“As mulheres têm ocupado, mas ainda é muito pouco. Para você ter uma ideia, apenas 5% dos direitos autorais são de mulheres”, assevera a cantora e compositora Vanessa da Mata, ao analisar o cenário musical brasileiro para as mulheres. A artista é uma das atrações do palco principal do Carnaval do Recife 2024, no Marco Zero, no Sábado de Zé Pereira (10), a partir das 20h20. Durante o dia, a mato-grossense estará nos trios elétricos para se apresentar no 45º desfile do Galo da Madrugada, no centro da capital pernambucana. Pelo menos 2,5 milhões de foliões são esperados pela organização do bloco.
Dona de uma voz leve, mas com a maturidade e a experiência de quem comemora 20 anos de carreira, Vanessa da Mata celebra o momento: “Acho que já provei a minha musicalidade, não preciso me sentir mais uma mulher objeto”, conta.
Com roteiro norteado pelo álbum Vem doce, lançado em 2023 pela cantora, o show homônimo chegou a Pernambuco no último sábado (3), no Baile Municipal do Recife, e fez feliz a plateia que lotou o Classic Hall.
À Revista O Grito!, a aquariana revela que celebra idade nova na cidade: “Meu Aniversário”, que é uma música minha, só minha, e que fiz no dia de um aniversário, porque no dia 10 estarei no Galo da Madrugada de manhã e, à noite, no Marco Zero, e é meu aniversário”, antecipa a festa.
O álbum que dá nome à turnê pode ser considerado uma coletânea de 13 crônicas sobre aspectos da condição humana, musicadas e pertencentes a diferentes ritmos, como forró, piseiro, R&B, pop e trap. O disco não estabelece um fio narrativo, mas apresenta uma série de situações de conflitos que são comuns na vida moderna. Vale lembrar que o álbum foi indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira.
Programação do Carnaval 2024
Shows no Marco Zero: Gilberto Gil, Ludmilla, Luísa Sonza, Alceu Valença
Rec-Beat: Letrux, Ana Frango Elétrico, Urias
Praça do Arsenal e Pátio de S. Pedro: Rubel, UANA, Marcelo D2
Olinda, praça do Carmo: Nação Zumbi, MC Tocha, Siba
Olinda, Guadalupe: Conde Só Brega, Dany Myler, Abulidu
De Pernambuco, parceria ao fazer Comentário a respeito de John (Belchior e José Luiz Penna) na gravação com o astro do piseiro João Gomes. “Ele é um menino extremamente culto musicalmente e é um espanto porque a geração dele é muito defasada”, elogia a artista.
A cantora falou de maternidade, carreira, espaço das mulheres na música brasileira e novas parcerias, como a com o rei do piseiro, João Gomes. Confira:
Você é neta de baiana rezadeira. A sua paixão pela cultura nordestina é algo que vem de berço?
Sim, a minha paixão é com certeza de berço, de convivência, de identificação, de achar essa referência um luxo, um ponto alto da minha autoestima como brasileira, cidadã mesmo.
Vanessa, você tem uma identificação forte com a composição, com a música autoral. Você sempre quis ser uma contadora de histórias em canções?
Eu, desde sempre, amava os compositores brasileiros: Chico, Milton, Caetano, Tom. Desde a época de Orlando Silva, as canções sempre foram muito ricas para mim, mas nenhuma canção traduzia realmente o que era mais profundo para eu dizer. Era uma necessidade de expressão mesmo, como autora. E, por aí, eu desenvolvi essa minha necessidade cronista de contar histórias, de contar conversas brasileiras, de como se estivesse falando com as pessoas. É assim que eu vejo, tanto em “Boa Sorte” como em “Ai Ai Ai”, como ainda “Bem Amado”. Estou contando para uma amiga, para um amigo, o que penso de alguma coisa. E, às vezes, são personagens também. Eu não necessariamente penso daquela maneira, mas pode ser picante, pode ser engraçado. Uma maneira de reflexão, são crônicas.
A sua trajetória atinge os 20 anos de carreira. Do começo pra cá, o que mudou profissional e pessoalmente?
Em 20 anos muda tudo. Muda a maneira de ver a vida, mudam os hormônios, muda a ansiedade terrível da juventude, que eu acho que é uma super maneira boa de envelhecer, de perceber a vida de uma maneira tranquila, porque quando esses hormônios dos 20 anos começam a passar, acho maravilhoso. Acho que muda tudo. A maneira como vejo a carreira também muda muito. A segurança muda muito. No meu caso, que eu me firmei, então é muito diferente, eu estou falando em meu nome mesmo. Me firmei nesse mercado que é completamente instável e que não é possível programar nada. Em dois anos tudo muda. Acho que existe uma segurança maior hoje em dia no meu trabalho.
A maneira de ver meu trabalho de jeitos diferentes, já elaboro e planejo mais, tenho mais organização nele do que antes. E, como compositora, vejo realmente um desenvolvimento nele bem maior, inclusive no sentido social mesmo, de falar do socioeconômico, do educativo, do Brasil, do brasileiro. Acho que me desenvolvi melhor nesse sentido, mais poético, mas, ao mesmo tempo, organizando melhor as letras, as melodias. Eu tenho essa sensação.
As mulheres têm ocupado cada vez mais espaços na sociedade em diversas áreas, apesar do forte machismo e, na música não é diferente. Como enxerga esse cenário? Sente falta de músicas feitas inteiramente por mulheres?
Bom, as mulheres têm ocupado, mas ainda é muito pouco. Para você ter uma ideia, apenas 5% dos direitos autorais são de mulheres. Então, é apenas 5%. É muito pouco. No cenário nacional, no Brasil, é muito pouco.
Mas sinto que sim. A composição é uma coisa extremamente desenvolta no sentido de liberdade, liberdade da fala, no poder dizer. Então, entendo isso como uma coisa revolucionária para a mulher. Para muitas mulheres, ainda é uma sensação da não-fala, do não-poder de fala, isso que é tão, essa expressão tão massacrada hoje em dia. Mas é verdade. Acho que quando a mulher consegue se libertar, vai a um nível mais profundo ainda do que só interpretar o que um homem compõe ou o que uma outra mulher vem a compor, o que é mais difícil. Mas ela realmente consegue imprimir e fazer com que a manufatura dessa música toda seja expressada. Só apenas 5%. Tem muita coisa para ser feita ainda.
Você tem aparecido mais ousada: nas roupas, na rotina, nas fotos. Que descobertas motivaram isso?
Mais ousada. Pois é, eu acho que a idade fez isso, a autoestima fez isso, a sensação de não tivesse o meu corpo, não tivesse as minhas vontades, não fosse dona de mim antes, mas acho que já provei a minha musicalidade, não preciso me sentir mais uma mulher objeto. Então, não preciso ter que provar mais o talento que tenho das composições, elas são cantadas do começo ao fim do Brasil e tantas vezes lá fora. Já me sinto à vontade para poder ficar mais à vontade comigo mesma, sem ter que provar nada a ninguém.
E como é a Vanessa em casa, seus filhos são os seus xodós?
Bom, a Vanessa em casa ainda consegue ter a sua vida preservada, os filhos preservados, protegidos, e isso para mim é muito relevante, muito necessário. Sempre ensinei os meus filhos a terem essa proteção, fazerem com que eles sigam uma rotina normal, e se um dia quiserem usar a imagem, que usem, mas não que não sejam forçados a isso, e eles aprendem bem. Fazem teatro, uma outra faz cinema, e estão seguindo suas vidas com muito afinco, com força.
Você volta aos palcos do Recife com o espetáculo ‘Vem Doce’? O que os foliões podem esperar desses espetáculos na capital pernambucana?
Bom, nós ajustamos o espetáculo “Vem Doce” para o Carnaval do Recife. Nós trouxemos algumas músicas, por exemplo, “Meu Aniversário”, que é uma música minha, só minha, e que fiz no dia de um aniversário, porque no dia 10 [próximo sábado, o famigerado Sábado de Zé Pereira] estarei no Galo da Madrugada de manhã e, à noite, no Marco Zero, e é meu aniversário. Então, essa música não poderia ficar de fora. E algumas outras, uma homenagem a Gal Costa e uma homenagem a Rita Lee, que para mim são ícones maravilhosos. Uma compositora absoluta, libertária, revolucionária, cantora também, figura forte de frente de palco, e uma outra com uma voz de deusa completamente pronta, uma voz sofisticadíssima, biologicamente, para ter aquela voz de cristal que é Gal. Então, são espetáculos que a gente já está ensaiando e com participação especial de alguns músicos do Spok, e para a gente vai ser lindíssimo. Para mim é um sonho ter metais no show.
A letra da faixa “Foice”, você diz: “Levante a cabeça pros racistas / nossa incompetência política”. É o sentimento da conjuntura política brasileira? Poderia comentar?
Bom, esse disco foi feito antes dessa conjuntura nova brasileira. Então, ele foi lançado nessa troca dessa conjuntura. Ele falava de um passado, mas também de um geral. Nós temos quase a mesma idade dos Estados Unidos, e, em matéria de desenvolvimento, a gente está muito atrás. Isso, com certeza, é ainda uma incompetência brasileira no sentido geral de política. E que a gente espera que isso seja consertado em algum momento, porque é tudo muito caro. E não é uma questão de trabalhar ou não. Às vezes, tem pessoas que trabalham o dia inteiro, madrugada toda. São questões que desanimam muito as pessoas mais pobres. E eles sabem disso também. Da cultura também, que estava muito sendo apoiada por um retrocesso terrível, enorme, e quando tudo é feito para que o povo seja manipulado e não feito para pensar sozinho, isso é desanimador mesmo. Você vê que está muito na cara que essas questões são um indício de emburrecimento, de proposital.
“Vem doce” conta ainda com a parceria que você faz com João Gomes, atual representante do piseiro, interpretando “Comentário a respeito de John”, de Belchior. Como foi essa experiência com o cantor pernambucano?
Bom, João é um pernambucano nato e, culturalmente, não foge à sua naturalidade. Ele é um menino extremamente culto musicalmente e é um espanto porque a geração dele é muito defasada. Não estou generalizando a todos, mas, no sentido maioral de nossa sociedade atual, é desesperador e existe uma produção muito pequena de uma galera que ainda repara em letra, repara em melodia, repara em arranjo e eu fiquei muito animada com a cultura do João.
E é um menino que não tem desculpa, que veio de uma família simples e que tinha uma mãe completamente atenta à música, à cultura. Então, ele aprendeu e valoriza e sabe das vertentes da música nacional e eu fiquei muito feliz em conhecê-lo. Acho que ele é, quando você ouve a música, é um reflexo de uma tradição nordestina extremamente forte, familiarizada, né, dentro dessa cultura, com os sotaques e uma voz gravíssima, o que é raro é um grave muito encorpado. Um grave velho de voz que é raro para um menino do corpo que ele tem e da juventude que ele ainda se encontra. Então, eu acho que o pernambucano tem essa naturalidade, inteligência, busca, curiosidade, que é muito importante na vida, para aprender, para ouvir essa necessidade de ouvir e de conhecer coisas que não são só da ossada da geração.
Já presenciei uma festa em Olinda, cujas pessoas que estavam ali ouviam Orlando Silva, que é uma coisa que eu adoro: anos 30, 40, 50, da música brasileira, e eles sabiam quem tocava o violão. Fiquei muito impressionada, assim, emocionada com aquela situação. Me emocionei várias vezes. Não, eu ouvia as pessoas discutindo quem estava tocando o violão, que podia ser o fulano, o outro, o outro, não, mas que eles tinham certeza de quem era. Pegaram o vinil e confirmaram quem era que estava tocando.
Ali [Olinda] é sensacional e essa avidez pela cultura me emociona muito. São pessoas capazes de pensar por conta própria, tem seu próprio estilo, tem sua maneira de falar, tem autoestima gigantesca. Não é uma questão de autoestima, de imitar o internacional, e isso é fruto de muita inteligência mesmo, de ser capaz de pensar sozinho, não imitar tendências, não imitar o mercado comprado, não ser um tipo vendido, isso é um motivo de muita alegria.