eduardo também conseguem destacar o lado psicológico dessas mulheres, que passam a lidar com a culpa e com todos os problemas ligados àquela decisão. O desenho de Berta V. tem uma ótima ambientação e expressividade, ainda que, por vezes, sofra da falta de fluidez na narrativa, mas nada que prejudique o resultado final.
A obra é um testemunho importante de um assunto urgente. Seu principal papel é sensibilizar o leitor para o drama humano envolvendo o aborto, o que independe de posicionamentos políticos.