É verão em Londres e Yussef Dayes aproveita uma tarde ensolarada de agosto no sul da capital britânica para dar entrevistas sobre Black Classical Music, seu primeiro álbum solo, que chega às plataformas de streaming no dia 8 de setembro. À vontade, aparece na tela para falar com a reportagem da Revista O Grito! sem camisa e rodeado por árvores e plantas. Está no jardim da sua casa, espaço no qual se sente conectado com dois elementos importantes para a sua arte, e que estão no cerne do novo trabalho: a natureza e a memória da sua família – sua mãe era apaixonada por jardinagem e o pai, de origem jamaicana, importava frutas do Caribe para vender em mercados londrinos.
A atmosfera serena que marca esse período da vida do músico é reflexo de muitas mudanças ocorridas em sua vida nos últimos anos. A principal delas foi o nascimento, em 2020, de sua filha, Bahia, cujo nome é uma homenagem ao estado brasileiro, um dos lugares que ele considera mais inspiradores e transformadores da sua trajetória. A paternidade e o isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19 fizeram com que Dayes, que é considerado um dos principais instrumentistas do jazz contemporâneo, experimentasse uma calma até então inédita para alguém acostumado com a correria das turnês.
“Minha filha me ensinou sobre paternidade. E também me reconectou com a energia desses primeiros anos da vida. Quando você vai ficando mais velho, você perde aquele senso da infância em que sua imaginação é livre, quando você não tem tanta bagagem que pode distorcer sua cabeça. Eu estava fazendo tanta coisa (antes) e até me questionei a razão de ainda tocar bateria. Pude me lembrar da paixão e dessa energia da criança, você quer se divertir, e para mim, isso está expresso desde a capa, que é uma foto minha de quando era pequeno, tirada por minha mãe. É sobre ser livre e não pensar muito”, conta.
A influência da filha, Bahia Dayes, é uma força que atravessa Black Classical Music. Na linda “The Light”, a voz da pequena aparece por cima da instrumentação delicada de Yussef, e captura a voz da menina pronunciando desde seu próprio nome até um “Eu te amo” para o pai. É um exemplo perfeito da habilidade do músico de criar momentos intimistas e luminosos sem soar forçado ou meloso.
Yussef Dayes considera o álbum como uma jornada de cura e reconexão, inspirado em sua família e nas pessoas e lugares que fizeram parte da sua história. O disco começou a ser gravado em maio de 2021, quando houve uma reabertura das restrições para conter a pandemia, e foi finalizado em setembro do ano passado.
“Com este álbum, por conta da Covid-19, fazia um tempo que eu e os outros músicos não fazíamos jam sessions. Mas, como já trabalho há muito tempo com Charlie Stacey (tecladista) e Rocco Palladino (baixista), quando nós vamos para uma jam, já sabemos que vamos criar algo e gravar. Também trabalhamos com Malcolm Catto, que é um baterista e engenheiro de som incrível e tem um ótimo estúdio, ao qual sempre que vamos, conseguimos algo porque saem sons maravilhosos. Então, você meio que relaxa em saber que, mesmo em uma jam session, ele estará gravando e vai sair algo. Daquela primeira sessão em maio, eu já sabia que estava nascendo algo especial.”
As experimentações musicais que surgiram desses encontros no estúdio foram ganhando novas camadas durante as apresentações ao vivo. A vibração da estrada inspirou Yussef Dayes, que regravou algumas das demos, adicionou novas partes e agregou ainda os músicos Venna (saxofone) e Alexander Bourt (percussão). Ainda que este seja seu primeiro álbum solo (em 2022, ele lançou o EP The Yussef Dayes Experience Live at Joshua Tree), Dayes não abandona os processos colaborativos que alicerçam sua carreira artística.
Anteriormente, ele lançou trabalhos em parceria: os discos Galaxies Not Ghettos (2011) e The Myth of the Golden Ratio (2016), com o United Vibrations, projeto com seus irmãos Ahmad e Kareem, além do amigo Wayne Francis II; Black Focus (2016), como parte do duo Yussef Kaamal, em parceria com o produtor Kamaal Williams; e What Kind of Music, com o guitarrista e cantor Tom Misch.
“Os meus discos favoritos são colaborativos: Bob Marley & The Wailers, Lauryn Hill, Miles Davis, até James Brown, Quincy Jones… Se você olhar a ficha técnica, todos os envolvidos são muito talentosos, mesmo que o projeto leve o nome só de uma pessoa. Os músicos são grande parte da música. Eu não sou Prince, que toca 20 instrumentos, essa não é a minha história. Eu gosto de tocar com outros músicos, isso me incentiva a ser melhor. Gosto de ser o líder de uma banda, juntar pessoas, fazer os arranjos, mas para mim é sempre importante ressaltar que a forma como faço música é colaborativa. Sobre as camadas de uma canção, principalmente com músicas instrumentais, sem elas, acho que fica entediante. As músicas que ouço, especialmente na medida em que vou envelhecendo, vão ficando mais interessantes. Clássico quer dizer que é atemporal. Quando o álbum sai, você quer que ele seja ouvido, mas meu desejo é que daqui a 10, 20 anos, as pessoas ainda possam se surpreender e descobrir detalhes que não tenham percebido inicialmente. Eu adoro me surpreender quando escuto canções que gosto e percebo alguma novidade”, enfatiza.
Ao ouvir Black Classical Music, fica evidente o talento de Yussef Dayes em reunir diferentes ideias e sonoridades e, ao mesmo tempo, imprimir sua identidade. No álbum, ele se debruça sobre as várias possibilidades do jazz, colocando-o em diálogo com diferentes gêneros, como na faixa-título, “Marching Band”, “Tioga Pass”, “Rust”, “Pon di Plaza” e outras. Para o músico, é preciso expandir a concepção do que jazz e música clássica significam, pois suas imagens parecem ter se cristalizado em um lugar apartado do popular.
“Para mim, há muitas inter-relações entre os gêneros de música. Quando eu era pequeno, estudava piano clássico, meu irmão tocava violoncelo – e nós escutávamos afrobeat, estudando jazz. Para mim, fazer música é combinar esses mundos possíveis. Mozart e essas figuras da música clássica tradicional continuam revelantes, assim como, para mim, Miles Davis e John Coltrane ocupam esse lugar. Então o álbum também traz essa ideia de repensar o que é a música clássica. Inclusive, trago a Chineke! Orchestra, primeira orquestra profissional majoritariamente negra da Europa”, aponta.
Ao longo de 19 músicas, o baterista britânico cria uma tapeçaria sonora instigante, que dialoga com o clássico e o contemporâneo. Sua sensibilidade como produtor, inclusive, vem sendo cada vez mais solicitada por artistas de gêneros como o rap, a exemplo de Noname, na música “Potentially the Interlude”, do LP Sundial (2023); o pop e o r&b, como Kali Uchis e Kehlani, para quem ele produziu, respectivamente, as faixas “Blue”, do álbum Red Moon in Venus (2023), e “Hate the Club”, do disco It Was Good Until It Wasn’t (2020).
Além dos músicos que estiveram desde as primeiras sessões, o novo álbum conta ainda com várias colaborações como os jamaicanos Chronixx e Masego (que se apresentou recentemente no The Town, em São Paulo); Jamilah Barry, Elijah Fox, Shabaka Hutchings, Miles James, Sheila Maurice Grey, Nathaniel Cross e Theon Cross. Também presentes estão dois músicos brasileiros, o percussionista Luizinho do Jejê e Tito, ambos de Salvador, reforçando a admiração de Yussef Dayes com o Brasil.
“O período que passei em São Paulo e na Bahia mudou minha vida. Luizinho é um percussionista do Candomblé, assim como Tito. Poder ver eles tocarem é um grande aprendizado para mim. O Brasil tem sido uma grande inspiração na minha vida. Há tantas fusões de ritmos e sons. Sou abençoado em poder viajar pelo mundo e conhecer tantos ritmos de lugares diferentes. Isso me ajudou com a minha forma de tocar bateria; a descobrir novas formas de tocar. É tão bom não ser rígido com aquilo que você sabe. Estou sempre aprendendo. Quando estou com Luizinho, por exemplo, e vejo a liberdade com a qual ele toca, penso: ‘Por que tenho que ser tão rígido? E se eu também relaxar mais os ombros?’. Quero poder compartilhar os vários sons que me inspiram”, reflete.
Com Black Classical Music finalmente disponível em sua completude (“Os singles são um indicativo, mas a experiência completa está com o álbum como um todo”, disse), Yussef agora se prepara para dar uma nova vida às músicas com as apresentações ao vivo. A turnê do álbum começa em outubro, no Reino Unido, e em novembro e dezembro circula pelos Estados Unidos. Em janeiro, ele deve fazer shows no Brasil, no máximo de cidades possível, segundo seu desejo, para depois seguir para a Austrália, Nova Zelândia e Japão.
“Sou de Londres e poder ir para os lugares que me inspiram é maravilhoso, principalmente para o Caribe, o Brasil e países com essa energia e natureza exuberante. Sou muito ligado ao meio ambiente. Estou animado para compartilhar essas músicas ao vivo, ao mesmo tempo em que quero conseguir o equilíbrio para estar presente com minha família, minha filha. É complicado: você quer trabalhar o álbum o máximo possível, mas a família vem em primeiro lugar. Estou tentando encontrar o equilíbrio”, compartilha o músico.
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