Os super-heróis são de modo geral justiceiros. E portanto, alimentam o mito do bandido romântico, do Robin Hood, do marginal com causa. São também, historicamente, sempre homens brancos. Esse é o imaginário fascinante e sedutor em torno do qual é construída a personagem Sister Night, a policial Angela Abar, interpretada por Regina King de forma magistral e densa em Watchmen (2019), a minissérie produzida pela HBO que venceu como melhor minissérie e que deu à sua atriz o prêmio Emmy deste ano na categoria melhor atriz de minissérie.
Ela é uma mulher negra em meio a personagens masculinos de HQ, e esse detalhe por si só já seria suficiente para ser um marco enquanto referência no universo do super-heróis. No entanto, os quadrinhos, e a minissérie ainda mais, vão agregar novos ingredientes a essa questão mais óbvia. Os Watchmen, criação genial de Alan Moore, representam uma espécie de subversão nas histórias de HQ, pois dão visibilidade a heróis que estão longe do padrão ético de um Batman ou Superman.
Totalmente amorais, David Veitz/Ozymandias (Jeremy Irons) e até mesmo o Jonathan Osterman, o Dr Manhattan (Yahya Abdul-Mateen, também vencedor na categoria coadjuvante), e sua representação humana Calvin “Cal” Jelani, não representam mais o que poderíamos classificar de mocinhos ou marginais românticos. Alheios à sua própria essência, eles seguem suas vidas como semideuses, que podem causar catástrofes em nome da moral e dos bons costumes, dos quais abdicaram.
Em 1985, ano em que se inicia a ação da minissérie, os justiceiros foram banidos, e não podem se apresentar publicamente. Por sua vez, a policial Angela, nascida em um Vietnã em que os Estados Unidos ganharam a guerra, casa-se com o investigador Calvin, a versão terrena do Dr Manhattan, que abdica de sua imortalidade para estar ao lado da amada. Quando criança, em Saigon, Angela vê o cartaz do filme Sister Night, da onda blackexploitation (a grande onda do cinema independente negro e moderno nos Estados Unidos), e a personagem a inspira. Angela se torna policial ainda em Saigon, e se casa com Calvin.
O casal vai morar em Tulsa, Oklahoma, na década de 1990, em um tempo em que os policiais devem andar disfarçados, para não serem identificados e mortos. O chefe de Angela, o policial Judd Crawford (Don Johnson), possui uma esposa e três filhos. Angela é a descendente direta de duas vítimas do massacre de Tulsa, conhecido ainda como Massacre da Black Wall Street, (conflito racial verídica e histórico, ocorrido em 1921), e tem direito a uma indenização por parte do governo do presidente Robert Redford (sim, ele mesmo) como uma espécie de reparação. Seu avô, negro e homossexual, foi o primeiro justiceiro mascarado e se chamava Justiça Encapuzada Discriminado mesmo por seus companheiros, ele tem um caso com outro super-herói, o capitão Metrópoles.
A ação da série transcorre durante os eventos envolvendo as tensões raciais em Tulsa, Oklahoma, em 2019. Um grupo supremacista branco chamado Seventh Kavalry (Sétima Kavalaria), que lembra em demasia a Klu Klux Khan, pretende instaurar a sua Noite Branca, eliminando os negros.
Uma das sessões deliciosas de encontro do grupo é para assistir, com direito a pipocas, à sessão especial do filme Birth of a Nation (Nascimento de Uma Nação, 2015), de David Grifith, autêntico libelo racista em favor da um nacionalismo branco e considerado pelo próprio Alan Moore como o primeiro filme de super-herói da história estadunidense. Desta forma, a série narrando a trajetória de Abar e sua descoberta de que é descendente daquele que teria sido o primeiro justiceiro negro ganham ainda mais relevância.
Há outras personagens femininas de peso na minissérie, como Laurie Blake (nascida Juspeczyk), interpretada por Jean Smart, anteriormente Silk Spectre, que se torna agente do FBI e membro da Força-tarefa Anti-Vigilante; ou ainda Hong Chau como Lady Trieu, a dona da Trieu Industries, uma corporação que comprou a Veidt Enterprises seguindo notícias de sua morte, e mais tarde revelada como a filha de Veidt por inseminação artificial.
Nenhuma delas tem o brilho e a unicidade de Abar. No processo de sua transformação em Sister Night, uma monja justiceira, ela se redescobre como mulher negra e se afirma como uma anti-heroína, em meio a uma luta de disputas raciais e de poder, em uma nação distópica que já foi considerada como a mais poderosa do planeta. Aqui, não há comunistas a serem combatidos, os demônios e os conflitos são todos domésticos.
A cena final, com Angela colocando o pé na piscina, rumo a um destino que poderia bem ser o de Jesus caminhando sobre as águas, é de arrepiar.
O projeto da minissérie é de Damon Lindelof, de Lost, mas os episódios foram dirigidos por Nicole Kassell, que fez o piloto e assina a produção executiva. Watchmen arrebatou os Emmys de melhor atriz e ator, que já citamos, além de melhor minissérie, mas também foi lembrado nas categorias técnicas de Melhor Fotografia em Minissérie ou Filme; Melhor Figurino de Série de Fantasia ou Sci-Fi; Melhor Mixagem de Som para uma Série ou filme Limitado; Melhor Edição de Imagem Com uma Única Câmera em Minissérie ou Filme Limitado. O autor de sua trilha é Trent Reznor do Five Inch Nails).