A premissa é incrivelmente familiar: um andarilho busca abrigo em um castelo em ruínas. Ao adentrar o espaço, o que se revela é um mundo fantástico abrigado por bruxas, fadas, uma misteriosa princesa e uma maldição. Adormecida: Cem Anos Para Sempre, da quadrinista e artista plástica gaúcha Paula Mastroberti, retorna ao mercado editorial brasileiro mais de dez anos de sua primeira publicação e pelo menos três décadas desde que foi criada.
A HQ é uma livre adaptação do conto popular A Bela Adormecida no Bosque, na versão de Charles Perrault ou A Rosa Selvagem, como era conhecido nos escritos dos Irmãos Grimm. Ao contrário da versão edulcorada pela tradição dos livros infantis e do desenho da Disney, a obra de Mastroberti recupera o tom de tensão e mistério que tanto fascinam quanto apavoram. A autora traz de volta aos contos de fadas as múltiplas camadas de profundidade escondidas sob uma aparente simplicidade que sempre permearam esse tipo de narrativa.
“A minha relação com esses contos é antiga e está ligada à minha leitura de mitologias, com as quais os contos de fadas tem fortes conexões”, diz Mastorberti em entrevista à Revista O Grito!. “Sempre gostei de literatura fantástica, de ficção científica, e pra mim os contos de fadas fazem parte desse gênero”.
Adormecida saiu em 2012 pela editora 8Inverso, em um período em que o cenário editorial de quadrinhos no Brasil começava a se abrir para novas propostas artísticas. A autora, que tinha finalizado a obra entre 1988 e 1990, já tinha quase desistido de sua publicação. No final dos anos 1980, o espaço para autoras quadrinistas era bem limitado e o cardápio que as editoras entregavam eram basicamente narrativas de ação, mistério ou erotismo voltado para público masculino. “Eu acredito que, se eu ousei fazer quadrinhos em 1980, isso devia estar no ar, e possivelmente outras garotas por aí fizeram o mesmo”, diz. “Eu dei sorte ou fui mais teimosa, não sei.”
Formada em Artes Plásticas e doutora em Letras, Paula Mastroberti atua em diferentes áreas. Além das artes gráficas, ela é também escritora, artista plástica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Entre diversas homenagens, foi premiada com o Jabuti por Heroísmo de Quixote (2005), e com o Açorianos por Os Sapatinhos Vermelhos e Cinderela, Uma Biografia Autorizada (2012). Nos quadrinhos, fez parte da coletânea Osmose (2013) e tem várias fanartes inspiradas em David Bowie, que podem ser vistas em seu site.
A nova edição da obra sai pela editora Hipotética com novo prefácio e um texto da professora, tradutora e pesquisadora Maria Clara Carneiro.
Batemos um papo com Paula Mastroberti sobre o retorno da HQ às livrarias, suas influências, o contexto da obra no cenário de quadrinhos brasileiro atual e o desejo de republicar outras obras suas. A autora também falou de seus novos projetos, que inclui uma narrativa gráfica sobre Peter Pan, fruto de seis anos de pesquisa para dissertação de mestrado e tese de doutorado.

Fiquei encantado com o novo prefácio do livro, pois revela muito sobre um outro momento do mercado editorial brasileiro, em que Adormecida não parecia ter tanto espaço. Como é relançar a obra em um contexto tão diferente?
Pois é, eu nem esperava, é a primeira vez que sou reeditada, na verdade. Tenho outras publicações que talvez merecessem reedição também, mas eu sempre fico com vontade de revisar, de alterar uma coisinha ou outra. … A reedição de Adormecida foi um convite da Editora Hipotética. Por isso, um novo prefácio, pois o público mudou de 2012 pra cá, quando lancei pela 8Inverso. Era preciso explicar algumas coisas, e eu pensei muito nos meus alunos quando eu escrevi, principalmente naqueles alunos que têm vontade de seguir esse caminho das artes gráficas.
Queria que eles entendessem a relação que a gente, como artista, estabelece ao longo dos anos com sua própria produção. E queria tranquilizá-los em relação a essa busca de perfeição, essa hora de estar “pronto” pra publicar.
Nos anos 1980 e 90, eram poucas as mulheres quadrinistas com espaço no mercado editorial. Apesar de sua obra chegar aos leitores apenas nos anos 2010, você foi uma pioneira nesse segmento. Como você enxerga o resgate desse pioneirismo?
Eu até hoje não tenho muita certeza quanto a esse pioneirismo. Uma coisa é fato: Adormecida é a única publicação em quadrinhos brasileira de autoria totalmente feminina (roteiro e artes), registrada da Biblioteca Nacional (ou seja, com ISBN).
Certamente houveram mulheres antes de mim, que produziram quadrinhos, e que escreveram e produziram as artes, mas não há registro. Mas eu acredito que, se eu ousei fazer quadrinhos em 1980, isso devia estar no ar, e possivelmente outras garotas por aí fizeram o mesmo. Eu dei sorte ou fui mais teimosa, não sei.
Mas é fato que só mais tarde, lá pelos anos 1990, com a entrada dos mangás produzidos por autoras japonesas como Rumiko Takahashi, ou o Coletivo Clamp, é que as mulheres começaram a pensar – ‘ei, se elas fazem quadrinhos, porque não eu?’. A mesma coisa com as narrativas mais sensíveis. Adormecida, nos anos 1980, não era bem compreendida como narrativa, porque era ligada a contos de fadas (algo visto como infantil) e, ao mesmo tempo, muito “parada” pros moldes de editoras que vinculavam HQs mais à narrativas de ação, aventura, mistério ou erotismo voltado para público masculino.
De novo, só com a entrada dos mangás na década seguinte é que se compreendeu a necessidade de produzir narrativas mais subjetivas, com personagens menos planos.

Adormecida resgata o tom sombrio e por vezes lúgubre que os contos de fadas sempre tiveram, mas que foram “apaziguados” por Hollywood. Relendo a obra, me lembrei de uma edição dos contos originais dos Grimm que saiu pela editora 34. Eram tão brutais, mas tão belos. Adormecida teve esse mesmo impacto em mim. Poderia me falar um pouco mais dessas suas referências e da influência que tiveram na HQ?
Não foi Hollywood quem “apaziguou” os contos de fadas. Foi a própria literatura infantil, que estourou como gênero a partir do final do século 19, voltada para crianças da classe burguesa, preocupadas com os conteúdos violentos dos textos originais dos Grimm e de Perrault. Depois a Disney tratou do resto.
A recuperação dos contos de fadas veio com escritoras feministas como Angela Carter e outras, a partir dos anos 1990. Estava no ar, como eu disse. Como digo no novo prefácio, a minha relação com esses contos é antiga, e está ligada a minha leitura de mitologias, com as quais os contos de fadas tem fortes conexões.
Eu já lia versões mais sérias desde cedo. E eu gostava muito de mitos e lendas de diferentes partes do mundo, além dos contos de Oscar Wilde e de Hans Cristian Andersen. Sempre gostei de literatura fantástica, de ficção científica e pra mim os contos de fadas fazem parte desse gênero.
Você já citou a influência da Metal Hurlant no seu traço. Mas que outros quadrinistas e artistas te inspiraram a pensar o estilo de Adormecida?
Acho que as gravuras de Gustave Doré tem um papel bem importante no meu traço. Mas também sinto-me influenciada por Alex Raymond, por Hal Foster, por Winsor McCay. Mais pros anos 1980, por Philippe Druillet e Moebius. Moebius principalmente pelas cores. E Bernie Wrightson… Estes eu conheci através da Metal Hurlant.
Não foi Hollywood quem “apaziguou” os contos de fadas. Foi a própria literatura infantil, que estourou como gênero a partir do final do século 19, voltada para crianças da classe burguesa, preocupadas com os conteúdos violentos dos textos originais dos Grimm e de Perrault. Depois a Disney tratou do resto.
Paula Mastroberti
Poderia nos contar os bastidores da produção da HQ? Apesar de ter sido lançada pela primeira vez em 2012 (pela 8Inverso), você já produzia a HQ há tempos, certo?
Ela foi feita numa era pré-computador, com vantagens e desvantagens. As vantagens não são óbvias, mas é algo que só dou conta agora, porque noto um empobrecimento estético muito grande na maior parte das HQs contemporâneas, que repetem sempre os mesmos efeitos e estilos, uma coloração “lambidinha” ou texturas digitais repetitivas, que tornam tudo muito igual.
Há exceções, claro. E há quem ainda prefira trabalhar com materiais físicos. Adormecida foi feita, como eu digo no prefácio, em estilo jazzistico. Isso quer dizer que eu não tenho esboços preparatórios dela, mas era tudo direto, na mesma folha de papel, do esboço à finalização. Eu tinha uma ideia de roteiro, tipo começo, meio e fim, mas o texto mesmo ia sendo escrito na hora, de improviso (mesmo os versos das “canções” da feiticeira, que, ao contrário do que alguns pensam, são de minha autoria também).
Não tem Control+Z nem tecla Del nelas. Nos originais, que estão para serem doados à Pinacoteca da UFRGS, dá pra ver ainda umas marcas de lápis, de nanquim branco, pra recobrir falhas. Eu curto isso pra caramba. Acho que me deu muita cancha como profisisonal, trabalhar assim.
As desvantagens são as falhas, alguns defeitos… dá vontade de refazer uns requadros, alguma prancha. Mas seria uma traição à Paula dos anos 1980 fazer isso. Além disso, vejo nas falhas um valor imenso, de quem se empenhou muito pra fazer o melhor, naquelas condições e naquele contexto de idade e de época.
Eu produzo HQs desde os meus 13 anos, policiais ou ficção científica, feitas com grafite ou com caneta esferográfica. E Adormecida tem uma outra versão, em preto e branco, que não chegou a ser concluída, mas tem algumas páginas finalizadas. Tenho também uma HQ sobre Cinderela, para adultos, nunca publicada, e narrativas gráficas mais curtas, conservadas numa pasta.
Vejo estudantes de artes que chegam a mim interessados em fazer quadrinhos, mas pra fazer quadrinhos não basta gostar de quadrinhos. Tem que mergulhar na arte e na literatura, ampliar um repertório cultural e artístico que vá muito além dos quadrinhos e mangás industriais.
Paula Mastroberti
Como é sua relação com o quadrinho brasileiro hoje? O que você acompanha ou aprecia?
Eu curto produção independente e, de vez em quando, vou às feiras gráficas, mas minha preferência recai nos zines ou livros de artista, em narrativas gráficas mais soltas, menos presas à formatação tradicional. Eu dou cada vez mais atenção à inovação em termos estéticos. Gosto, em geral, de artistas e escritores que trabalhem de forma totalmente diferente do que eu faço. Mas se eu for citar nomes, ficaria com o Lourenço Mutarelli, o Amaral (que poucos conhecem, mas que participou do Projeto Osmose também), o Pedro Franz. Mas tem mais gente boa, só não estou lembrando agora.



Tem planos de republicar seus outros trabalhos em quadrinhos, como a história que saiu em Osmose e a homenagem a David Bowie?
Eu pretendo republicar Zwein Rosen in Berlin, que está em Osmose. Mas talvez o faça como um zine independente. Quanto à Bowing, não foi criado como quadrinhos, mas como fanarts. Teve seu momento, mas agora estou mais interessada em trabalhar a fase final, Blackstar. Estou produzindo entre uma coisa e outra.
Minha prioridade mesmo é finalizar uma narrativa gráfica longa, Peter Pan, uma história de meninas, com três volumes finalizados e o quarto a caminho. Devem ser seis ao todo. Essa narrativa é resultado de seis anos de pesquisa para dissertação de mestrado e tese de doutorado. Os volumes finalizados podem ser vistos no meu perfil no Issuu. Não é uma narrativa para crianças, apesar do título.
Você tem produzido algum outro quadrinho longo? Quais seus planos (e expectativas) com as HQs?
Eu não tenho expectativa nenhuma com relação às histórias em quadrinhos. Eu só “alucino” e faço, porque é meio impulsivo. Tenho consciência de que o público é um nicho pequeno. Vejo estudantes de artes que chegam a mim interessados em fazer quadrinhos, mas pra fazer quadrinhos não basta gostar de quadrinhos. Tem que mergulhar na arte e na literatura, ampliar um repertório cultural e artístico que vá muito além dos quadrinhos e mangás industriais.
E por repertório mais amplo não estou querendo dizer só o europeu ou estadunidense. Eu sou filha de uma outra era, dominada por essa cultura branca da qual não posso me livrar porque me constitui. Afinal de contas, sou mulher branca e neta de italianos. Mas entendo que se o quadrinho quiser permanecer como modalidade artística e literária, ele precisa ir em outras direções e não ficar arremedando saladas épicas embasadas em mitemas sem nenhuma consistência.

Adormecida – Cem Anos Para Sempre
Paula Mastroberti
Editora Hipotética, 2025. 48 páginas, R$ 69,90.
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