A revista Pé-de-Cabra chega ao seu terceiro número com uma curadoria que reúne 42 artistas com trabalhos que tem como tema a “televisão”. A antologia segue como uma espécie de revide ao atual conservadorismo no Brasil e reúne inquietações de quadrinistas que questionam moralismos, política e a própria sociedade brasileira de hoje.
Carlos Panhoca, editor da publicação, fez a seleção a partir de mais de 300 submissões de trabalhos oriundos de uma chamada pública, o recorde nesses três números da revista. Esse volume de participação reflete também uma cena underground de quadrinhos bastante ativa. Ao lado da Pé-de-Cabra, uma geração de artistas tem como proposta estética questionar o status quo e propor novos formatos e narrativas, sobretudo na busca de um traço mais ousado e experimental.
O momento atual, com ameaças à democracia e o fascismo batendo à porta, trouxe à tona sentimentos de embate em muitos artistas, segundo Panhoca. “Acho que isso acaba gerando uma produção de quadrinhos de confronto maiores”, diz. “Vejo bastante gente que era bem zen e fazia quadrinhos sobre diversos temas indo pra temas de confronto e política pesada.”
O tema desta edição – televisão – deu pano pra manga para falar de muitos assuntos, segundo o editor. “A Televisão de um país reflete o show de horrores que ele é”, explica. “É um espelho perverso de nossa sociedade e tive vontade de ver o que os quadrinistas nacionais pensavam sobre aquilo”.
Participam desta edição nomes como Victor Nello, Benson Chin, Kellen Carvalho, Galvão Bertazzi, Cynthia B., Pedro D’Apremont, Bruna MZF, entre muitos outros. Compre a nova edição na loja online da Pé-de-Cabra.
Aqui um papo com Panhoca sobre a nova edição, televisão no Brasil, cena de quadrinhos e os sentimentos de lançar um novo trabalho em meio à pandemia do Covid-19.
A Pé-de-Cabra sempre foi uma antologia bastante combativa, um revide nesses tempos de conservadorismo. Como é lançar este terceiro número em um momento de acirramento dessas tensões políticas, de uma ascensão cada vez maior do fascismo?
Cara, é complicado. Eu abordo (muito brevemente) esse momento no editorial da revista com o grande bordão da infância nos anos 90: “que burro, dá zero pra ele” É a minha reação pra cada vez que eu vejo aquele imbecil abrir a boca. É repugnante, é odioso e nos faz entender aquelas pinturas e gravuras de execuções de Luís XVI. Eu sempre me questionei porque tanta gente sairia de casa pra assistir uma execução. Eu sairia com um balde de pipoca. Mas não temos isso e nem um horizonte em que isso possa ser possível, então, a gente espera e evita sair de casa.
Publicar uma revista entra nessa empreitada de tentar ajudar todo mundo um pouco mais a ficar em casa. Quando a chamada foi feita a epidemia, ainda não tinha saído da Ásia e eu não fazia ideia do que iria se tornar, mas a gente já falava sobre censura e o fim de eventos culturais como feiras de quadrinhos e exposições. Se eles querem parar com a subcultura do quadrinho nacional independente, então isso dá mais um empurrão pra gente continuar. Eles que se fodam.
Por que a decisão de trabalhar com temas em cada edição? E qual foi a sacada para pensar em “Televisão” para este terceiro número?
Trabalhar com temas foi uma forma de conseguir uma unidade melhor nas revistas. Na primeira edição, quando ainda não havia um tema fixo, muito material bom foi deixado de fora simplesmente por contrastar totalmente com os outros e tornar a revista pouco coesa. Aí veio os temas.
Televisão acabou sendo o tema dessa edição por uma série de motivos: 1- eu vejo muita televisão. TV aberta principalmente. É um universo que domino e consigo analisar bem os trabalhos. 2- Ali é o palco de tudo. A gente fala muito da internet, mas o grosso dos brasileiros assistem televisão. É lá que acontece tudo. A Televisão de um país reflete o show de horrores que ele é. Assistir as pegadinhas do Ivo Holanda e entender como a gente ri, o Polishop e ver como se vende, a Jequiti piscando mensagens subliminares e os absurdos cada vez mais insanos nos programas vespertinos. Tudo isso é um espelho perverso de nossa sociedade. Isso é manga pra muita história boa que eu tive vontade de ver o que os quadrinistas nacionais pensavam sobre aquilo.
A TV é parte importante da cultura brasileira, no que ela tem de pior e melhor.
Eu vejo muita TV. Agora eu tenho TV a cabo, mas eu ainda assisto a TV aberta, mas estou totalmente fascinado com a variedade de reality shows que temos na TV a cabo. Largados e Pelados é uma ode à imbecilidade humana. Tu pode ficar na tua casa tranquilo, vivendo uma vida de conforto e você fica retornando à selva pra provar que você consegue sobreviver a uma situação em que você nunca seria exposto. É fascinante. Por que alguém se inscreve no De Férias com o Ex? Não tem prêmio em dinheiro, a edição só mostra o que você faz de pior e todo mundo que tá lá se queima diante de milhões de telespectadores!? A gente fica muito preso aos nossos interesses com redes sociais, e a televisão nos deixa furar a bolha e ver um outro lado da sociedade que nos é completamente estranho. Eu gosto dessa sensação.
A gente fala muito da internet, mas o grosso dos brasileiros assistem televisão. É lá que acontece tudo. A Televisão de um país reflete o show de horrores que ele é.
Como é o processo de curadoria da revista? Vi que você postou o recorde de 300 trabalhos submetidos! Como compor a seleção final de HQs da edição?
Cara, dessa vez foi bem estressante. A revista teve versões que variavam em torno de 12 trabalhos diferentes de uma pra outra. Eu não tenho certeza se essa é realmente a melhor versão da Pé-de-Cabra 3. Muita coisa boa acabou ficando de fora. Eu fiquei lendo e relendo as histórias e peneirando até chegar nessa versão. No final, acho que a revista reflete bem o que é a a TV, tentando abordar a maior variedade de programas e relações televisivas que você pode ter, quase como se você tivesse entediado zapeando os canais de alguém que tem TV a Cabo.
A Pé-De-Cabra será lançada em meio a uma pandemia que praticamente cancelou todos os eventos de quadrinhos no Brasil. Como acha que a Covid-19 vai afetar o cenário de quadrinhos?
Acho que fodeu. As feiras são grandes partes das vendas da Pé-de-Cabra. As minhas vendas do Motim e Des.Gráfica foram iguais ao resto do ano inteiro em vendas online. Pensar que não temos a segurança pra que alguém folheie a revista pra saber se se interessa nela ou não é péssimo para vender a revista.
Enquanto isso, a gente vai tentando vendê-la através das redes sociais e estocando no escritório. Em algum momento isso tudo vai passar e aí teremos feiras e poderemos vender ela melhor novamente. Pode ser no começo do ano com uma vacina, pode ser daqui a doze anos, pode ser que a gente fique congelado em cápsulas e saia no século 30, tipo Futurama, e a revista nem faça mais sentido e a galera do futuro compre ela pela esquisitice. Pode ser que eu seja muito burro de estar lançando uma revista no meio da pandemia, mas aí a resposta tá fácil: a culpa é da televisão.
A televisão nos deixa furar a bolha e ver um outro lado da sociedade que nos é completamente estranho. Eu gosto dessa sensação.
Poderia comentar um pouco sobre essa edição 3? Pelo pouco que vi do que publicaram no Instagram e Facebook, os trabalhos estão incríveis. Existe algum que te marcou ou que vc gostaria de comentar?
Eu gosto muito mesmo da HQ do Fabio Lyra. Três páginas sobre a vida de Bart Simpson fazem um paralelo com a vida do brasileiro e o nosso momento político que são um tapa na cara. Sem contar a arte dele que é espetacular. A Bruna MZF mostra uma arte muito foda também no grafite sobre aparições de Jesus Cristo em locais inusitados e a forma como o Twitter faz algo virar assunto nacional em poucos segundos. Enfim, tem muita gente que eu gostei de ter visto trabalhos na revista. Marco Vieira, Arame Surtado, João B. Godoi, Beatriz Shiro. O Zimbres não vale. Tanta coisa boa. Fica difícil escolher um trabalho pra destacar só.
A Pé-de-Cabra faz parte de uma cena underground bastante ativa e experimental, de uma estética que foge dos padrões e uma narrativa mais transgressora, que contesta moralismos. Enxergo a revista como uma representante desse momento bastante prolífico de publicações alternativas. O que você, como editor, acha dessa cena?
Pô, valeu! Eu acho que isso é reflexo do momento principalmente. Esse tipo de HQ e estética sempre esteve por aí, mas em tempos de outros governos as minhas preocupações eram se o STF ia legalizar a maconha no Brasil ou condições melhores de trabalho. A gente ter tantos direitos ameaçados de uma vez só nos torna mais estressados e agressivos e desperta um monte de sentimentos negativos que precisam sair da tua cabeça de uma forma ou de outra, se não tu vai acabar surtando. Acho que isso acaba gerando uma produção de quadrinhos de confronto maiores. Vejo bastante gente que era bem zen e fazia quadrinhos sobre diversos temas indo pra temas de confronto e política pesada. É ótimo ver nessas feiras esses bottons de quadrinistas antifascistas e ver essa discussão mais presente no meio dos quadrinhos sem ficar no estigma de “ah isso aí é coisa de punk e estudante de humanas no DCE”. Isso tudo é palpável e necessário. Espero que o Brasil melhore e as publicações piorem. Fiquemos todos putos!
A gente ter tantos direitos ameaçados de uma vez só nos torna mais estressados e agressivos e desperta um monte de sentimentos negativos que precisam sair da tua cabeça de uma forma ou de outra, se não tu vai acabar surtando.
A Pé de Cabra também tem lançado trabalhos além da antologia, como os gibis do Pedro D’Apremont e o último do Gerlach. Como se dá essa escolha para montar o catálogo? Já tem novos lançamentos a caminho?
O Gerlach e o Galvão Bertazzi foram as duas primeiras pessoas que eu abordei sobre lançar algo pela Pé-de-Cabra. Eu gosto muito do trabalho deles e da forma como eles pensam. Antes de sair os gibis deles, o Cris apareceu com essa ideia de fazermos o Realidade, um gibi de Brasil distópico com umas ideias fodidas. Tava dentro da linha de pensamento do que eu quero na editora. O D’Apremont é um cara que eu converso bastante, a gente se conhece tem uns sete anos já e foi um gibi que já tava pronto também. Cedo ou tarde, se não esse, outro gibi dele com certeza iria acontecer.
Aí como todas as histórias já tinham saído pela VICE gringa e são um material que aborda o underground do metalpunk e são bons demais para não saírem por aqui, a gente se adiantou e lançou. Acho que no final acaba sendo uma linha editorial meio concisa de gente puta com o país ou algo do tipo que converse com essa estética do punk, cartoon, etc. Sobre publicações futuras, planos sempre tem, grana eu duvido que role.
Estamos com o GFNTV 3, do Chico Felix, que é um gibi que a Prego publicava por aqui e vamos fazer isso em conjunto porque eles tão em Portugal e a gente assumiu a produção dele por aqui. Antes da pandemia chegar eu tava bem feliz, com outros dois gibis sendo feitos para serem lançados na Bienal de Quadrinhos de Curitiba, mas agora não sei como estou. Não tem mais prazo, nem pressa e talvez nem grana. Em algum momento deve sair coisa nova.
Como avalia o projeto até aqui? Tem planos para edições futuras?
Até agora tem sido divertido. Não daria pra viver disso, mas como um projeto paralelo ao meu emprego é bem massa. Acho que quanto mais gente publicando melhor pra todo mundo. Eu compro gibi de uma porrada de editoras e autores independentes diferentes e espero que tenha cada vez mais gibi na prateleira. Por outro lado, eu tenho cada vez menos espaço no meu apartamento. Eu queria muito assistir essa temporada nova do De Férias Com o Ex com o sofá inteiro pra mim.
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