Uma conversa com a multiartista Natali Assunção: “eu crio porque estou viva. Se não fizer é um vazio sem pulsão”

Atriz, fotógrafa e cineasta, a artista pernambucana fala dos processos que levaram ao seu mais recente trabalho, Se Eu Não Vejo

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Natali Assunção na peça "Ainda Escrevo para Elas" (Foto: Li Buarque / Divulgação)

Discussões sobre feminismo são necessárias e, ainda bem, estão em alta. O mundo das artes se apropria desse discurso e usa seu poder de influência para disseminá-lo.

“Quando damos nome às questões começamos a lidar com elas e nomeando o que nos acontece também fortalecemos outras mulheres que vêm a somar”, pontua a multiartista Natali Assunção. Podemos dizer que ela faz parte de uma geração que passou a discutir igualdade de gêneros com maior ímpeto e um dos espaços que fez sua voz e de suas colegas ganharem força foi o teatro.

Dentre seus trabalhos, destacam-se Ainda Escrevo para Elas, monólogo dirigido por Hilda Torres e Analice Croccia. O espetáculo integra o projeto Narrativas de uma Memória em Chamas, idealizado por Natali, que trata sobre liberdade e aprisionamento no cotidiano feminino e já mergulhou em diferentes linguagens, inclusive fotografia, com o ensaio Espelhos, junto à fotógrafa Thaís Salomão, e cinema, com o longa Narrativas, montado por Nataly Barreto.

Nascida no Recife, Natali formou-se em Comunicação Social. Ela trilhou (e trilha) formação em artes cênicas, cinema, além da própria área de comunicação, em constante diálogo com outros setores. A multiartista concedeu esta entrevista à O Grito. Entre os temas que conversamos, estão algumas dessas suas lembranças, além de como tem sido a vida em tempos de pandemia, feminismos, trajetória artística, influências e um pouco dos processos que levaram ao seu mais recente trabalho Se eu não vejo.

Como você se construiu transitando em áreas como teatro, cinema, fotografia e televisão?

Minha formação é em diversas áreas porque meus interesses são múltiplos. Mas nessa variedade de artes e olhares eu vejo unidade e harmonia no que se constrói. Sempre percebo diálogo entre os pontos que traço e na bagagem que carrego – sempre disposta, inclusive, a aprender mais e a alargar o olhar.

Minha graduação é em Comunicação Social – Radialismo e TV (UFPE), com especialização em Jornalismo e crítica cultural (UFPE). Comecei cinema, também na UFPE, mas não concluí. Tenho curso técnico em interpretação pelo Curso de Interpretação para teatro (SESC Santo Amaro/PE), mestra em artes cênicas (UFRN) e agora sou doutoranda em estudos das artes contemporâneas na UFF.

Ou seja, sou atriz, produtora, diretora, roteirista, escritora, documentarista, pesquisadora, locutora, preparadora de elenco… Nas áreas de teatro, cinema, televisão, rádio e internet.

Penso que sigo esse caminho transversal porque cada linguagem me completa de maneira diferente e, por ser de transbordar, minha alma se expressa de diferentes maneiras.

E a universidade? A vida acadêmica desempenha algum papel nessa construção?

Sim, a vida acadêmica veio para somar. Meu Mestrado, por exemplo, fiz um caminho que pode se supor inverso. Eu não fui fazer o Mestrado para realizar um projeto prático. O projeto, na verdade, já existia e estava em andamento quando percebi que atrelá-lo ao mestrado poderia me auxiliar a verticalizar a minha pesquisa. A mesma coisa aconteceu no doutorado. Então a vida acadêmica chega para mim como ressonância do que me interessa e do que eu já vinha construindo no decorrer doa anos de maneira empírica na vida profissional. E, assim como acontece com a questão de trabalhar com diferentes linguagens, eu também não vejo dissociação nessa parte. Está tudo ligado e tudo se complementa.

Você está em cartaz com seu mais novo trabalho, Se eu não vejo, uma experiência cênico-digital realizada via Whatsapp. Qual foco desse projeto?

Esse projeto nasceu de uma proposta do ator Raphael Bernardo, que desenvolve uma pesquisa linda, rica e muito consistente acerca do teatro relacional. Ele queria explicar as relações nesses formatos outros que estamos vivendo no isolamento. Para isso, convidou Analice Croccia para compor a cena e me chamou para colaborar com a criação. Queríamos falar sobre encontro e experiência movendo memórias e afetos. Como isso se dá diante desse período e por intermédio dessas telas? Que afetos nos movem? Como podemos tocar o outre? E assim surgiu Se eu não vejo.

O que te inspira a criar? Existe alguma situação ou algum sentimento que funciona como gatilho para a criação?

Olha, pode parecer clichê, mas eu crio porque estou viva. Se não fizer é um vazio sem pulsão. É uma necessidade vital. Gosto muito de indicar um livro pequenininho até, Cartas ao jovem poeta, de Rilke. São cartas que ele trocava com um jovem que queria ser escritor. Se não me engano são apenas dez das cartas que esse jovem recebeu. Ali, eles falam sobre literatura, mas funciona para tudo o que nos move na vida, em especial, a arte. Penso que ali ele fala muito sobre sentimentos e necessidades que identifico em mim.

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Como enxerga a representatividade feminina no teatro? Temos hoje nomes importantes de mulheres que estão na dianteira do gênero, mas sabemos que ainda há muito a percorrer. O que pode falar sobre isso?

Infelizmente, apesar de estarmos em 2020, ainda não existe igualdade de gênero nas ocupações nem nos salários como um todo, não apenas no teatro. O caminho percorrido até agora foi árduo e longo, mas ainda temos muito a percorrer. Apesar de estarmos vivendo um momento permeado por muito retrocesso também estamos vivendo um período de transformação e conquista. É importante que sigamos nos colocando socialmente, mas também nas nossas esferas pessoais porque a mudança começa aí, e somando nossas vozes. No teatro, especificamente, é importante que leiamos mulheres, vejamos mulheres, destaquemos sim mulheres. Em todas as funções, não apenas como atrizes. E não apenas mulheres brancas e cis. Também aí estamos nos fortalecendo porque estamos montando um espaço de solidificação e destaque para as profissionais.

Todes temos importância fundamental nessa questão. Olhando para o todo, para o lado e também para o entorno. O que transformamos de maneira micro, no nosso dia a dia, vencendo batalhas “pequenas” que, na verdade, são gigantes.

Tem um conceito que é o empoderamento, do qual se fala muito no Brasil. Uma palavra usada especialmente entre as mulheres mais jovens. Como você avalia esse cenário?

Mesmo sem usar essa palavra falei sobre isso no decorrer das perguntas. É uma maneira de olharmos para nós, vendo realmente. Em busca de aprendizado e crescimento também. Recuperando e lançando a nossa voz. Estando em diálogo com as outras, outres. E fortalecendo a todas. Quando damos nome às questões começamos a lidar com elas (Manuela D’avila fala sobre isso em Por que lutamos?) e nomeando o que nos acontece também fortalecemos outras mulheres que vêm a somar.

E a sua visão dessa realidade que estamos vivendo no Brasil onde, ao mesmo tempo em que temos avanços e conquistas, há um endurecimento dos ataques à democracia?

Olha, o cotidiano está difícil. É difícil acordar todos os dias diante de tanta atrocidade. É difícil lidar com tamanho retrocesso e negacionismo. É dificil lidar com o fascismo. É muito difícil. É exaustivo. É doloroso. A minha visão está um pouco embebida de dor sim, mas não só isso. Porque ao mesmo tempo em que tudo isso acontece estamos vives e existe eco nessa voz que vai na direção oposta ao que eu disse no começo.

Como tem lidado com a pandemia? Como tem sido criar nesse período de isolamento social?

Hahahahahaha passei por inúmeras etapas (mas pão eu não fiz). Já estive muito deprimida, já quase desisti, já me isolei para além do isolamento, já busquei ajuda, já apareceu ajuda até quando não busquei, vi muita série, li muitos livros, vi filmes… Já descobri muita coisa boa também. Já vivi inúmeras questões boas e ruins. Mas é o que eu disse lá no começo, lembra? Crio porque preciso. Porque estou viva. Porque é quem eu sou.