Em 1982, o Conjunto Habitacional da Muribeca foi construído em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. 69 blocos e 32 apartamentos abrigaram famílias e foram “berço” para a construção de uma verdadeira comunidade que se expandia pelos entornos. Em 1995, foram verificados problemas estruturais nas moradias, que levariam depois de 24 anos de incertezas e processos jurídicos a demolição dos prédios e o despejo dos moradores. Ainda que a Caixa Econômica Federal tenha sido condenada e orientada a reconstrução do Conjunto em 2012, interesses imobiliários maiores de quem sequer fazia parte da realidade da comunidade, transformou tudo em escombros, que além de poeira, deixam no ar a indignação.
Todo esse contexto serve de base para o documentário Muribeca, dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (2). É importante considerar que tamanho contexto serve “apenas” de base porque, indo além do fato, os autores trabalham o aspecto imaterial no caso. O longa mostra que, junto com os prédios, desabaram-se a convivência, a vizinhança, o afeto ao local, os lares, abalando assim um espírito comunitário tão vivo e peculiar como é o de Muribeca.
“A situação de esvaziamento de bairros e conjuntos habitacionais não é um fenômeno isolado em Muribeca”, analisou a diretora Alcione Ferreira, em entrevista à Revista O Grito!. Jornalista por formação e com vasta experiência na fotografia e videoreportagem, Ferreira embarcou em sua primeira experiência no cinema com o doc.
Alcione Ferreira explicou que ao reencontrar Camilo Soares depois de anos (foram contemporâneos de graduação na UFPE) a temática em comum que lhes interessava durante suas conversas era a questão do afeto e do pertencimento na relação das pessoas com as cidades. Em meio ao terrível cenário de desocupação, a comunidade de Jaboatão dos Guararapes apresentou um diferencial. “Além do nosso envolvimento individual com Muribeca, a comunidade tem um diferencial em relação às outras reivindicações de direito à moradia que extrapola esse direito, ou até mesmo dá mais um sentido, traz um outro aspecto. Muribeca tem a reivindicação pela permanência de um grupo comunitário”, completou a diretora.
“A história do bairro já estava bem divulgada na grande mídia, então a gente queria sair do factual e ir na direção de descobrir como as pessoas constroem aquele espaço a partir de suas vivências, suas histórias, suas memórias”, explicou Camilo Soares. O jornalista, fotógrafo, professor de cinema e cineasta já trilha um caminho longo no audiovisual, tendo dirigido curtas como Sue, Turbulenta Aberração (2013, com Zizo), Céu de Lua, Chão de Estrelas (2022, com Orun Santana) e Ming (2022).
Muribeca acabou por ser o personagem em comum dos autores, tanto por terem amigos e conhecidos que viviam lá quanto pelo potencial coletivo que sempre foi uma marca da comunidade. “A gente está falando de lugares que são físicos, mas que desenvolvem ali relações e afetos que engendram questões que são principalmente políticas, e políticas no sentido do que nos afeta coletivamente”, argumentou Alcione.
A ideia do filme nasceu em 2017, já em meio às incertezas sobre a permanência dos prédios na localidade. Pensado inicialmente como um curta, a produção se revelou mais densa e profunda, tanto na quantidade de personagens e relatos quanto nos sentidos que poderia trazer. Produzido de forma independente, o filme dá voz a quem muitas vezes é silenciado nas mídias tradicionais onde prevalecem as fontes “oficiais”. No documentário, são os moradores quem conduzem a narrativa.
“O direito à moradia e a cidade existem, estão postos para a sociedade, mas são mal aproveitados, há muitas questões. Mas há uma dimensão que não é levada em consideração nesse processo, que é o afeto. Como que a gente vai falar sobre um direito que não está posto como um direito? A única maneira da gente instigar essa discussão seria colocar na voz e expressão de quem vivencia aquele processo”, contou Alcione.
A arte e a cultura na Muribeca: instrumento de resistência
“A gente queria construir essa narração com várias linguagens, não necessariamente a linguagem falada. Transcrevemos todas as entrevistas, para ler, reler e se apoderar de certa maneira das falas e entender como poderíamos trabalhar com elas, mas também sabendo que não apenas a palavra contaria a história”, detalhou o diretor Camilo Soares.
A efervescência cultural era e continua sendo um trunfo da comunidade. Tal aspecto se expressa no documentário por um elenco de artistas responsáveis por esse expoente, como o fenomenal Manoel Carlos e o saudoso Miró da Muribeca. O grande poeta performático nos deixou em 2022 mas segue imortalizado na nossa cultura Pernambucana. Ele foi um dos responsáveis por atrair Alcione e Camilo para a produção do filme e participa da narrativa com um relato potente, ao estilo da sua arte.
Assim como Miró fez reflexo da Muribeca no estado e no Brasil, os artistas, crias da comunidade, também o fazem hoje. Eles aparecem como dos pontos estruturadores do longa. “A Muribeca é um lugar onde há muitos artistas. Entrevistamos muitos deles, mas no final vimos que a potência maior dali seria, justamente, suas performances, seja na dança, capoeira, poesia, nos desenhos, teatro. Tudo isso acabou construindo diversas camadas de realidades e pontos de vistas diferentes. O doc está aberto a distintas formas de perceber uma situação”, refletiu o cineasta.
“A gente não tinha pensado isso de início, apesar de conhecermos artistas de lá. Isso foi um processo de vivência”, contou Alcione sobre as performances dos artistas de Muribeca no filme que integraram o roteiro de forma orgânica e sem planejamentos prévios. “É muito gratificante quando a gente se vê diante desse cenário e entender essas expressões das mais variadas possíveis, de poder contar de diversas formas como se vivencia um processo desse. Nem sempre é o texto, a fala. Isso trouxe uma potencialidade muito forte, poder sermos telespectadores também enquanto estávamos fazendo. Telespectadores do que eles nos traziam, foi uma via de mão dupla. Não só nós dirigindo, mas também recebendo formas de expressão que só enriqueceram a narrativa do doc”, completou.
Assim como o ingresso desse elemento na narrativa, as performances foram orgânicas e de autoria exclusiva dos artistas. “Talvez a direção da gente fosse levá-los para um lugar que tivesse a ver com o que eles queriam expressar, dentro dessa relação do espaço e a expressão artística deles dentro do filme. O longa potencializa isso quando junta os dois, cria uma forma de expressão muito interessante porque consegue captar as expressões individuais dentro de um contexto coletivo. O cinema é capaz de amplificar esse tipo de interação”, compartilhou Camilo.
O legado de Muribeca, a comunidade
Com as filmagens finalizadas em 2019 (ano da demolição) e o filme montado no início de 2020, uma missão dos diretores não pôde ser concluída: promover a primeira sessão do documentário em Muribeca. A pandemia da Covid-19 foi a grande responsável desse afastamento, o que levou o longa a estrear em festivais fora do país. Recentemente, os autores promoveram uma sessão no local das filmagens, momento que Alcione considera emocionante, o qual teve um “sabor muito diferente”.
O espírito comunitário de Muribeca que tanto inspirou os diretores agora alcança os cinemas. Com imagens sensíveis, relatos tocantes, registros valiosos de arquivo, o filme desmembra uma comunidade que antes dos escombros atuais era viva, ativa, brincava carnaval, tinha sua própria rádio, seu repórter itinerante, seu senso coletivo e um pertencimento de localidade memorável.
Foi por este papel de reforçar a memória que Alcione Ferreira e Camilo Soares se debruçaram num documentário potente e extremamente significativo para a discussão social. “O cinema tem essa ferramenta poderosa em relação a fazer com que uma história não seja abafada pelo discurso oficial (mídia tradicional), ou seja, que essa história a partir da visão desses moradores não seja esquecida. Também tem um viés político, mesmo que não mude de fato essa situação deles, mas é capaz de mudar aos poucos as visões, o olhar e as percepções das pessoas em relação a esse processo. É importante que seja um espaço dialético e que tenha lugar para outros pontos de vista, e fica muito claro o posicionamento dos moradores sobre um espaço que eles construíram por décadas, o que é muito poderoso e não pode ser esquecido”, refletiu o cineasta.