Quando ainda era uma menina, a paulistana Aline Bei recebeu de sua mãe a tarefa de segurar o canário que tinham em casa para que pudesse cortar suas unhas. O pássaro ficou tão assustado que acabou morrendo nas mãos de Aline. “Foi muito impressionante. Ele estava vivo, piando, pra morrer segundos depois na minha mão”, contou ela em entrevista para o site Livre Opinião, Ideias em Debate, onde atua como colunista. A imagem não deixou a autora que, anos mais tarde, a resgatou para compor seu primeiro romance, O Peso do Pássaro Morto, lançado no ano passado pela editora Nós em parceria com o selo Edith. No livro, a imagem do pássaro morto recebe conotações muito mais sombrias, servindo como metáfora para o peso de perdas cujas feridas o tempo não é capaz de curar.
Inspirada tanto pelo poema A arte de perder, de Elizabeth Bishop, como também pelo romance Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza, Aline Bei apresenta ao leitor a história de uma mulher sem nome, narrando a sua vida desde os 8 anos até os 52. Uma vida marcada pelas perdas e interrupções: a morte de entes queridos, a violência sexual, a maternidade indesejada, o isolamento.
O que mais impressiona é a habilidade com que Bei vai transformando a voz da personagem a medida em que o tempo passa, indo da uma menina que sonha um dia trabalhar como aeromoça (“e nunca mais nenhum idiota do colégio vai mexer comigo. estarei nas nuvens, não vou ouvir”) até a mulher deprimida, devastada por um sentimento de culpa, cada vez mais resignada com o seu destino e sua solidão.
aproveito e tiro uma foto
de dentro da minha cabeça. daqui um tempo
olharei para ela e
ficarei triste
por ser eu mesma
e não haver outra saída possível pra deixar de ser eu e
ainda assim seguir vivendo.
O mais tocante é que a história da protagonista poderia ser a história de qualquer uma de nós. “A história dela, infelizmente e absurdamente, ainda é a história de muitas mulheres que se calam diante da violência”, diz a autora, afirmando que a vida de sua personagem poderia ter sido diferente caso ela tivesse procurado ajuda: “Espero que o silêncio dela incomode ao ponto de revisitarmos nossos próprios medos de dizer”.
Dona de um estilo original, que mistura elementos da prosa e da poesia, distribuindo as palavras pelas páginas como forma de conferir um ritmo próprio à narrativa, Aline Bei surge como um dos nomes mais promissores da literatura contemporânea brasileira. Não à toa, O Peso do Pássaro Morto é um dos finalistas do Prêmio Rio de Literatura, na categoria Prosa de Ficção. Um reconhecimento mais do que merecido.
Confira abaixo a íntegra da entrevista com Aline Bei (as respostas respeitam a poeticidade única da escrita da autora:
Logo cedo, aos 8 anos, a protagonista escreve uma redação em que afirma que “a cura não existe”, o que, de certa forma, me pareceu dar o tom do romance, já que a cura nunca acontece na vida dela, mesmo com o passar do tempo. Na verdade, o tempo adiciona novas perdas. Você compartilha desta visão melancólica da vida?
essa frase é uma provocação, não uma cruz. sabemos que a vida tem seus momentos
de prazer e dor inclusive simultaneamente, mas acredito que mesmo nas horas mais difíceis a gente sempre ganha alguma coisa, o desafio é saber enxergar.
Algo que me chamou a atenção é que vários personagens, incluindo o agressor, possuem um nome próprio, mas a protagonista não. Por que essa decisão de mantê-la anônima?
nunca ser chamada potencializa a solidão.
depois porque a história dela
infelizmente e absurdamente ainda é a história de muitas mulheres
que se calam diante da violência e por calarem
jamais saberemos seus nomes.
A história fala de perdas mas também de sonhos interrompidos, violações e agressões que parecem levar a personagem à depressão, e o resultado é que ela apresenta uma imagem apática, cujo sofrimento é invisível para todos os outros. É uma condição da qual muitas pessoas compartilham. Você acredita que a história dela poderia ter sido diferente caso tivesse buscado algum tipo de ajuda?
sem dúvida. espero que o silêncio dela incomode
ao ponto de revisitarmos nossos próprios medos de dizer.
Ainda nessa questão, ela sofre violências muito específicas, marcadas pela misoginia: a violência sexual, a culpa e a vergonha de denunciar a agressão, o medo do aborto (ainda que o procedimento seja permitido por lei em casos de estupro), a maternidade indesejada – temas ainda considerado tabus. Poderia comentar um pouco sobre como você vê a discussão acerca dessas questões no Brasil?
tragicamente atrasadas, essas discussões, por estarem sempre enraizadas muito mais nos preconceitos e podres poderes
do que nas pessoas que estão sofrendo de fato.
Você uma vez escreveu que ler é tão bom” porque “amplia o interior das pessoas. Elas encaixam outras vidas nas delas e é disso que o mundo precisa, de empatia”. Com a história, houve uma vontade consciente de dar voz às mulheres que se calam na esperança de chamar atenção do leitor para essas dores?
sim. talvez aí mais um motivo para a personagem não ter nome: para que o leitor vista a narrativa no próprio corpo.
Você contou diversas vezes que o embrião do livro surgiu a partir da imagem de uma situação da vida real, em que um pássaro morreu na sua mão – inclusive dedica seu livro a ele. Mas eu gostaria de saber mais sobre essa personagem: de onde veio a inspiração para criá-la? Há algo de você ou da sua trajetória na personalidade da sua protagonista?
eu quis escrever uma história sobre perdas, escolhi uma voz feminina como protagonista dessa trajetória ficcional, mas claro que emprestei algumas memórias para o livro.
Ouro Preto, por exemplo, foi uma cidade que conheci em 2014 e que me encantou.
a obsessão pelos cães também é minha.
O seu texto é um híbrido de prosa e poesia, tanto na linguagem quanto na forma. Quando começou a experimentar escrever da certa e perceber que funcionava? Você também escreve poemas? Tem desejo de escrever um livro de poemas no futuro?
não penso muito em gênero quando escrevo. esse estilo de dizer na página nasceu de forma espontânea e desde então tenho investigado as possibilidades rítmicas e imagéticas que essas quebras proporcionam na minha narrativa.
nunca escrevi poemas.
acredito que a Poesia é algo raro.
Você mantém um contato bastante direto com o leitor através das redes sociais. Acha que essa relação vem ajudado na construção de um público? O que você acha que autores e autoras estreantes/independentes podem fazer para conquistar espaço no mercado literário?
sim, bastante próximo, esse tem sido um jeito de fazer o Pássaro chegar nas pessoas,
meu livro quase não está nas livrarias e ainda que estivesse: acabaria empoeirado no meio de tantos e de tudo.
acho que cada autor deve agir conforme lhe pareça certo, principalmente não deve ter medo de seguir seus instintos. lute pelo seu livro é o grande mantra.
Na música, existe o chamado “fantasma do segundo álbum” em que os artistas costumam dizer que “você tem a vida toda para compor o seu primeiro disco e seis meses para compor o segundo”. Minha pergunta é: você sente alguma pressão interna ou ansiedade em relação ao próximo trabalho devido ao sucesso do primeiro?
procuro silenciar essas pressões e focar apenas no meu trabalho diário,
Ler e Escrever.
Por falar em música, eu li que muitas vezes você escreve cenas a partir da atmosfera de uma música ou busca músicas que se encaixam em suas ideias. No caso do Pássaro, quais são as músicas que você acha que combinam com o livro?
escrevi o Pássaro ao som de uma única música: Gymnopédie No.1, do Satie.