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Cena do documentário dirigido por Gabriel Di Giacomo. (Foto: Divulgação/Embaúba Filmes).

Crítica: Doc Memória Sufocada e a história brasileira que se repete como tragédia e farsa

Construído a partir de materiais na internet, o longa explora as semelhanças entre as retóricas autoritárias que ecoaram no país em 1964 e, recentemente, a partir de 2016

Crítica: Doc Memória Sufocada e a história brasileira que se repete como tragédia e farsa
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Memória Sufocada
Gabriel Di Giacomo

Brasil, 2021, 1h15, 14 anos. Distribuição: Embaúba Filmes
Em cartaz nos cinemas

Houve um dado momento político do Brasil no qual setores da sociedade civil ligados à elite econômica deram início a uma perigosa escalada conservadora e autoritária. A justificativa, naquele tempo, era de que havia uma “ameaça comunista” no país e, portanto, era necessário freá-la a qualquer custo para que “a família, a moral e os bons costumes” fossem preservados.

De imediato, nossa memória recente e já calejada talvez associe esse cenário ao pesadelo que se tornou o Brasil nos últimos anos. Contudo, esse era também o clima do país nos dias que antecederam o Golpe de 1964. Como o velho Marx já observara mais de 150 anos atrás, a história acontece duas vezes: primeiro como tragédia, depois como farsa.

Com estreia na semana em que se completaram os 59 anos da Ditadura Civil-Militar, o documentário Memória Sufocada, de Gabriel Di Giacomo, explora justamente essas semelhanças entre as retóricas que tomaram conta do país em 1964 e, mais recentemente, a partir de 2016. O resultado é uma produção audiovisual que reflete sobre os horrores dos anos de chumbo sob a perspectiva de um presente marcado pelo negacionismo e revisionismo.

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O diretor Gabriel Di Giacomo nos bastidores da gravação dentro do prédio onde funcionou o DOI-Codi, em São Paulo. (Foto: Divulgação/Embaúba Filmes).

Gravado e produzido durante os meses mais duros da pandemia — e, portanto, sujeito a certas limitações —, Memória Sufocada foge do formato tradicional de documentário com entrevistas. Com uma narrativa construída por buscas na internet, o longa resgata um material muito rico que, apesar de acessível, é pouco acessado. Depoimentos à Comissão Nacional da Verdade (CNV) e peças de propaganda do regime intercalam-se com imagens inéditas de dentro do prédio onde funcionou o DOI-Codi de São Paulo, um dos principais centros de tortura e assassinato do regime.

Contudo, o verdadeiro fio condutor da narrativa proposta por Di Giacomo é o depoimento dado por Carlos Alberto Brilhante Ustra à CNV, em 2013. Ele foi o coronel responsável pelo comando do órgão paulista de 1970 a 1974 e pessoalmente torturou alguns dos presos políticos que lá eram mantidos, incluindo a ex-presidenta Dilma Rousseff. São os relatos hostis do torturador que guiam a proposta de “navegação pela internet na tela do cinema”.

A cada corte o diretor escancara o ódio e a perversidade bolsonarista ao combinar os depoimentos lancinantes das vítimas à Comissão com momentos recentes da política brasileira. É o caso da cena já conhecida do voto de Jair Bolsonaro, à época deputado federal, favorável ao impeachment da presidenta Dilma e a nojenta homenagem a Ustra. Em meio a tudo isso, Di Giacomo utiliza-se ainda da linguagem visual das redes, que apesar de nem sempre funcionar bem, estabelece um importante diálogo com as gerações mais jovens.

Em linhas gerais, Memória Sufocada soma como um registro importante para a construção da memória histórica e a preservação da democracia brasileira em tempos onde a construção sobre o que foi a Ditadura Militar no Brasil ainda segue em disputa e ameaçada por um revisionismo perigoso assentado no negacionismo.