Entrevista: Paula Mastroberti

paula mastroberti

UM NOVO OLHAR PARA OS CONTOS DE FADA
HQ Adormecida – Cem Anos Para Sempre demorou 22 anos para ser publicada e marca estreia da escritora gaúcha Paula Mastroberti

Por Paulo Floro
Editor da Revista O Grito!

A gaúcha Paula Mastroberti tem formação em Artes Plásticas e doutorado em Letras, por isso é curioso que sua primeira obra em quadrinhos, gênero que une como eficácia essas duas artes, tenha ficado escondido durante mais de 20 anos. Paula começou a fazer Adormecida – Cem Anos Para Sempre em 1988 e finalizou em 1990. A obra ficou guardada por diversos motivos, entre eles o humor do mercado editorial à época, bem mais tímido para propostas autorais. Estudiosa dos contos de fada e seu significado nas sociedades contemporâneas, ela trouxe uma visão bem particular do mito da Bela Adormecida. Inspirada nas HQs europeias de Moebius e outros autores de ficção e fantasia, ela fez da HQ um objeto de admiração particular por muito tempo.

Agora, a editora 8Inverso revela essa obra no mercado editorial brasileiro. O livro chega em um momento de evidência dos contos de fada na cultura pop (com bons e péssimos exemplos, diga-se). A autora é conhecida por suas reinterpretações de narrativas clássicas, como Dom Quixote, Odisseia e Hamlet. Como escritora, já foi premiada com o Jabuti e o selo da FNILJ – Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil. Entre suas obras, destaca-se Cinderela – Uma Biografia Autorizada (Editora Artes e Ofícios) “Essas histórias falam do humano em sua natureza mais profunda, por isso prosseguem causando empatia”, diz.

Pronta para adentrar com vigor nos quadrinhos, ela revela em entrevista à Revista O Grito! as dificuldades de se trabalhar com o gênero no Brasil e antecipa seus novos trabalhos na área. Confira na entrevista abaixo.

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Você sempre gostou de contos de fada? Como é a sua relação com esse tipo de literatura?
Sim, sempre gostei de contos de fada, e não perdi o interesse por eles nem mesmo durante a adolescência, porque sempre curti muito as sagas mitológicas, de onde esses contos derivam. Meu interesse por eles foi se aprofundando, na medida em que ia tendo contato com suas compilações escritas mais antigas e originais, como as de Giambatista Basile, de Charles Perrault e dos irmãos Grimm. Percebi que eles se interconectam à literatura fantástica e mesmo a de terror, dependendo do caso, além de, é claro, com a cultura popular. E eu tenho um gosto preferencial pela literatura e quadrinhos do gênero fantástico.

Os contos de fada estão sendo na berlinda da cultura pop hoje em dia, com novas versões na TV, cinema e quadrinhos. Você acha que ainda existe muito a ser explorado nessa seara? Você acompanha alguma dessas obras?
Acho que essas narrativas sempre dão pano pra manga, porque estão ligados às raizes de todas as narrativas, que são os mitos. Mesmo na história mais prosaica, mais realista, a gente pode perceber um diálogo com a saga, com a fábula, com a lenda. Tratam-se de gêneros flexíveis e superprestativos como estrutura de base para outros roteiros. Em geral, os contos de fadas propiciam releituras muito criativas, pelo que eu tenho observado.

Como estudiosa dos clássicos dos contos de fada, porque ainda possuímos tanta empatia com essas obras tão antigas? O que elas ainda têm a nos dizer?
Os CF falam do humano em sua natureza mais profunda, por isso prosseguem causando empatia. Morte, nascimento, sexo, busca heróica, inveja, desejo, ritos de passagem, constituem os grandes temas desses contos. Até mesmo em sua versão infantil é possível percebê-los, ou as crianças não se interessariam mais por eles. As crianças, ao contrário do que se imagina, gostam de literatura séria, e não de conversinha pra boi dormir, (risos). Os adultos, ao se afastarem dos CF, é que saem perdendo nessa história. Além disso, os CF são deliciosamente alegóricos, o que os tornam potencialmente poéticos. Veja o caso de Andersen e de Oscar Wilde, por exemplo, que se serviram de seus elementos para estetizar seus conflitos emocionais e sexuais.

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A sua Bela Adormecida tem um olhar bem interessante, um quê de sexy. Como foi o processo de reinterpretar esse clássico?
Foi inconsciente, na época eu ainda não tinha o background de hoje para justificar as minhas recriações (tenho outras, publicadas como parte do gênero infanto-juvenil). Sempre achei que contos como Cinderela (para o qual tenho uma versão chamada Cinderela: uma biografia autorizada), Bela Adormecida ou Rapunzel tem um quê de sensualidade, de erotismo, porque estão ligados aos ritos de iniciação sexual (quem os leu em seus textos mais antigos vê isso claramente). A bela adormecida, por exemplo, na versão de Giambatista Basile, inicia com um estupro e termina com tentativas de infanticídio e de canibalismo. No caso da minha HQ, o que eu fiz – hoje eu vejo mais claramente – foi subverter a posição masculina de superioridade no jogo erótico e torná-lo um objeto sexual na mãos das figuras femininas da trama. Mas isso não foi pensado: essa HQ não possui esboços, nem roteiro prévio, tudo foi feito de modo jazzístico, por diversão e por improviso, mesmo.

Esta é a primeira graphic novel produzida inteiramente por você. E demorou mais de 20 anos para ser editada. Qual o motivo da demora?
Estou investigando, mas me parecem ser três os motivos principais: o primeiro é com referência à época mesmo, quando os custos de uma edição colorida de HQ era absurdamente caro; o segundo é a dificuldade que o mercado editorial tinha em visualizar um público leitor para o meu estilo e proposta, que não tinham nada a ver com os quadrinhos estadunidenses tampouco os industriais brasileiros, mas seguiam uma tendência européia, pouco popular, embora tivesse seus adeptos (eu incluída); o terceiro, o fato de ser mulher, num meio em que predominavam homens. Isso, aliás, ainda parece pouco tranquilo no Brasil; as mulheres quadrinistas ainda tem que batalhar pelo seu reconhecimento público como autoras do gênero. É claro que melhorou bastante, em relação ao tempo em que Adormecida foi produzida.

No Brasil, as mulheres quadrinistas ainda tem que batalhar pelo seu reconhecimento público como autoras do gênero

Como é a sua relação com as HQs, o que acompanha? Quais suas HQs favoritas?
Eu estava meio afastada do mundo HQs ocidentais, mas estive lendo uma boa quantidade de mangás, pra desopilar das minhas atividades como escritora e como pesquisadora (sou Doutora em Letras, embora formada em Artes). Em relação à produção brasileira, reconheço que produzir HQ de qualidade é muito difícil, mesmo. Contudo, a Editora 8Inverso parece estar interessada na sua qualificação, voltando-se para um público mais sofisticado, acredito. Na verdade, fui contatada em virtude de um outro projeto em quadrinhos, esse mais longo, e a publicação de Adormecida veio à desejo da própria editora – eu mesma estava na dúvida se devia publicar um trabalho tão antigo. Foi bom: voltei a ler HQs brasileiras e ocidentais. Em paralelo, há também um movimento no meio acadêmico que está retomando os estudos e a leitura do gênero, em virtude dos planos governamentais como PNBE, que inclui a aquisição de quadrinhos para as bibliotecas escolares.

Você já chegou a dizer que não considera os quadrinhos uma mídia, mas muitas pessoas ultimamente colocam as HQs como algo ligado à literatura. Qual sua opinião sobre isso?
Acho que há uma grande confusão entre mídia e linguagem, tanto nos meios acadêmicos quanto jornalísticos. Mídia não é linguagem, tampouco tem a ver com um tipo ou gênero de arte. Mídia é o modo de veicular expressões e material artístico ou informacional. Quadrinhos é uma linguagem, não é uma mídia. Já o papel e o formato (álbum, página de jornal, etc) onde ela vai impressa, isso sim, é uma mídia. Existem quadrinhos criados para mídias digitais também, e eu me lembro de uma série de desenhos animados para TV (outra mídia) que simulavam quadrinhos dos Heróis Marvel. Quadrinhos é uma linguagem híbrida porque se vale de recursos verbais (inclusive literários) e recursos gráfico-visuais (artes desenhadas ou pintadas, num original em papel ou direto no computador). Atualmente, alguns quadrinhos digitais incorporam recursos sonoros, compondo uma lingauagem ainda mais complexa.Retomo novamente Paulo Ramos: quadrinho NÃO É literatura, quadrinho é quadrinho. Essa mania de querer que HQ seja literatura deriva de um pensamento antiquado que julga a literatura superior.

Com formação em artes plásticas e letras, você deve se sentir à vontade com HQs.
Ahaha! Depois de tudo o que eu disse aqui, acho que não ficou nenhuma dúvida! Eu adoro toda forma de arte (também tenho alguma formação musical em canto e violão, já tive alguma experiência como vocalista). Mesmo quando chamada a falar como escritora é difícil me desassociar da formação em artes (até porque todos os meus livros são quase graphic novels). Como acadêmica, minha pesquisa tenta articular ambas as áreas e como professora, trabalho exatamente nessa linha interdisciplinar.

Tem alguma nova ideia no campo dos quadrinhos que possa adiantar?
A novidade é esse projeto que eu citei acima e que se chama PAN: Quando Wendy cresceu, uma recriação feita à quatro mãos com Maurício Rodrigues (Maumau) para Peter Pan, texto literário de J . M. Barrie, e que tem por base uma pesquisa desenvolvida para a minha tese de doutorado. Está sendo produzida para a 8Inverso e pretende redirecionar a obra original, julgada de forma equívoca como exclusivamente infantil, para o público adulto. Outras informações podem ser acessadas nesse blog.

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