O jornalista e pesquisador potiguar Octávio Santiago lançou em junho deste ano o livro Só Sei Que Foi Assim: A Trama do Preconceito Contra o Povo do Nordeste, fruto de sua pesquisa de doutorado, que mergulha nas raízes históricas, políticas e culturais que construíram e ainda sustentam uma série de discursos e imagens que perpetuam preconceitos contra o povo nordestino.
Publicada pela Autêntica, a obra pinça os movimentos internos e externos que cimentaram o Nordeste como sinônimo de atraso, miséria e ignorância no imaginário social. Santiago aborda as desigualdades estruturais, a racialização, a monotematização e os estereótipos físicos e culturais.
Em entrevista à Revista O Grito!, o pesquisador comenta conceitos centrais do estudo, como o “Complexo de Macabéa”, inspirado na protagonista de Clarice Lispector, alagoana pobre e semianalfabeta que migra para o Rio de Janeiro em busca de qualidade de vida. É a partir dessa personagem que Santiago analisa nossa relação com o preconceito enquanto nordestinos, inclusive a incapacidade de reagir.
Além disso, o autor debate exemplos recentes de preconceito que expõem o atraso nas representações do Nordeste e dos nordestinos, sempre apoiados em preconceitos que persistem há mais de um século.
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Um conceito muito interessante que você traz no livro é o do “Complexo de Macabéa”. Você pode nos explicar como essa “inadequação ingênua” se manifesta hoje?
Macabéa serviu para entender que lugar era esse e como Clarice Lispector, às avessas, contrariando a ideia de que deveria escrever sobre a região de onde vinha, escreve como a nordestina deslocada. Ela é percebida pela perspectiva do narrador, Rodrigo S.M., que é o Brasil. Ele nem sequer aceita que ela seja protagonista. Ao longo da narrativa, ele está inconformado com o fato dela ser protagonista e tenta tirar dela essa ideia, vai manipulando a história para que ela sempre perca para o Sul. Ela perde socialmente, perde o companheiro, o emprego. Ela sempre é preterida pelo Sul. Então, Clarice entrega uma personagem que é brilhante na compreensão desse lugar.
Para explicar o porquê dessa aceitação e essa não-aceitação para sair desse lugar, eu trago outro exemplo no livro, que é o Que Horas Ela Volta. A Val (Regina Casé), a partir da sua maternidade, entende tão fortemente essa ideia de que ela teve que ocupar um espaço menor, que ela não consegue nem visualizar a filha nesse lugar de avanço, de superação. É como se, para todos, o lugar da nordestina deslocada fosse a cozinha, não há outro espaço para ela. E aí, Jéssica (Camila Márdilla) vem, ingressa na universidade, faz essa virada de chave para mostrar que a nova geração vem muito consciente, não só do conhecimento que carrega, mas do novo espaço que quer ocupar. E aí, nisso, há uma contrariedade, porque Macabéa, de repente, fala, é dona de si.
Uma ideia de que ‘Nordeste é mais África, o Norte é mais indígena e nós [Sul] somos mais Europa, portanto somos melhores’. Essa é uma ideia determinista, ultrapassada, eugênica, além de racista, fascista, que já deveria ter encontrado superação.
O livro destaca o papel da imprensa e da produção cultural (literatura, cinema, etc.) na construção e perpetuação dos estereótipos. Pensando hoje, eu vejo que as novelas de canais abertos ainda insistem em trazer representações caricatas, lembrando sempre que a televisão é o principal meio de comunicação do Brasil. Quais as motivações para que a TV ainda insista nos estereótipos? Diferentemente de outras mídias, que têm reconstruído suas imagens do Nordeste.
Essa caricatura do Nordeste é um produto mercadológico e a própria TV admite que, ao determinar que um personagem é nordestino numa trama, isso é assimilado pelo público como uma narrativa já conhecida. Sabemos qual é o passado desses personagens, qual é o presente dele, quais serão suas dificuldades, que sempre vai ter uma busca por superação, a redenção que o Sul vai lhe dar, é sempre essa narrativa.
Esse “enlatamento” do Nordeste é lucrativo porque permite a comunicação com pessoas que não estão dispostas a conhecer sobre as regiões do Brasil, nem sobre o Brasil. Aquele verso de Elis [Regina], ‘o Brazil não conhece o Brasil’; o brasileiro também não conhece o brasileiro, e não quer conhecer.
E outra razão é a concentração da produção. Hoje a produção de TV, por exemplo, é muito concentrada no Rio e São Paulo; já o cinema, como a gente vem vendo, tem passado por uma mudança de chave, que tem muito a ver com o cinema feito pelo Nordeste. Isso faz muita diferença porque as estruturas de TV obedecem a uma dinâmica de produto dentro de uma empresa que tem metas e métricas muito bem desenhadas.
O cinema é uma produção mais artística mesmo. Existem, claro, patrocinadores e toda uma dinâmica que vai exigir certas coisas, mas há uma maior liberdade criativa nesse processo, e aí você tem a chance de fazer filmes que façam mais sentido para você, porque estão de acordo com a realidade que está ali, no entorno. Mas, ainda assim, o cinema peca muitas vezes.
No final das contas as linhas de discurso são contraditórias. Elas vão dizer que somos miscigenados demais e, portanto, a nossa raça é uma amálgama. Várias condições que fazem e representam um atraso. Ao mesmo tempo, existe sempre a busca por esse molde: os nordestinos de um único padrão.
Recentemente um casal de influenciadores de Santa Catarina foi indiciado ao Ministério Público por xenofobia ao associar nordestinos migrantes à “preguiça”, “corpo mole”, “agenda woke” e “ideologia de gênero”, além de enfatizar a ascendência europeia predominante na região. De que maneira você analisa as origens desse discurso que aponta não só a superioridade racial, mas também o preconceito político contra o povo nordestino?
Esse ódio contra nordestinos existe independentemente da política. A política vai ser o fator de expulsão desse ódio, desse corpo, sabe? De colocar para fora. É quase que o fator emocional que faz com que essas pessoas sintam a necessidade de externar. Mas esse sentimento não é nutrido pela política; a política faz com que ele emerja.
O que aquele casal falou é o discurso que o Brasil do Sul falava há mais de 100 anos. É um discurso que atravessa um século e que sustenta a falsa ideia de que existe um Brasil que dá certo. A falsa ideia de que qualquer ascendência europeia coloca você numa posição de privilégio social e que legitima suas qualidades dentro de um país miscigenado como o nosso.
Isso, por si só, já é para se criar um abismo, uma ideia de que ‘Nordeste é mais África, o Norte é mais indígena e nós somos mais Europa, portanto somos melhores’. Essa é uma ideia determinista, ultrapassada, eugênica, além de racista, fascista, que já deveria ter encontrado superação, mas ainda resiste no Brasil porque a gente separou o joio do trigo há muito pouco tempo.
O STJ só em 2022 entendeu que isso é racismo. Quer dizer, é uma construção muito recente. Inclusive, apoiada na sua pergunta, esse é um entendimento do STJ, com base nas eleições de 2022. É a partir daí que se define que não é xenofobia, argumento que permanece em um campo muito inocente, quase opinativo, mas sim racismo. Essa falsa ideia de que ser Europa é ser superior ainda é muito prevalente.

“Compreender a gênese do preconceito é condição para vislumbrar um caminho rumo ao seu fim.” Tendo esse trecho em mente, seria possível chegar ao ponto em que reproduzir o discurso contra o preconceito, se munir dos “símbolos nordestinos” e reivindicar orgulho através das nossas marcas esbarra no reducionismo? Por exemplo, a participação da influencer Juliette no reality show Big Brother Brasil trouxe a discussão do preconceito contra o nordeste em níveis nacionais, além de construir sua imagem pública envolta por símbolos como os “Cactos”, o cuscuz, o sertão e as dificuldades de sua infância no Nordeste; mas sem nunca ter se aprofundado e contextualizado o preconceito em si. Até que ponto não seria essa uma reprodução das imagens já cristalizadas a respeito do Nordeste?
Acho que você trouxe a resposta. Talvez não abrir mão desses símbolos no sentido de argumento imediato de defesa, sabe? Olhar para a gênese faz com que a gente entenda as razões. Quem é que estava por trás disso? Quais são os interesses? Pela mão de quem essa construção foi feita? Quando iluminamos a sala fica muito claro quem é o sujeito da história, quem é que provocou, provoca e a mantém.
Ao fazer isso não ficamos apenas naquele campo do “parece que…”, que é uma coisa sistêmica e quase invisível, sem responsabilização. Sabemos o porquê e eu acho que isso é o que faz com que a gente enfrente essa informação difundida, disseminada. Faz todo mundo entender que aquela frase que parece ser inocente, não é inocente; que ela faz parte de um projeto muito maior, tem uma raiz mais profunda.
Cometemos muitas vezes esse erro de, ao nos defendermos, nos agarrar a estereótipos. Olha que interessante: Juliette fez valer essa narrativa dela distante dos símbolos, quando ela era uma menina inteligente, estudada, preparada, advogada que queria ser defensora pública. Ela se conectava com o Nordeste de várias outras maneiras para além da caricatura. Acredito que a Juliette do programa tinha isso muito forte.
Já a Juliette das redes sociais, construída por uma equipe, recorria a símbolos como o cacto, o cuscuz, o chapéu de couro e outros tantos para tentar legitimar essa representatividade. Na prática, a própria pessoa dela é muito mais convincente em desfazer esses argumentos do que os símbolos que pode acessar, porque, por si só, seu letramento e sua facilidade em clarear alguns assuntos e colocar outros em pauta falam mais alto.
As coisas são também criadas, acumuladas, construídas discursivamente. Quando a gente é apontado como Nordeste, também nos valemos de algumas narrativas para se dizer alguma coisa. Isso tudo exige uma construção discursiva, de se agarrar a símbolos, mas isso não nos define por completo.

Durval Muniz, na obra A invenção do Nordeste e outras artes, traz a questão das elites políticas locais, e como elas também ajudaram nessa “criação” do Nordeste, e ele tem um discurso mais combativo, propondo uma “destruição” da contribuição que essas elites tiveram na concepção da nossa região e dos discursos reproduzidos por nós. Vi no seu livro que você vai por outra linha. Qual é a forma que você lida com os discursos das oligarquias?
Eu tenho uma posição diferente. Eu respeito muito o que Durval Muniz fez, não estaria aqui se não fosse ele, se não fosse Iná de Castro, Francisco de Oliveira, Manuel Correia de Andrade e Zaidan Filho, porque eles também trazem contribuições muito interessantes.
Iná de Castro fala sobre a construção do discurso político dos anos 1940, 50, 60, 70. Ela faz uma análise dos discursos dos parlamentares nordestinos na Câmara, no Senado, e vai mostrar que o vitimismo pautou esses discursos no sentido de construir a ideia de um Nordeste falido, que necessitava de muita atenção governamental. Durval vai se dedicar a essa construção discursiva do Nordeste, no campo artístico, se aprofundando muito na questão da literatura, sobretudo. Faz um grande estudo de José Lins do Rego, a própria Rachel [de Queiroz] e Graciliano [Ramos], que é uma potente invenção do Nordeste e olha também para o pós-criação. Zaidan Filho é mais incisivo em dizer que a obra literária de boa parte dos nossos conterrâneos era uma obra interesseira, porque queria estender o poder dessas pessoas no campo simbólico, que eram pessoas que representavam oligarquias.
Eu tento olhar um pouco antes, historicamente, para tentar entender qual foi a primeira versão do Nordeste no papel, interpretando isso tudo como uma reação, mas buscando iluminar qual foi a primeira ação. Acredito que reagimos discursivamente. Houve uma campanha depreciativa sobre a nossa terra e a nossa gente. Era um trabalho de depreciação da mão de obra, para que as vagas, ou as boas vagas pelo menos, ficassem com o italiano branco e católico, e não com o nordestino miscigenado ou o preto baiano do candomblé. E eu acho que é muito importante passarmos por essa fase do ataque para entender depois as construções, sabe?
Eu estou fazendo um trabalho sobre Graciliano Ramos para outra editora, um posfácio da obra desse autor que considero um mestre. Precisamos valorizar essa obra nossa, mas entendendo que essas linhas, por exemplo, não são totalizantes. Graciliano é Vidas Secas, mas Graciliano também é São Bernardo, é Angústia, que vai mostrar uma narrativa urbana numa complexidade que é o que vemos hoje, por exemplo, no cinema Kleber Mendonça Filho. Tem que ver também o que o Brasil peneirou, o que validou como regional.
Por que Angústia não foi para a vitrine e Vidas Secas foi? Se esteticamente os dois livros têm a mesma qualidade, por quê? O que o Brasil queria naquela época? Queria se definir, queria definir as suas regiões, queria proclamar São Paulo o centro de tudo. Eu vou muito por essa linha do interesse externo. Eu não apoiaria a desconstrução, pois precisamos entender o contexto, as motivações, para que na hora de reproduzir e de se orgulhar, também se conheçam as outras obras. Essa é uma visão minha, sem confronto com o que diz Iná, Durval, ou Zaidan. É uma perspectiva de Octávio.

Concordo. Penso que é importante examinar essa produção e o contexto que elas estavam inseridas para que a gente produza arte que nos permita olhar para o nordestino com outras expressões, outras raízes.
É interessante porque no final das contas as linhas de discurso são contraditórias. Elas vão dizer que somos miscigenados demais e, portanto, a nossa raça é uma amálgama. Várias condições que fazem e representam um atraso. Ao mesmo tempo, existe sempre a busca por esse molde: os nordestinos de um único padrão.
‘Você não tem cara de nordestino’. Então, quer dizer que, ao mesmo tempo que representamos uma miscigenação excessiva, somos apontados como pessoas que têm, supostamente, um rosto só. O que é que não temos nessa conta? É a ausência de Europa. E aí a reconexão com essas raízes todas, ainda que portuguesas, algumas mais indígenas, africanas, mostram que esse Brasil da miscigenação é o Brasil de verdade. É isso que está aí.
Eles se acham brancos, e essa disputa racial não existe sob a nossa perspectiva, já que não nos consideramos nem inferiores nem superiores; nós nos entendemos todos como brasileiros, e ponto. Esse é o discurso de quem teve o navio naufragado e enxerga nisso uma tábua de salvação.

Ao final do livro você fala sobre a necessidade de romper o silêncio, de se tornar autoconsciente para que possamos “destruir” a construção do Nordeste ao longo de tantos anos definido por estigmas. Na prática, como se pode “romper o silêncio” tão enraizado?
Acho que pautando o assunto. O que a imprensa faz é importante, revolucionário. Faz com que mais pessoas compreendam o tema. Precisamos pautar isso em sala de aula. Todos aqui passaram por escolas que vão também trazer a ideia de Nordeste em duas, três linhas. Às vezes os livros didáticos trazem Minas Gerais e sua diversidade, São Paulo, a complexidade do Rio, mas colocam o Nordeste com duas, três linhas. Livros que são consumidos em escolas do Nordeste, inclusive. Essas são pequenas revoluções que precisam ser feitas no sentido de compreendermos o nosso espaço.
Uma pessoa me perguntou, outro dia, no lançamento no Rio de Janeiro: “O que a gente pode fazer? O que os atores do Nordeste podem fazer nesse sentido?”. Eu não imagino um ator nordestino que, depois de um esforço hercúleo, entra numa emissora como a Globo e vai questionar o roteiro, quando lhe é dada uma oportunidade que, dentro do meio artístico da dramaturgia, é vista como um espaço de glória. Precisamos questionar e falar por essa pessoa que, numa dinâmica hierárquica, não poderá se levantar contra uma emissora, mas podemos mostrar que não nos sentimos representados.
É romper o silêncio, e isso vai criando debates e mais debates, e passamos para um nível do constrangimento, do reenquadramento. Eu acho que a população negra, hoje, ainda vive num país muito racista, mas com algum avanço. A população LGBTQIA+ vive em um Brasil ainda homofóbico e transfóbico, mas houve algum avanço. O tratamento, pelo menos na situação artística, é cuidadoso hoje. Com relação ao Nordeste, não. E é nisso que precisamos agir, ser vigilante mesmo. Ter informação, ser vigilante e falar.
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