Historicamente, práticas e comportamentos fora da heteronormatividade são rechaçados pela sociedade. Há séculos, pessoas que se desviam das normas de gênero são coagidas ao silêncio por medo das reações alheias. Embora hoje, em certos locais, exista aceitação, o preconceito ainda é realidade para maioria das pessoas queer, inclusive no convívio familiar. Com pouco espaço para se expressar dentro de casa, a pessoas queer encontram nas ruas – sobretudo na cena cultural noturna – o lugar de celebrar integralmente sua personalidade. O circuito das festas independentes de música eletrônica no Recife, hoje, cumpre essa proposta de reunião e celebração da comunidade LGBTQIA+.
Em intersecção às pessoas fora da norma no que diz respeito a gênero e sexualidade, pessoas pretas também se identificam com este circuito e encontram nas festas uma oportunidade de expressão sem rodeios. Parte dessa efervescência cultural estará presente no palco KMKZE, do festival No Ar Coquetel Molotov, que acontece neste sábado (21), no Recife. Esta reportagem traz uma retrato dessa cena a partir de nomes que batalham diariamente para levá-la adiante.
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Nos últimos anos, a cena eletrônica underground do Recife vive um momento de articulação e criação de diversos espaços para que talentos locais da mixagem consigam exibir suas pesquisas e inspirações. Nestas festas, diversidade torna-se o mote tanto do público, como dos artistas e das produções, criando atmosferas de liberdade e pluralidade nas boates, bares ou até na rua.
Produtoras e coletivos aparecem como instrumentos dos próprios DJs, que agem em conjunto, para atrair seu público. Selos – como são chamadas as diferentes marcas de uma mesma produtora – com propostas e gêneros musicais diferentes são outra forma de abranger núcleos de ouvintes e apreciadores nas suas particularidades.
Espaço seguro
Vands é produtor e CEO na Brota Produtora – criada em 2022 – e é um dos principais nomes nesse cenário latente da cultura recifense. Além das produções dentro da Brota, com selos que navegam do brega, ao pop até o house – como o selo Aurora – ele também é um dos envolvidos na realização da DIP, que está entre as principais festas da cena de música eletrônica independente. “O sentimento de pertencimento é o que faz o público preto e LGBTQIA+ estar sempre presente. Eu percebo como se sentem parte dessa construção coletiva e sabem que o que estamos fazendo é um movimento diverso, coletivo e inclusivo”, destaca.
Os sons produzidos para as festas também são resultado da pesquisa e trabalho de quem sentia falta de espaço na cena mais mainstream da música eletrônica. “São artistas que representam nosso público, sabe? Nossos lineups são compostos por artistas diversos e dissidentes”, diz Vands. “[É tudo feito] com muito talento e vontade de fazer acontecer em meio às dificuldades que ainda encontramos. Isso representa bem o nosso movimento, inclusive.”
Nas escalações locais, que têm uma variedade rica de nomes jovens envolvidos com arte, dois nomes surgem pelo reconhecimento dado aos seus trabalhos em plataformas como o festival No Ar Coquetel Molotov, por exemplo. Libra Lima, que na mesa de mixagem é Idlibra, e Geni são artistas e pesquisadoras da música que inserem na sua linguagem as referências para criar uma sonoridade de identidade pernambucana, latina e fora dos estilos que ocupam o lugar-comum quando se pensa em música eletrônica.
Para as DJs, a sensação de pertencimento existe para o público por motivos estéticos e sociais que se entrelaçam. “O primeiro ponto é a segurança. Entender que você vai chegar naquele local e encontrar pessoas como você, pessoas próximas. Acredito que acolhimento, também. Se alguma coisa acontecer, todos vão estar ali por você”, diz Geni.
Esse olhar fora de uma lógica comercial cria outras possibilidades para a música eletrônica, como a investigação das relações de ritmos populares com o gênero. Libra se dedica a pesquisar as interseções da eletrônica com a cultura pernambucana. “[O que faço] é exatamente recolher, mapear e participar das experiências e musicalidades afrodiaspóricas aqui do Recife, como o afoxé, o coco, o cavalo marinho, enfim, todas essas musicalidades; e investigar a relação delas com as musicalidades eletrônicas”, afirma.
A sonoridade também é um indicativo para que as pessoas se aproximem e identifiquem com o ambiente. “Eu vejo em algumas experiências que eu participo, que eu toco; que existe um pensamento, principalmente estético, e de comunicação mesmo, de atrair as pessoas dentro desse espaço”, diz Libra, que também especifica o tipo de sonoridade que é demonstrada nesses espaços. “Música pop é puramente música eletrônica, mas eu falo também de um pensamento que dá mais atenção à musicalidade underground, e acho que também por conta disso, e por um movimento coletivo, as pessoas começaram a se aproximar mais, passaram a se identificar”.
Ao tirar o foco daquilo que é mais comum, as inspirações também são outras, e os ritmos ganham outras facetas, inclusive locais. Isso acaba atraindo um público interessado em descobrir novas experiências sonoras, sem obviedades. “Como DJ, sinto que, sonoramente, isso também conta muito, porque costumo colocar funk, outros ritmos latinos. Em contrapartida, festas que colocam um som mais mainstream vão atrair um público mais hetero, branco; acho que tudo isso conta para chegar mais nessa proximidade”, aponta Geni.
Pluralidade e longevidade
Com compreensão de que o público pode se aproximar pelo som, sobretudo sons novos e alternativos, os produtores passam a entender que uma diversidade de nomes é essencial pra que a cena continue existindo. “Prezar pela diversidade é construir um line-up justo, democrático e representativo. Além de permitir a ascensão de artistas que vão fortalecer e enriquecer a cena musical daqui, como já vem acontecendo”, afirma Vands.
JV também é um dos nomes de destaque envolvidos na produção de festas independentes no Recife. Um dos sócios da Reverse, que também conta com outros selos, é DJ e produtor das suas festas desde 2016, quando a marca surgiu. Embora suas festas não sejam frequentadas por um público majoritariamente dissidente como nas produções de Vands, por exemplo, sua marca também toma como lema a possibilidade de criar um espaço pertencente a grupos fora da norma.
“A diversidade nos lineups é, antes de mais nada, um reconhecimento do vasto espectro de talentos que existe no mundo da música. No Recife, somos privilegiados por ter uma gama tão ampla de talentos. Faz sentido aproveitar isso e garantir que nossos lineups sejam um reflexo do que nossa cidade tem”, acrescenta JV.
Novos espaços e novas possibilidades
Em contrapartida, é importante entender que o espaço conquistado agora não veio facilmente. A articulação e força de vontade de toda uma geração de artistas ajudou a demarcar esse espaço na cena independente atual. As próprias Libra e Geni foram articuladoras nesse movimento, que hoje está em pleno desenvolvimento.
“Nossa, foi luta. Eu acho que lá no comecinho existia essa necessidade mesmo da gente se articular, de juntar as amigas que estavam a fim de fazer algo e criar esses espaços. Era muito difícil construir isso dentro de uma precariedade, sabe?”, lembra Libra. “Principalmente sem ter conhecimento de editais públicos, ou financiamento privado. Vendia ingresso muito barato, porque não tinha um público muito próximo da gente. Aí depois de um tempo construindo esses rolês, a gente começou a se expandir. Eu, especificamente, depois de um bom tempo tentando construir um nome, construir uma rotina aqui no Recife, comecei realmente a rodar melhor e fazer um trabalho cada vez mais maduro. E acho que, enfim, isso é um ganho completamente coletivo”, conta Libra fazendo uma retrospectiva.
A percepção de uma vitória coletiva é compartilhada também por Geni. “Eu sinto que a sensação é de estar vencendo juntas. Eu não estou aqui porque cresci sozinha”. Para a DJ, esse momento de expansão da cena é como um “foguete decolando”.
“Não foi uma jornada fácil, mas sinto que crescemos juntas. Lógico que eu quero sempre estar junto das minhas amigas, construir coisas juntas, porque acho que isso catalisa o babado pra ser algo maior”, afirma.
Como um exemplo dos espaços adquiridos por meio dessa articulação, o palco KMKAZE, no Coquetel Molotov, que tem a curadoria de Libra, surgiu ano passado pela vontade da DJ de “ter realmente um espaço curatorial de diálogo e expansão, inclusive tentando expandir também essa ideia de música eletrônica”. O palco KMKAZE acaba se tornando mais uma plataforma de demonstração de outros talentos jovens com produções autênticas e locais. “Acho que a intenção é fazer com que isso se torne cada vez mais rotina, para que esses artistas consigam estar dentro de outros circuitos e consigam também chegar em outros lugares e fazer outras colaborações também”, finaliza.
Geni, inclusive, é uma das atrações do palco esse ano. “É muito louco, porque Libra é minha irmã, conheço ela há muito tempo. Você fica meio assim [insegura], porque é uma amiga e também é a curadora do palco, então nunca cheguei pra pedir que ela me colocasse, porque pra mim, tinha que ser natural. Tinha que ser do interesse do festival e também pelo meu trabalho”, diz ela.
Sobre as expectativas para o evento, a artista diz que espera “quebrar tudo e estar junto das pessoas”, e sente que esse é o momento perfeito para ela, enquanto artista, apresentar o seu trabalho. “O timing foi perfeito”, afirma.
Dançando na rua: Revitalizando o Centro a partir da eletrônica
Alguns selos da cena independente também assumem posições interessantes em relação aos locais de realização das festas: o centro do Recife. Uma zona da cidade que hoje convive com a negligência social e econômica das autoridades, o centro não é um lugar de lazer para uma grande parte da população – salvas algumas áreas como o Bairro do Recife, por exemplo, que costuma receber apoio financeiro.
Os bairros ao redor da Av. Conde da Boa Vista e da Av. Dantas Barreto estão fora da programação da cidade de forma geral, mas algumas iniciativas vão contra a corrente e periodicamente, injetam cultura e sons nesses arredores da região central.
A Revérse na Rua é um dos selos da Revérse, e é produzida por JV, que também atua como DJ. A festa teve sua primeira edição ainda em 2018, e tenta fazer com que algumas áreas da cidade recebam a dinâmica de um evento. Na sua penúltima edição, em dezembro de 2022, a festa aconteceu próxima ao Pátio de São Pedro, no bairro de São José; já a última, no dia 07 de setembro, aconteceu no Bairro do Recife, na rua do Observador.
“As festas de rua têm o poder transformador de mudar a relação das pessoas com os espaços urbanos. Quando elas vivenciam as ruas da cidade em um contexto festivo e alegre, começam a enxergar esses locais de maneira diferente. Não são mais apenas trajetos para se chegar em casa, mas sim espaços de celebração e convívio”, diz JV.
Libra foi uma das atrações na última edição da festa, e percebeu que a mudança dos locais assegura, também, a mudança de público, “Estavam 1000 pessoas na minha frente que eu não via em todo rolê, e eles estavam ali exatamente por serem pessoas que habitam aquele espaço do Recife Antigo”, disse a artista.
Vands também já esteve por trás de produções que tomaram lugar em espaços públicos. A DIP Na Rua, ainda em janeiro de 2020, e a Aurora, selo de house da Brota, que aconteceu em abril de 2022, ambas na rua Mamede Simões, em Santo Amaro. O produtor aponta uma série de convergências que o motivam a realizar festas na região, mas principalmente razões econômicas, em atender um público que talvez não possa frequentar as festas pagas.
“Ocupar o centro do Recife com juventude, arte e música é a melhor forma de manter ele vivo, sabe? Assim a gente atrai mais pessoas e aquece a economia da região. Eu acredito que a cultura é uma das melhores opções pra salvar o centro do Recife”, diz o produtor.
As possibilidades que a rua proporciona são intermináveis, mas as dificuldades são várias. “Uma das maiores dificuldades ao organizar festas, especialmente como produtores independentes, é sem dúvida o aspecto financeiro. Enquanto contamos com a cooperação de alguns órgãos para obter as devidas liberações, o suporte financeiro é mais escasso”, afirma JV. O produtor diz entender que atualmente o Brasil passa por uma crise que afeta todos os segmentos econômicos, mas ainda sente que “a cultura, em muitos momentos, acaba não recebendo o reconhecimento e apoio que merece”.
Vands também aponta os problemas econômicos, “falta de apoio e incentivo ainda é nossa maior dificuldade de fazer eventos de rua. Os custos são relativamente altos e como não existe a cobrança de ingresso fica difícil levantar o evento, sabe? Fora a burocracia pra conseguir a liberação de vias públicas”, afirma.
Expectativas
Com anos de trabalho, sempre analisando novos nomes e novas formas de fazer com que esses eventos aconteçam, as expectativas das artistas e dos produtores para a cena são promissoras, ainda que muitas melhorias sejam necessárias.
“Eu sinto que a gente vai ganhar muito mais estrutura. Espero que a gente consiga uma rotatividade maior de nomes, que a gente não passe mais por tantas dificuldades e que cresça. Aqui no Recife – em Pernambuco – a gente tem muito talento, mas o que falta é oportunidade”, diz Geni. Para Vands, a falta de suporte ainda é uma questão, e o produtor espera que “estado e as grandes marcas percebam a potência que é a cena underground”.
Criando uma expressão artística local e tipicamente urbana, a cena eletrônica independente do Recife mostra capacidade e maturidade, tanto nas motivações que a legitimam e que impulsionaram sua criação, quanto na arte que é produzida pelos artistas inseridos no circuito. Espaços que são feitos para entreter, mas também para propagar uma mensagem política de autoafirmação, inclusive nas ruas. As pretensões vão além do lucro, mas propõem uma mudança da cidade e da sociedade.
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