Menos imponentes e apostando na disco-music e no sintetizador, o grupo usa o pop para fazer reflexão
O Arcade Fire tem passado a carreira inteira contestando aspectos do cotidiano que são difíceis de lidar uma vez que são bastante presentes, ou melhor, são intrínsecos à existência. É realmente bem pesado quanto parece. O grupo lança este mês seu quarto trabalho de estúdio, Everything Now, o primeiro que sai pela Columbia/Sony, após anos no selo independente canadense Merge.
Se no primeiro disco, Funeral, eles falaram de amor e morte enquanto rememoravam a infância, os trabalhos seguintes foram mais ousados tematicamente ao abordar nosso modo de vida e a sociedade de consumo. Em Reflektor, a segunda obra-prima do grupo depois do álbum de estreia, eles comentaram a paranoia e o desespero que dão a tônica de um mundo hiperconectado cheio de pressões, expectativas irreais e falta de conexão entre as pessoas.
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Crítica de Reflektor: apocalipse e desconexão
Mas em Reflektor tínhamos ainda um grupo que parecia afastado do universo que abordavam, como se usassem o rock como um pedestal para tratar de temas tão complexos. A imponência da banda soava como um requisito para uma crítica contundente ao mesmo tempo em que criavam sons catárticos, cheios de orquestração, coros e rifes criativos de guitarra. Everything Now segue com a mesma temática do trabalho anterior e se aprofunda ainda mais nos problemas de nossa cultura tóxica de narcisismo, frivolidade e distanciamento. Mas o grande diferencial aqui é sucumbir, mesmo que ironicamente, a esse universo, fazendo um trabalho mais sarcástico, pedestre, e com uma miríade maior de estilos, a começar pela disco, que dá a tônica do disco.
A presença de Thomas Bangalter, do Daft Punk, na produção das principais faixas e de Steve Mackey (do Pulp), que trouxe seu sintetizador para praticamente metade do disco, nos fazem perceber logo de cara que este é um Arcade Fire diferente do que estávamos acostumados. No pacote de estilos em que buscaram inspiração está o reggae, afrobeat, newwave e, fortemente, no pop. A mudança de direção de sonoridade, em geral, é benéfico para qualquer banda. E faz parte de um processo de descoberta que é essencial para qualquer grupo com planos de carreira longeva. Reflektor já trazia um namoro com as batidas dance dado a presença de James Murphy, do LCD Soundsystem entre os parceiros de produção, mas aqui os canadenses aprofundam ainda mais esse relacionamento.
No trabalho anterior os ritmos dançantes estavam unidos a um conjunto de imagens poderoso, que buscava no mito grego de Eurípide e Orpheu as alegorias para um mundo onde as pessoas estavam se distanciando mesmo estando tão próximos. Em Everything Now, ao contrário, as imagens reveladas pelas letras são mais diretas, com pouco espaço para reflexão ou imaginação por parte do ouvinte. Ainda assim, os temas tratam de assuntos que incomodam pois verdadeiros demais. Vamos simbora olhar diretamente para o ridículo de nossas vidas, de nossas selfies, do excesso de conteúdo que nos sufoca e confunde. A religião aparece novamente, mas dessa vez como forma de comentar a relação conflituosa com Deus, quase como se esperássemos Dele um contrato ao estilo “pague/receba”, compensatório.
Enquanto na sonoridade o grupo buscou novos caminhos, na persona artística, se mantiveram os mesmos. Win Butler segue encarnando o “pastor roqueiro”, liderando os vocais das músicas e Régine Chassagne traz o contraponto vocal agudo e doce. “Everything Now”, faixa que estreou a divulgação desse novo álbum, abre com uma crítica ao consumo desenfreado e é levado por uma melodia disco-music setentista cujo tom alegre contrasta com a letra que diz “pare de finger, cada vez que você ri é falso”. “Signs of Life” segue falando de futilidade, de uma noite vazia de vidas igualmente vazias e o tom “club” permanece, com batidas dançantes.
“Creature Comfort”, a melhor faixa do disco, remete ao Arcade Fire mais inventivo dos discos anteriores e conta com a incrível dinâmica de Butler e Régine. A letra chega com os dois pés no peito para tratar de privilégios e desejo desesperado por atenção. Aqui eles fazem até uma referência a si mesmos ao falar de suicídio assistido. “Ela sonha em morrer o tempo todo/ Ela me disse que chegou bem perto / Encheu a banheira e colocou nosso primeiro disco”. Em Funeral, o grupo tratou do suicídio como último recurso de se livrar do sofrimento. Aqui, os contornos são mais complexos e trata da morte como uma forma de lidar com as pressões sociais por um corpo perfeito, uma vida perfeita. “Alguns garotos se odeiam / Algumas garotas odeiam seus corpos”, diz a letra, seca e direta, sem rodeios.
Outras faixas do disco se perdem em sua própria tentativa de soarem pop como é o caso de “Chemistry”, monótona em sua levada de dois tempos que tenta lembrar uma nostálgica faixa oitentista. A dupla de faixas “Infinite Content” e “Infinite_Content” baseiam-se puramente no subterfúgio de terem a mesma letra e trazerem arranjos sonoricamente opostos (um rock pesado de bateria rápida e uma balada meio country), enquanto “Peter Pan” tem uma letra tão rasteira que nem parece ter sido escrita pelo Arcade Fire. “Put Your Money On Me” traz somente obviedades em sua letra sobre corrupção e desejo doido por dinheiro, mas esteticamente é só uma faixa monótona com uma base de sintetizador. Mas o synth-pop também fez boas aparições em Everything Now, como é o caso de “Electric Blue”, cantada por Régine Chassagne, que entra para as melhores faixas da banda.
Ao retrabalhar sua poeticidade, o Arcade Fire mostrou que o pop pode ser profundo e tratar de temas desconfortáveis. Menos conceitual e transcendental, o Arcade Fire decidiu por uma aproximação com o senso comum e com o mundo que sempre abordaram a partir de um púlpito. Aonde essa mudança os levará, ainda é difícil dizer.