O início do ano foi marcado por uma avalanche de novas versões de clássicos de Graciliano Ramos (1892-1953) no mercado editorial. Isso porque a obra do escritor alagoano entrou em domínio público a partir do dia 1º de janeiro, o que de agora em diante amplia as oportunidades de divulgação do seu trabalho e retoma a atualidade do seu discurso. Desde então, um novo capítulo se inicia na trajetória deste que é um dos maiores romancistas brasileiros.
Na prática, fica permitida a publicação de novos exemplares sem a obrigatoriedade de pagamento dos direitos autorais aos herdeiros, o que diminui os custos de publicação dos textos. No Brasil, a regra começa a valer a partir do ano seguinte depois de decorridos 70 anos da morte do artista. Com isso, toda a obra passa também a ficar disponível gratuitamente no portal Domínio Público, acervo digital mantido pelo Ministério da Educação.
“Muitos vão dizer que o domínio público pode dar margem para que edições espúrias, carregadas de erros, passem a circular, o que pode ser ruim para o autor. Isso, de fato, acontece, sem dúvidas. Mas, por outro lado, há o contrário”, defende o professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista na obra de Graciliano Ramos, Thiago Mio Salla, em entrevista à Revista O Grito!. Ele está à frente de um dos projetos de reedição que surgem no mercado. Trata-se da Coleção Graciliano Ramos, da editora Todavia.
“Com o domínio público, a gente tem também a possibilidade única de trabalhar em prol da restauração do texto para que, de fato, a última vontade do autor se consolide”, completa. Sob sua coordenação, a coleção da Todavia vem apostando em edições críticas que buscam restituir o último sentido pretendido pelo autor. Afinal, além do olhar arguto sobre as mazelas do país, o velho Graça ficou conhecido pela prosa rigorosa e enxuta, o que o levava continuamente a revisar, rasurar e corrigir seus textos.
“Usamos como baliza até a última edição em vida dele de cada um dos livros”, explica. “Só que, para além desse critério cronológico, fizemos uma comparação entre todas as versões em vida do autor.” O primeiro título a sair foi o romance Angústia, que veio acompanhado ainda por um posfácio escrito por Antonio Cândido, em 1945, e nunca publicado em livro. Segundo o organizador, o plano é publicar pelo menos dois títulos a cada ano. Neste mês de abril, virá Vidas Secas, mas São Bernardo, que completa 90 anos em 2024, está no radar e pode vir no segundo semestre.
Outro trabalho de reedição que se destaca entre os muitos que surgem é o da Companhia das Letras, que, através do selo Penguin-Companhia, publicou os já citados Vidas Secas, Angústia e São Bernardo. Com estabelecimento de texto da pesquisadora e crítica literária Ieda Lebensztayn, as edições resgatam ainda depoimentos do próprio Graciliano sobre suas obras. “Optamos por publicar a obra de Graciliano Ramos na Penguin-Companhia para levar aos leitores o rigor crítico e editorial do selo, mas com preços mais acessíveis”, destaca a editora Stéphanie Roque.
“Em breve publicaremos na coleção de não ficção nacional da Penguin-Companhia o Memórias do Cárcere, com posfácio de Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, da Universidade Federal Fluminense. Outros títulos serão planejados ao longo dos próximos dois anos”, adianta. Publicado postumamente em 1953, o título traz o testemunho do autor sobre a prisão e a perseguição política que enfrentou durante o Estado Novo, o regime ditatorial do presidente Getúlio Vargas.
Segundo Mio Salla, mesmo para aqueles que nunca entraram em contato com a obra do escritor alagoano, o momento representa uma oportunidade única de reconexão com seu discurso. “Porque a leitura de um clássico nunca é propriamente uma leitura, sempre é uma releitura, como diz aquele livro famoso Por que Ler os Clássicos, do Italo Calvino. Mesmo que você nunca tenha lido, está tão amalgamado na cultura do seu país e na cultura da sua língua, que, na verdade, sempre é uma releitura.”
Ele vê Vidas Secas como o exemplo mais paradigmático nesse sentido. “Se pensarmos nesse discurso construído sobre a região Nordeste, o Graciliano tem um papel muito importante e representativo. E não por acaso. Então, estamos nos reconectando com esse discurso literário e com essa força que ele tem.” Após a morte do autor, o romance, que acompanha uma família de retirantes sertanejos, se tornou seu maior sucesso editorial, superando Angústia em popularidade.
“Você percebe que ele está falando da seca, mas não está. Ele está falando de uma situação da qual a seca faz parte, mas que é muito mais ampla. Ele está falando de uma situação pensando em nosso país, pensando em termos de desigualdade e injustiça social. E isso vai além das fronteiras do Nordeste e também do próprio Brasil. Então, esse livro tem uma universalidade, que faz com que cada leitor tenha uma vivência muito particular com o texto.”
Graciliano Ramos se consolidou também como um importante modelo para se pensar o papel do intelectual, sempre pautado por uma ética que se manifesta no realismo crítico.
Romance incontornável da literatura brasileira, Vidas Secas também reencontra os leitores em versão da Antofágica, publicada no início do ano. No mercado, a editora é conhecida por propor uma abordagem contemporânea aos clássicos, apostando em edições repletas de desenhos e ilustrações. “Vidas Secas já teve edições ilustradas antes, mas não na quantidade da nossa. A edição da Antofágica conta com mais de 60 pinturas coloridas da artista Adriana Coppio, que além de descrever personagens e cenas tentou interpretar os sentimentos envolvidos na trama do livro”, detalha o editor Roberto Jannarelli.
“Tivemos o prazer de contar com a apresentação de Djavan, conterrâneo de Graciliano, que assinou uma emocionante carta para o velho Graça. Temos posfácios de especialistas acadêmicos, como Silviano Santiago e Wander Melo Miranda, além de um ensaio da poeta Stephanie Borges. O livro também tem notas vocabulares para auxiliar a leitura, além de videoaulas com o professor Rafael Julião, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], que exploram aspectos importantes da obra”, completa.
Um “novo” Graça
Para além das reedições dos títulos conhecidos, o jornalista e pesquisador Thiago Mio Salla lembra que o domínio público também aumenta as oportunidades de ampliação da obra já existente. “Se a gente puder fazer comparações com outros grandes escritores como Machado de Assis, por exemplo, vai ver que ao longo dos anos, sucessivamente, novos textos foram sendo localizados e encontrados.”
Exemplo disso é Os Filhos da Coruja, poema inédito que foi descoberto pelo estudioso no ano passado, enquanto coordenava pesquisas no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, onde o acervo de Graciliano Ramos está abrigado. Escrito à mão, o material estava atribuído a terceiros, mas logo foi reconhecido não só pela caligrafia, mas porque era assinado por J. Calisto, pseudônimo bastante conhecido do autor alagoano.
O poema é uma releitura da fábula A Águia e O Mocho, do francês La Fontaine, e ganhou edição pela Baião, selo infantojuvenil da Todavia, revelando uma outra faceta de Graciliano para o público adulto e facilitando o encontro das gerações mais jovens com sua obra desde cedo. “A gente sabe que o Graciliano tem textos voltados à literatura infanto-juvenil, mas este é um diálogo com a fábula que ninguém tinha visto”, aponta o organizador, que atualmente prepara também um livro de cartas inéditas do alagoano.
No Brasil, a fábula já havia ganhado adaptações por Justiniano José da Rocha, no século 19, e por Monteiro Lobato, no início dos anos 1920, mas é com o velho Graça que recebe uma outra ambientação, o Sertão Nordestino, e adquire um novo enquadramento. “Ele faz mudanças bastante representativas e expressivas, que começam desde o título, quando ele dá ênfase para os filhos da coruja e não propriamente para a coruja e o gavião. O tradicional para uma fábula seria como o próprio título do La Fontaine, A Águia e O Mocho, só que ele dá ênfase para quem é, de fato, vítima do processo, ou seja, aqueles que são trucidados.”
Revisitando Graciliano Ramos hoje
Seja quando pensa o lugar e a condição do intelectual, em Angústia, ou quando denuncia o descaso e a desigualdade social, em Vidas Secas, um dos aspectos mais marcantes na obra de Graciliano Ramos ainda hoje é o olhar crítico sobre a realidade. “A gente pode considerar o Graciliano um artista que, pela literatura, se coloca como um grande intérprete do país”, resume Mio Salla.
Para o pesquisador da USP, essa é a primeira de três dimensões através das quais o escritor deve ser observado, o que ajuda a entender a contemporaneidade do seus escritos e o espaço atualmente ocupado no cânone literário. “Em termos de conteúdo, podemos falar isso. Mas, ainda olhando para o texto, temos também a dimensão estilística, ou seja, o Graciliano é um grande modelo e paradigma textual”, acrescenta.
Famoso pelo estilo seco e contido, o autor alagoano estava sempre trabalhando seus textos minuciosamente em prol da expressividade, um rigor que aparece até mesmo em Angústia, considerado seu livro mais “excessivo”, nas palavras de Antonio Cândido. “Porque tem uma repetição incisiva, mas essa repetição tem uma motivação artística”, justifica o pesquisador.
Mais que isso, Graciliano Ramos se consolidou também como um importante modelo para se pensar o papel do intelectual. Por isso mesmo, um último aspecto relevante está relacionado à própria figura do escritor propriamente dito, sempre pautado por uma ética que se manifesta no realismo crítico proposto. “Existe uma ética da escrita, mas uma ética também em termos da sua postura diante do mundo. Ele não fazia muitas concessões, na medida em que se pautava pelos ideais que o moviam.”
“Então, há essa postura crítica em relação a injustiças ou uma visão mais igualitária do mundo, menos pautada pelo capital, ou seja, em busca daquilo que seria a essência da brasilidade, que seria tratar, justamente, dessas mazelas“, destaca. “São esses três flancos para a gente pensar por quê é importante o movimento de revisitar essa obra.”
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