Zé
Rafael Conde
BRA, 2024. Drama, 2h. Distribuição: Embaúba Filmes
Com Caio Horowicz, Eduarda Fernandes, Samantha Jones
Reconstituir as memórias do país para que nunca esqueçamos de determinados períodos e passagens de nossa história é uma das funções mais nobres da arte. Se em países como a Argentina, os tempos de repressão foram discutidos e dissecados em uma infinidade de obras cinematográficas, como em A História Oficial (1985), no Brasil o período ditatorial ainda precisa ser mais profundamente explorado por meio do cinema.
+ Leia mais: Chumbo, de Matthias Lehmann, traz panorama político e pessoal sobre a ditadura militar
Atualmente, duas obras do audiovisual tratam sobre histórias dessa mesma nebulosa época: Ainda Estou Aqui (2024) de Walter Salles, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que conta a luta da mãe do autor, Eunice Paiva. A paulista teve seu marido, o deputado Rubens Paiva, preso e assassinado durante a ditadura militar brasileira.
Já Zé (2024), longa-metragem do diretor mineiro Rafael Conde, adaptação do livro homônimo, escrito por Samarone Lima, que investigou a vida do militante em arquivos da repressão, entrevistas com militantes contra a ditadura, familiares e amigos. O livro foi lançado em 1998 e é resultado da pesquisa de conclusão de curso de Jornalismo do autor.
Nascido em março de 1946 e assassinado em outubro de 1973, o personagem-título do longa participou da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O filme conta com Caio Horowicz no papel principal e um elenco que inclui Eduarda Fernandes, Samantha Jones, Rafael Protzner, Yara de Novaes, Gustavo Werneck e Alexandre Cioletti.
José Carlos Novais da Mata Machado decide abandonar a vida que tinha em Belo Horizonte e passa a viver na clandestinidade. Perseguido, ele deixa sua vida de classe média alta para viver com o povo, realizando o trabalho de alfabetização e conscientização política dos mais pobres. A história já parte desse período de Zé na clandestinidade, casado e com filhos, em meio a mudanças de estados e a vigilância de agentes do governo.
Conde opta por evitar a dramatização excessiva e cenas de violência, prefere focar no nas atribulações do cotidiano, nos dramas éticos e nos conflitos familiares e pessoais dos personagens. Deste modo, temos uma visão mais íntima dos impactos do regime autoritário nas vidas dos militantes. Vemos o dilema de Zé e Bete na segunda gravidez sobre criar os filhos na clandestinidade ou deixa-los com os pais do militante, também observamos como eles se comunicavam com aliados, deixando o rádio sempre ligado e falando baixo.
Rafael Conde participou do movimento de cineclubes e do movimento estudantil na época da abertura política dos anos 80, e teve o primeiro contato com a história do Zé por meio de amigos, e se interessou pelo tema devido à sua vivência como professor e ao contato constante com a inquietação estudantil. Há 20 anos, Conde foi apresentado ao livro de Samarone Lima e, desde então, empenhou-se em dezenas de versões do roteiro, juntamente com Anna Flávia Dias.
O uso do som no filme também é provocativo, em meio a discussões e diálogos o ruído aumenta para causar incômodo mesmo. É uma estratégia pela sutileza dentro de um período tão conhecido pela violência, Conde escolhe também dramatizar as cartas que o protagonista enviou aos seus pais em primeira pessoa, com Caio Horowicz encarando a câmera, como se tivesse conversando com o público.
A escolha pelo retrato do cotidiano de uma das vidas que foram apagadas pelo Estado e pela narrativa oficial do país se mostra acertada. Tão chocante quanto a violência da repressão é o cotidiano cheio de angústias, desconfianças e medos de Zé em seus derradeiros e tumultuados dias.
Caio Horowicz é um protagonista confiante, cativante e que enche a tela do cinema. Sua parceria com Samantha Jones traz uma cena comovente e sensível com os dois atores brilhando na tela.
Ainda como clandestino, após viagens para São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, Zé recebe Gilberto, irmão de Bete, como um novo militante e parte para Recife. Gilberto é, no entanto, um informante do regime repressivo. Zé morre sob tortura aos 27 anos, falsamente acusado pelos militares de ter traído todos os seus companheiros, desaparecidos até hoje.
Segundo os relatos colhidos pela Comissão da Verdade, José Carlos Novaes foi morto após tortura nos porões do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), do Recife, no dia 28 de outubro de 1973. Com ele estava Gildo Macedo Lacerda, aluno do curso de economia da UFMG, também torturado e morto no local.
À época, o Exército brasileiro afirmou que as mortes teriam ocorrido num confronto com um terceiro membro da militância estudantil em um tiroteio com outros militantes numa esquina da avenida Caxangá, zona oeste do Recife.
Em geral, autores de livros adaptados para o cinema não gostam tanto das versões cinematográficas, seja por preciosismo ou por implicância mesmo. Me arrisquei perguntando o que Samarone tinha achado do filme, se fazia jus ao livro e ele me respondeu entusiasmado com um: “Demais! Nunca pensei que fosse ver um filme sobre algo que fiz”, disse com a gentileza de sempre.
Reedição do livro
O livro: José Carlos Novais da Mata Machado, uma reportagem que deu origem ao filme está fora de catálogo há pelo menos uma década. Recentemente, Samarone lançou uma campanha de pré-venda de uma segunda edição revista e atualizada com entrega prevista para o início de 2025. Os livros da nova edição podem ser adquiridos aqui neste link.
Leia mais críticas:
- “As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco
- “Queer”: Quando desejo e drogas alucinógenas se dão os braços
- “Clube das Mulheres de Negócios”: boas ideias esbarram em narrativa acidentada
- “Wicked”: adaptação do musical da Broadway é tímida, mas deve agradar fãs de Ariana Grande
- “Herege”: com boa premissa, novo suspense da A24 se perde em soluções inconvincentes