Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho“, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:
+ Antes do Orgulho: Entre o ódio e o medo: a vigilância da homossexualidade pautou o discurso da imprensa recifense nos anos 1960-70
+ A paranoia estava por toda parte
+ Terreiros em conflito
+ O candidato dos “frangos”
Parte 1: + “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife
Parte 2: + “Bonecas não têm vez no Carnaval”: duas décadas de hostilidades e intolerância na cobertura dos jornais
Um caso bastante curioso é o do padre Henrique Monteiro da Igreja Ortodoxa Italiana que, em 1972, pretendeu realizar, em Caruaru, um congresso de homossexuais e acabou preso. O Diario de Pernambuco chegou a fazer chamada de capa no dia 04 de abril para a matéria que anunciava a realização do congresso em abril daquele ano. O evento, todavia, não era para defender os homossexuais e travestis da perseguição a que eram submetidos, mas um conclave para promover a sua cura moral.
A notícia sobre o congresso, no final do primeiro caderno, assinada por Antônio Miranda, correspondente do jornal em Caruaru, informava que “o objetivo do encontro seria a conscientização dos viciados sexuais a fim de que possam regenerar-se”. Nela, se divulgava ainda a realização de uma missa no baixo meretrício da cidade no dia 09 de abril. Mesmo assim, o dito religioso não foi poupado das patrulhas da moral e dos bons costumes.
A iniciativa do Padre Henrique Monteiro pelo simples fato de ser dedicado a homossexuais desencadeou uma enxurrada de reações que ilustram bem o pavor que o tema despertava. O Diario de Pernambuco passou a repercutir o caso a exaustão e, se num primeiro momento o alvo dos ataques fosse o padre, os homossexuais, que nada tinham a ver com a organização do evento proposto pelo religioso, também acabaram levando pedradas.
Os depoimentos contra o evento desfilavam diariamente pelas páginas do jornal. Entre eles, o jornal reportou o pronunciamento do deputado da Aliança Renovadora Nacional (Arena) Monsenhor Ferreira Lima na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Na tribuna da casa, o parlamentar disse que Monteiro era “um falso padre que deseja descaracterizar as coisas sagradas. É um charlatão que se passa por padre e deveria ser preso pela polícia”. O juiz da 2ª Comarca de Caruaru Aluiz Tenorio de Britou também condenou energicamente o congresso e mais uma vez o padre Henrique Monteiro foi parar na capa do jornal com direito a foto.
Até uma loja maçônica de Belo Horizonte (MG) se meteu na história, enviando um ofício para o tenente João Rufino, delegado de polícia de Caruaru, parabenizando-o por se declarar contra o congresso. A matéria do Diario de Pernambuco detalha trechos do documento em que o signatário mineiro chamava os “possíveis participantes do ‘Congresso de Bonecas’ de ‘elementos perniciosos, verdadeiros cancros que corroem a nossa juventude’”. O texto se encerra pedindo que o Grande Árbitro ilumine o espírito do delegado dando a ele “forças para poder combater com veemência estes imundos, fedorentos, cabeludos, nocivos à Pátria e à Humanidade”.
O correspondente do Diario acompanhava de perto os desdobramentos do caso. Ouviu até as mulheres residentes do “baixo meretrício” de Caruraru que, segundo o repórter, apoiariam a “reunião dos enxutos”. A narrativa da matéria, porém, é bem contraditória, pois ao mesmo tempo em que ele afirma terem as mulheres dito que “todos têm direito de viver do jeito que gostam e tem vontade”, logo em seguida relata que uma delas afirmou que “relação entre homens é coisa feia”.
O caso esquentou ainda mais quando o padre Henrique Monteiro em entrevista a Rádio Liberdade de Caruaru disse que pretendia convidar o costureiro Denner de Pamplona Abreu para o congresso. O repórter do Diario de Pernambuco reproduziu a fala do religioso que justificou a sua intenção por considerar “Denner uma das figuras mais badaladas do Brasil” e pela possibilidade que ele “teria para falar perante um auditório de ‘bonecas’ em virtude dos conhecimentos que deve ter em torno do assunto”. Na lista de convidados do padre também estavam Clóvis Bornay e Clodovil, como anunciou o jornal na edição do dia 15 de abril.
Cura gay
O padre Henrique Monteiro era paulista e se ordenara em 1966 em um seminário da Igreja Ortodoxa Italiana em Lajes, Santa Catarina. Casado com uma caruaruense, ele foi morar na terra natal da esposa e começou a arrecadar fundos para a Capela do Poderoso Menino Jesus de Praga que funcionava em sua casa na Vila Kennedy. Nela, ele rezava missas e realizava casamento de pessoas desquitadas. Segundo as matérias sobre o padre, a ideia de realizar o tal congresso surgira depois dele receber a visita de um homossexual.
Dizendo-se movido pelo seu espírito religioso, o padre “pretendia agrupar todos os homossexuais de Caruaru e Recife, e até mesmo de estados vizinhos e com a ajuda de médicos e psiquiatras faria uma apresentação geral do problema homossexual e procuraria, pelo menos, para eles uma cura moral”. Mas, pelo visto, as autoridades não acreditaram na “cura gay” proposta pelo padre.
Na verdade, pelas declarações das autoridades se posicionando contra o congresso, o que se percebe é o temor de que os debates, caso o congresso acontecesse, em vez de regenerar os “viciados” como pretendia o padre, mobilizasse os homossexuais para reivindicar menos discriminação. Em uma notícia enviada pelo correspondente do Diario de Pernambuco em Maceió, esta possibilidade veio à tona. Nela informa-se que uma delegação alagoana estaria se organizando para ir a Caruaru.
Segundo o repórter “as ‘bonecas’ que comporão a delegação alagoana já se reuniram várias vezes secretamente, pois temem um levante da opinião pública e, principalmente, a perda de empregos, pois a maioria ocupa funções de certo conceito na sociedade”. O jornalista ouviu um dos interessados, conhecido como Vanderléia que disse apoiar a atitude do padre em afirmar que o homossexualismo merece estudos sérios, “estou inclusive com algumas teses que irei apresentar no conclave a fim de que nós tenhamos mais emancipação perante o povo”, disse ela.
A notícia sobre o congresso não agradou, porém, o delegado de costumes do Recife Genivaldo Fonseca que censurou o padre e afirmou que enquanto estivesse no cargo não permitiria “anomalias dessa ordem”. Dias depois o padre foi detido e o assunto ganhou matéria de meia página ilustrada com a foto do sacerdote e o título “Preso idealizador do Congresso de Bonecas” estampado em letras garrafais.
Ao ser preso e interrogado pelo Departamento de Polícia do Interior, o padre Henrique Monteiro acabou declinando de sua proposta dizendo que “notara com o tempo que o Nordeste é terra de cabra macho, onde não é permitido um encontro dessa natureza”. Desmentiu também o boato de que ele teria convidado para participar do congresso o costureiro Denner.
Mesmo assim ele foi encaminhado à Secretaria de Segurança Pública para ser ouvido pelo delegado de costumes o qual, segundo a matéria, teria enviado telegramas para outras capitais solicitando os antecedentes criminais do padre para saber se ele teria algum problema de ordem moral ou política no sul do país.
O desfecho da história foi banal e um alívio para as autoridades e os cidadãos indignados, pois pouco tempo depois de ser libertado o padre Henrique Monteiro desapareceu conforme notícia publicada no Diario de Pernambuco em 05 de maio de 1972. A matéria diz que o religioso sumiu sem deixar pistas e sem pagar as prestações da casa que havia comprado na Vila Kennedy.
O texto reproduz trechos de cartas enviadas por pessoas de diversos estados às autoridades policiais de Caruaru parabenizando-as por impedir a “degradação moral” que o congresso representava e uma carta vinda de Salvador informava que o padre Monteiro fora preso naquela cidade por se passar por bispo da Igreja Católica Brasileira.
Apesar da sucessão de equívocos e da evidente charlatanice do padre Henrique Monteiro para glória dos conservadores, o episódio provocou inquietações entre os homossexuais como prova matéria de Antônio Miranda publicada quando ainda se debatia a realização do congresso.
Nela, o correspondente comenta os depoimentos coletados para uma pesquisa acadêmica feita por um universitário em Caruaru em que os entrevistados disseram não estarem satisfeitos com os comentários sobre o Congresso dos Homossexuais quando são tachados de “bichas e outros epítetos”. Segundo Miranda os depoentes disseram “que são pessoas humanas que merecem ser olhadas pelo aspecto da caridade ou da ciência. O menosprezo que se lhes dão o repúdio da sociedade, a ridicularização com que são observados, nada resolve em seu favor”.
Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
Reportagem: Alexandre Figueirôa
Edição e revisão: Paulo Floro
Artes: Felipe Dário