O Sal da Terra revela Sebastião Salgado além do mito
Juliano Salgado diz que o documentário, indicado ao Oscar este ano, o reaproximou de seu pai
Por Karen Lemos
De São Paulo
A princípio, O Sal da Terra, que chega aos cinemas no próximo dia 26, pode parecer um documentário sobre o fotógrafo e sua arte, mas seria injusto simplificar desta maneira. Mais do que esmiuçar a obra, o longa-metragem fala das experiências de uma testemunha dos últimos 40 anos de história mundial.
Foi testemunhando por trás de uma lente que Sebastião Salgado fez registros históricos como a guerra civil na Ruanda, o surto de fome na Etiópia, o conflito étnico-religioso na antiga Iugoslávia, a corrida de ouro na Serra Pelada, além de apresentar um novo olhar para o Nordeste brasileiro, a América Latina, algumas tribos indígenas e até para a Ilha de Galápagos, como um Darwin contemporâneo.
O documentário tem início com algumas imagens da corrida do ouro no sudeste do Pará – talvez as mais conhecidas de seu acervo fotográfico. Sebastião surge a partir daí comentando os registros e, mais do que isso, revelando as memórias ocultas de cada foto.
“Esse filme precisava ser sobre as experiências dele. Todo mundo conhece suas fotos, mas não as histórias por trás delas”, resumiu o diretor Juliano Salgado, filho mais velho do fotógrafo, ao divulgar seu filme que abriu a 4ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, em São Paulo.
Sebastião marcaria presença no evento, mas precisou cancelar o compromisso por conta da trágica morte de sua cunhada, Leny Wanick Mattos, no dia anterior.
Juliano assina O Sal da Terra em uma parceria com o cineasta alemão Win Wenders. Para mergulhar em sua obra, a dupla usou um recurso curioso. Em algumas sequências, a imagem de Sebastião surge sobreposta às suas fotografias, fazendo com que o próprio artista fique imerso à sua obra para poder comentá-la, mergulhando junto com o espectador em seus registros e quebrando a fronteira entre papel e olho humano.
É também a sensibilidade de Sebastião em capturar a alma humana que nos torna ainda mais próximos de sua obra. “Muitos fotógrafos gostam de falar deles; falam da luz, daquele momento em que a câmera quebrou, das dificuldades que enfrentou para fazer uma foto, enfim. O Tião, não! Tião fala das pessoas que fotografa, mostra como elas se revelam em momentos de crises, como fazem para sobreviver. Esse jeito dele de fotografar, essa relação íntima, transcende, nos faz enxergar não só uma foto, mas a pessoa na imagem que, de tão próxima, poderia ser nosso vizinho, nosso irmão ou até nós mesmos”.
O papel de Win Wenders
Um dos mais conhecidos registros de Sebastião, Refugee from Gondan, Mali, 1985, chamou a atenção de Win Wnders – naquela época já um respeitado diretor de cinema – em uma exposição de arte. Sem hesitar, ele comprou a foto que, segundo o próprio, ainda o faz chorar todos os dias quando pousa os olhos sob o rosto sofrido da refugiada, que agora descansa sob o criado mudo do cineasta.
Naquela ocasião, o galerista mostrou a Wenders outras imagens daquele mesmo fotógrafo. No verso de um dos registros da corrida do ouro na Serra Pelada ele soube o nome daquele que se tornaria um amigo íntimo. Até hoje, os dois trocam mensagens pelo Whatsapp, normalmente piadas e zoações a respeito de futebol. “Win é muito fã do trabalho de Sebastião”, recordou Juliano. “Ele já queria fazer algo sobre ele e, quando soube que eu estava filmando suas viagens, gostou da ideia e quis participar”.
Win ficou com o papel de entrevistar Sebastião e dele arrancar as histórias de seus cliques pelo mundo afora. Não foi tarefa fácil para quem passou a vida protegido por lentes que, de uma hora para outra, passaram a observá-lo incessantemente. “Ele não entende essa coisa de cinema, não tem paciência para isso. Foi uma experiência sofrida nesse sentido”, riu Juliano.
A maior dificuldade parou por aí já que, na opinião do diretor, a vida do pai tem uma dramaturgia natural. “Que não precisa ser dramatizada”, ressaltou. “O auge da carreira de Sebastião, a quebra da sua maneira de fotografar, que veio logo após uma forte depressão, e a forma com a qual ele se reinventou depois disso dá uma ótima história”, observou.
Reaproximação com o pai
Nascido na França, onde Sebastião mudou-se com a esposa e parceira artística, Lélia, no final da década de 1960 – pleno período de ditadura militar no Brasil, Juliano pouco via o pai. A distante relação não permitiu, no entanto, que o filho deixasse de admirá-lo; pelo contrário, Juliano sempre enxergou o pai como um verdadeiro aventureiro que, ao voltar de suas excursões pelos quatro cantos do mundo, trazia consigo relatos que nem mesmo o mais hábil contador de histórias poderia recriar.
Através de um convite, feito em 2009, para acompanhá-lo em uma incursão pela Floresta Amazônica, Juliano pode compartilhar das aventuras e do amor paterno que, durante muitos anos, lhe foi privado por conta das longas viagens de Sebastião.
“Esse filme serviu para que eu me reaproximasse de meu pai”, contou. “Antes deste convite, tínhamos uma relação mais distante. Quando o acompanhei em uma reportagem sobre a tribo Zo’é, no Pará, algo curioso aconteceu. Esse povo é super dócil e não conhece brigas. Isso contagiou nossa relação, nos abrindo portas não somente para realizar este filme, mas também para nos tornamos amigos”.
Outro presente que O Sal da Terra entregou à família Salgado foi uma indicação ao Oscar de melhor documentário em longa-metragem deste ano. Embora inesperado, a nomeação trouxe uma nova projeção de luz ao filme. “Quando uma premiação, considerada como a maior do mundo, decide trazer o documentário para um espaço midiático fantástico é algo além de qualquer coisa que podíamos imaginar; a conseqüência disso é poder levar essa mensagem para o mundo todo”.
Considere como mensagem não somente o trabalho de toda uma vida realizado por Sebastião, mas também de projetos pessoais como o Instituto Terra que, com a ajuda de locais, transformou em realidade o sonho do fotógrafo de replantar parte da Mata Atlântica que fez parte de sua infância na cidade natal de Aimorés, Minas Gerais – uma ideia que, em tempos de desmatamento, vem a calhar. “Mais difícil do que plantar na terra infértil é mudar a mentalidade das pessoas. Esse projeto mostrou que isso também é possível”, ressaltou Juliano.