CLÁSSICO DOSSIÊ DA DÉCADA DE 80
Marco televisivo, Vale Tudo é reprisada nas madrugadas da TV paga. Novela inovou ao mostrar uma nação espremida entre a ambição de subir na vida e a falência financeira
Por Rafaella Soares
Repórter da Revista O Grito! no Recife
Quando apareceram as primeiras inserções da reprise de Vale Tudo, durante o trailer do filme Nosso Lar, algumas pessoas ficaram incrédulas com a brincadeira. “Se você está aqui, é porque acredita em reencarnação. Sabe quem voltou?”, perguntava a chamada, em alusão à temática espírita do longa nacional. Em seguida, a imagem da vilã Odete Roitman aparecia, como um gif animado, na telona.
Não era apenas brincadeira. O Canal Viva, emissora de conteúdo da Rede Globo, transmitida através da TV a cabo, exibe desde o último dia 4 de outubro, a partir da 0h45, uma das novelas de maior sucesso já produzidas. Cada capítulo tem 1 hora de duração e na estreia, esteve entre os assuntos mais comentados do Twitter, mesmo em horário tão adiantado.
O fato de uma novela emblemática ser veiculada novamente 22 anos depois, em si, não teria significados maiores. A própria Globo mantém no horário da tarde, a sessão “Vale a pena ver de novo”, que em geral, não vale mesmo a pena ver de novo. Mas trata-se de Vale Tudo, um marco da televisão brasileira com todos os clichês que a expressão abarca, e o dom de monopolizar as atenções de meio mundo, passadas mais de duas décadas. Com linguagem inovadora e cheia de pequenos acertos, é um dos acontecimentos da televisão no quesito influenciador de comportamento.
A trama, escrita por dois bambas do gênero, Gilberto Braga e Aguinaldo Silva, prova que quanto mais recursos humanos e menos encheção de linguiça, mas cativante e histórica uma obra pode se tornar. Tudo muito simples no enredo, ao passo que as performances individuais e a química entre o elenco azeitado foram a fórmula ideal para torná-la inesquecível para quem viu e instigante para quem só ouviu falar.
A novela tem signos que se perderam no tempo. Em uma cena, Antônio Fagundes pede pra ser bipado com o mesmo charme que pediria para alguém segui-lo numa rede social
E a escalação não poderia ter sido mais acertada: Regina Duarte (Raquel Accioli), é a mãe da mau caráter Maria de Fátima (Glória Pires – aqui, no auge da beleza adulta, assutadoramente parecida com sua filha, a musa dos dias de hoje Cleo Pires), que recebe como herança a casa que o avô lhe deu em usufruto, passa a perna na estridente porém-honesta mãe e se dana pro Rio de Janeiro atrás de dinheiro e poder – a qualquer custo.
Tudo é tão amplamente universal e atemporal, que até a moda das cinturas altas, ombros marcados e óculos Way Farer fizeram a curva geracional e podem ser vistos simultaneamente na televisão e nas vitrines. Claro que tem alguns signos culturais que desapareceram no tempo, ou ficaram ridículos. Num dos primeiros diálogos, a ambiciosa induz a guia turística a se atirar pra um turista gringo:
Raquel: Mas ele é casado, Fátima!
Fátima: Casado não é morto.
Raquel: Mas ele é muito feio…
Fátima: Na sua idade, você queria o quê? O Mickey Rourke?
Mickey Rourke hoje, sabemos, é um retrato bizarro do que hollywood e nem tantas semanas de amor assim, fazem com um sujeito. Outra coisa que aparece, e diz respeito à puladas de cerca e casinhos, é o conceito de Garçoniere – apartamento para pegação, mantido geralmente por homens endinheirados e poderosos. O gigolô inescrupuloso, amoral e sexy, encontrou no bonitão Carlos Alberto Ricelli (César) a figura ideal, em sua sunga cavadona. Em uma cena engraçada, Antônio Fagundes pede pra ser bipado com o mesmo charme que pediria para alguém segui-lo numa rede social, se fosse passada nos dias de hoje.
E como não amar o corte simétrico chapadão e as leggings de Lídia Brondi (Solange), o moletom de Fido Dido envergado pela vilã no segundo capítulo, o corte Farrah Fawcett platinado de Renatah Sorrah na pele da incrívelmente cativante e bebaça Heleninha Roitman.
Heleninha inclusive, contracena em algumas das cenas mais pungentes já gravadas, quando provoca escândalos durante os pileques, para vergonha da família tradicional e repúdio do ex-marido irascível – o proto-Collor Marco Aurélio (Reginaldo Farias). Foi uma das primeiras (se não a primeira) personagem tão realista e contemporânea que fica numas de rehab e papos cabeça com o analista.
Os tipos não param por aí: tem o mordomo erudito (Sérgio Mamberti), o primeiro casal lésbico, vivido por Cristina Prochaska e Lala Deheinzelin, o yuppie Afonso ( Cássio Gabus Mendes), a vilã absoluta Odete Roitman (Beatriz Segall), cujo assassinato virou comoção nacional.
Vale Tudo humaniza porque evitou polarizar os personagens. Eles não são essencialmente heróis ou vilões, pelo menos nos núcleos periféricos. Xingam, quebram a cara, dão a volta em taxistas, vendem sanduíche natural na praia, são demitidos no primeiro dia de trabalho, se encostam em ex-marido, se encostam em ex-mulher, roubam papel higiênico e Rexona do banheiro da firma, vão bater na delegacia, mas tudo com uma fluidez e veracidade que deve ter deixado Maneco chateado.
Vale Tudo foi, antes de qualquer coisa, uma diagnose do que estava acontecendo com uma nação espremida entre a ambição, sucetivos planos financeiros fracassados e a perspectiva de cada um lidar com o impulso básico de subir na vida. Ah, a letra de Cazuza interpretada por Gal, completa o mosaico.
SERVIÇO
Vale Tudo – Reprise
Canal Viva, segunda à sexta, à 0h45 (com reprise no dia seguinte ao meio-dia)