Texto por Vitor Ramil:
Em 2021, durante a pandemia, justamente por estar isolado em casa, fui contaminado pela poesia de Paulo Leminski. Certo dia, enquanto lia o poema Sujeito Indireto, passei a mão no violão e minha imunidade baixou. “Quem dera eu achasse um jeito, de fazer tudo perfeito” logo virou canção. Nos dias subsequentes a cena se repetiu com outros poemas. Em três semanas, treze poemas, treze canções: “De repente”, “Teu vulto”, “Administério”, “Amar você”, “Profissão de febre”, “Palavra minha”, “Um bom poema”, “Anfíbios”, “Será quase”, “Sujeito indireto”, “Minifesto”, “Caricatura”, “Mantra Concreto”.
Assim começou Manta Concreto. O nome vem de um poema cujo título foi dado por mim. Muitos poemas de Leminski não possuem título. Os versos de Mantra Concreto remetiam à poesia concreta, que influenciou o poeta. Seu tema, de prece e pressa, com pinceladas entre o mítico e o espiritual, me fez pensar em mantras e no caráter mântrico de muitas das minhas composições, que ganhavam concretude com aquela poesia clara e rigorosa. A expressão “mantra concreto” passou então a representar o conjunto das canções e a sugerir os caminhos para a concepção do álbum como um todo: arranjos, gravações, mixagem, masterização e capa.
O disco seria inevitavelmente uma homenagem a Paulo Leminski, até porque seria gravado e lançado em 2024, ano em que ele completaria 80 anos. Eu não sabia dessa efeméride, que me pareceu meio mágica, feito o meu surto criativo. O que, sim, sabia, era que cada aspecto do trabalho deveria estar contaminado pelo autor e sua poesia.
Com a colaboração de meus co-produtores e músicos de base Alexandre Fonseca e Edu Martins, encarei o desafio trabalhando de modo minucioso e com calma. Eu estava em Pelotas, Alexandre no Rio, Edu em Porto Alegre. Os músicos convidados, André Gomes (sitar, guitarra), Carlos Moscardini (violão), Santiago Vazquez (kalimba) e Toninho Horta (guitarra) estavam, respectivamente, em São Paulo, Argentina, Uruguai e Belo Horizonte. Vagner Cunha (violino), José Milton Vieira (trombone) e Pablo Schinke (violoncelo) estavam em Porto Alegre. Nunca tocamos juntos, mas o resultado foi como se tivéssemos nos reunido na casa de Leminski.
Que responsabilidade traduzir Paulo Leminski em música, ele que, como está em sua fala na canção de abertura, De repente, dizia que “a música é o destino natural do ser humano”. Buscamos que essa tradução fosse completa e percebida logo de cara na sonoridade dos instrumentos. Há muito tempo eu queria experimentar o baixo sintetizador por intuir que sua combinação com meus violões de aço, que gravo dobrados e tocados simetricamente, seria o ideal para termos graves pesados sem interferir na integridade dos violões. A hora era aquela. Era preciso que o synth fosse tocado principalmente com notas breves, de modo a não tomar conta do espectro sonoro. Para completar a sonoridade básica que perpassaria todo o disco, bateria, tablas, demais percussões e programações cuidariam não só da rítmica, mas também do colorido nas regiões médias e agudas. Edu Martins, músico de exceção, é também um mago que fez chover com o synth bass; Alexandre Fonseca, tablas e bateria, é conhecido do meu público pelo trabalho marcante em Ramilonga – A estética do frio. Premiado num concurso do Nine Inch Nails, ganhou direito a acessar o banco de sons da banda. Com isso cravou alguns pregos de nove polegadas e foi fundo em suas próprias invenções, como tocar em esculturas de ferro. Assim chegamos ao que nos pareceu uma atmosfera leminskiana para todas as músicas.
Para a capa, desde o começo desejei algo que remetesse ao construtivismo e ao cubo futurismo russos e também à cultura pop. O designer Felipe Taborda apareceu com uma paródia do clássico cartaz de Rodchenko e Maiakóvski. Nada mais alta cultura e pop ao mesmo tempo, exatamente como a poesia de Paulo Leminski, em que a voz das ruas conversa com a voz interior mais elevada, em que um grafite casual ombreia com versos da maior sofisticação. O cartaz original, conforme apresentado no encarte, oferece livros de “todos os campos do conhecimento” à classe trabalhadora. Leminski e o velho León certamente iam gostar. Como ícone pop, a peça de Rodchenko e Maiakóvski já foi usada mil vezes como propaganda de festas estudantis e, entre outras aparições, inspirou a capa de um disco da banda de rock Franz Ferdinand.