Crítica: O oceano no fim do caminho, de Neil Gaiman

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Foto: Divulgação

Em novo livro Gaiman investiga impacto da infância no complicado mundo dos adultos

Por Renata Arruda

Anunciado como o “novo livro adulto de Neil Gaiman”, O oceano no fim do caminho não se aproxima das temáticas comuns aos “livros para adultos”: não nos vemos diante de personagens complexos, crises existenciais, problemas sociais, profundos debates filosóficos ou políticos ou passagens cruas sobre sexo e violência – o que Gaiman nos apresenta é uma fábula onde tudo acontece ligeiro e sem rodeios que aborda delicadamente o impacto da infância e suas memórias, muitas vezes enevoadas, na vida adulta sob a ótica do sofrimento, da abnegação e da inter-conectividade.

Gaiman aproveita ainda para transcender o conceito de vida terrena e da morte em alegorias como a dos pássaros que literalmente comem o mundo ou no sacrifício da pequena Lettie, na dolorosamente passagem sobre o fim. Em determinado momento o narrador declara: “Eu adorava mitos. Não eram histórias para adultos e não eram histórias para crianças. Eram melhores que isso. Simplesmente eram. As histórias para adultos nunca faziam sentido, e a ação nelas demorava muito a acontecer”, funcionando quase como um aviso sobre a história que estamos lendo. O oceano no fim do caminho é uma história juvenil, contada por um adulto com o olhar de uma criança. E é uma delícia.

O enredo é simples: acontecimentos estranhos que ocorrem às voltas de um garotinho de sete anos após a morte de um inquilino, que o leva a conhecer Lettie Hempstock e sua mãe e avó – todas muito antigas para este mundo, representando, acredito, as faces jovem, madura e anciã da deusa pagã. Nada exige grandes explicações – acompanhamos tudo através dos olhos das lembranças do narrador já adulto e, como ele, somos levados a não questionar os comos e porquês. As coisas simplesmente são. E como toda memória de infância, tudo pode ser verdade como também fruto da imaginação infantil (“…e depois ficam só as lembranças. E as lembranças desvanecem e se confundem, viram borrões…., p. 58) e aqui Gaiman deixa o livro com um sabor especial ao sabermos que lugares, personagens e certos acontecimentos foram inspirados em fatos reais de sua infância. Com seu talento narrativo e imaginação, Gaiman pôde transformar fatos banais em um universo fantástico e tocante.

Ao tratar sobre a infância, Gaiman sutilmente critica o universo adulto viciado em achar que precisa de sexo e dinheiro – e quando uma criatura maligna resolve dar o que eles querem o resultado é desastroso. Uma clássica situação de “cuidado com o que deseja” -, pouco imaginativo (“Adultos seguem caminhos. Crianças exploram. Os adultos ficam satisfeitos por seguir o mesmo trajeto, centenas de vezes, ou milhares; talvez nunca lhes ocorra pisar fora desses caminhos, rastejar por baixo dos rododendros, encontrar os vãos entre as cercas“, p. 70) e falacioso: os adultos, por mais que pareçam sempre saber o que estão fazendo, continuam interiormente a se parecer com crianças.

Aqui neste novo Neil Gaiman as crianças são as protagonistas da história, as divindades são figuras femininas independentes dos homens, o mal pode ter a forma de panos velhos e madeira apodrecida e ter o perigoso poder de realizar os desejos, a justiça pode tanto de salvar quanto matar e o Universo tem a forma de um oceano: misterioso, profundo, eterno e impossível de se definir – como se vê em um dos mais belos (e longos) trechos de todo o livro:

Meu segundo pensamento foi de que eu sabia de tudo. O oceano de Lettie Hempstock fluiu dentro de mim e preencheu o universo inteiro, do Ovo `a Rosa. Eu soube. Soube o que era o Ovo – onde o universo se iniciou, ao som de vozes incriadas cantando no vácuo – e eu soube onde estava a Rosa – a dobra peculiar de espaço no espaço em dimensões como origami e que florescem como orquídeas estranhas, e que marcaria a última época boa antes do consequente fim de tudo e do próximo Big Bang, que não seria, agora eu sabia, nem nada do gênero. (…) Eu vi o mundo no qual andara desde o meu nascimento e compreendi sua fragilidade, entendi que a realidade que eu conhecia era uma fina camada de glacê num grande bolo de aniversário escuro revolvendo-se com larvas, pesadelos e fome. Eu vi o mundo de cima e de baixo. Vi que havia padrões, portões e caminhos além da realidade. Eu vi todas essas coisas e as compreendi, e elas me preencheram, da mesma forma que a água do oceano me preenchia. 
Tudo sussurrava dentro de mim. Tudo falava para tudo, e eu sabia tudo.(…)
As correntes oceânicas deslocavam meu cabelo e minhas roupas como brisas de verão. Eu não sentia mais frio, sabia tudo não estava mais com fome e o mundo grande e complicado era simples, compreensível e fácil de desvendar. Eu ficaria aqui até o fim dos tempos, num oceano que era o universo que era a alma que era tudo o que importava. Eu ficaria aqui para sempre.” (p. 163; 165)

Delicado, sensível e comovente, O oceano no fim do caminho mexe com aquelas emoções deixadas na infância, provocando uma nostalgia ao mesmo tempo divertida e tocante.

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O OCEANO NO FIM DO CAMINHO 
Neil Gaiman
[Editora Intrínseca, 208 páginas / 2013]
Tradução: Renata Pettengill