Um papo com o escritor pernambucano Fernando de Albuquerque: “Desejo é o que nos move. Não só o desejo do outro, mas o desejo de nós”

O livro de estreia Apaguei a Playlist, Comecei a Dançar traz 13 poemas e sai pelo selo Castanha Mecânica

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Ilustração: Marcio Junqueira.

A estreia na literatura do escritor e jornalista pernambucano Fernando de Albuquerque é uma busca compartilhada com o leitor sobre desejo, amor, memória, identidade, mas sobretudo, sobre essa coisa estranha que é nossa necessidade de compreensão. De si, do outro, da vida. “Ninguém escreve para si. Escreve sempre para alguém. A gente sempre espera que alguém leia, interprete, te convide pra discutir com ela aquilo que você escreveu”, diz Fernando em entrevista à Revista O Grito!. “Há um desejo intrínseco de transformação, de construção de si somando com alguém. E sim, acho que todo mundo que escreve, faz isso pensando em alguém. Pensando no entendimento, na necessidade de compreensão.”

O livro Apaguei a Playlist, Comecei a Dançar é um lançamento da editora pernambucana Castanha Mecânica e está à venda pela internet. São 13 poemas entrelaçados por referências musicais, literárias, além de contar com ilustrações do designer e ilustrador Marcio Junqueira. A obra chega ao mundo após ganhar a menção honrosa em um concurso promovido pela editora.

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Foto: Divulgação.

As músicas – cujas referências começam no título e vão fiando a narrativa dos poemas no livro – são chave para adentrar no universo proposto pelo autor. Como uma playlist que cultivamos nos streamings da vida, o livro nos coloca nesse espaço infinitamente pessoal, mas ao mesmo tempo aberto, onde todos podem se relacionar. Após ler cada poema, somos jogados nesse espaço de compreensão, sempre puxando na memória situações relacionadas. “Mas a verdade é que a memória é uma grande traiçoeira. Ela é uma verdadeira emboscada”, lembra Fernando, no entanto.

O livro é um acumulado de referências pop, eruditas, mas tudo construído com muita sofisticação e, sobretudo, humor. Destaque também para a linguagem, que evita lugares-comuns, o que vai dando esse sabor prazeroso que vem do inusitado.

No meio da pandemia, decidi bater um papo com Fernando de Albuquerque sobre o seu livro, mas também de coisas que a leitura me instigou a pensar (vale destacar aqui que Fernando é um dos fundadores dessa revista e amigo muito próximo. Um adendo que não muda em nada o valor jornalístico desse lançamento, mas que o bom jornalismo diz que é bom tom avisar).

A obra vem ainda acompanhada de uma playlist oficial, que você pode ouvir por aqui ou ao final deste texto. Trouxemos também alguns poemas cedidos pelo autor:

Primeiro queria saber como está sendo esse período de isolamento pra você. Como foi lançar este livro de estreia durante a pandemia?

Para mim há um misto de desespero, saudade e de novidade. São três sentimentos muito contraditórios, que indicam caminhos completamente distintos, mas que estão entrelaçados nesse contexto mundial e incólume. Sinto desespero porque não sei lidar com a perda. Eu sou um entusiasta da cura, da boa vontade, da necessidade de dar certo. E tudo que a gente tem visto é o fim. Por todos os lados. E esse fim não está aqui. É sempre o fim do outro. Nunca é o nosso. Então dá um nó na garganta e no peito. Sinto saudade, porque eu sinto saudade daquilo que tínhamos. Sinto saudade de poder abraçar o outro, poder construir uma ideia sobre um cotidiano dado. Poder ir na casa de uma amigo ou poder paquerar alguém sem precisar pensar, diretamente, em um exame de laboratório. Ou pensar em uma dúvida. Mas aí eu sinto o frescor da novidade porque, para mim, eu não poderia continuar como eu estava. Precisava irremediavelmente ser outra pessoa. Voltar aos meus fundamentos. E essa “pandemia” está permitindo isso. Eu refundei meu ser em espaços cotidianos, preocupado com questões comezinhas, mas que são tão importantes pra gente, para nossa identidade.

Me identifiquei muito com as referências do livro e fiquei conectado a ele por muitos dias após a leitura. Você para pra refletir em algum momento sobre como sua obra vai ser percebida/recebida pelo leitor? Existe algum sentimento desse tipo, de esperar um feedback, ou isso não é parte do processo?

Ninguém escreve para si. Escreve sempre para alguém. A gente sempre espera que alguém leia, interprete, te convide pra discutir com ela aquilo que você escreveu. Há uma enorme sinceridade nisso. Um enorme desejo de compreensão, não de si, mas do outro. Nós somos uma raça que chegou onde chegou e conquistou (pro bem ou pro mal) o que conquistou porque o outro e o desejo do outro é o principal sentido da nossa existência. Ninguém está aí por estar aí, ninguém está aí por si, está aí por outrem. Por alguém, por um conjunto de pessoas. Há um desejo intrínseco de transformação, de construção de si somando com alguém. E sim, acho que todo mundo que escreve, faz isso pensando em alguém. Pensando no entendimento, na necessidade de compreensão. E numa necessidade que não começa aqui, mas começa lá, na leitura. Por exemplo, no primeiro poema do livro, temos uma forte presença do mar. Isso é uma pista sobre o que o livro trata. Eu dispus referências de outros escritores, outros filmes e músicas que também tratam da água. Porque a memória é como água. Ela vem, vai e depois volta deixando marcas. A gente está debaixo do chuveiro e vem a lembrança daquele fora que a gente levou anos atrás, do nada. E, aparentemente, não há nenhuma relação entre os fatos. Mas a verdade é que a memória é uma grande traiçoeira. Ela é uma verdadeira emboscada. Mas se a gente quisesse nos livrar do que nos coloca contra a parede (a memória) a gente não conseguiria dar um passo. 

O livro fala muito sobre desejo, autodescoberta. Queria que você falasse um pouco sobre os temas que você discute nesta coleção de poemas. Como foi o processo de escrita e também de seleção das poesias?

Desejo é o que nos move. Não só o desejo do outro, mas o desejo de nós.  Gordon Childe [filólogo e arqueólogo australiano] diz que o primeiro traço civilizacional está no primeiro homem que deixou de jogar pedras ao outro e escolheu as palavras, optando por xingar. E que tudo começou daí. Esse movimento nada mais é do que desejo. Nossa existência é um enorme ciclo de desejo e vontades que, juntos, nos levam a operar e construir um futuro de graça ou infortúnio. Esse livro é isso. Há um eu lírico que, diferente do autor, está em uma situação limite (que pode ser qualquer uma) e que decide começar a inventariar suas relações. Nesse inventário ele busca a memória. Mas a memória é um lugar de glória, mas também de omissão. Toda memória é o registro de esquecimento. Esquecimento de alguma coisa em detrimento de outra. E é nessa fronteira que eu vago nesses 13 poemas. Além disso, nós temos memória sempre de alguém. Quando nos lembramos de fatos, a gente sempre lembra de alguém, pois somos seres relacionais. Então o livro é um convite. Um convite a passear pelas memórias de alguém, um eu que não está dito, mas que podem ser memórias suas (leitor) também. Afinal, quem nunca teve um amor platônico, quem nunca se apaixonou pela pessoa errada, quem nunca ficou “passado” diante de alguém lindo no avião. Somos essa colcha de fatos ordinários. São eles que nos definem. E a memória é a construção dessa colcha. É ela que transforma ou apaga fatos ordinários. Ou é nela que construímos fatos extremamente extraordinários, onde só existe deserto.

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Capa do livro com ilustração de Marcio Junqueira.

A conexão de sua poesia com a música vai além da simples epígrafe, tanto que você criou uma playlist para o livro. Isso de fato nos ajuda a ter uma compreensão maior do livro. E tem de Jake Shears a Baby do Brasil. O que a música significa pra você?

Música é amálgama. Música desperta, evidência ou omite. Música é memória. Memória é música. Elas são figuras e questões articuladas. E como se esse livro fosse um conjunto de memórias ambíguas, pois elas não são minhas, mas são minhas ao mesmo tempo, pois são ordinárias e cotidianas. E nada melhor que a música e o ritmo para costurar o fio da narrativa. Até porque faço uso de um fio narrativo que começa na infância, na carnavalização das coisas, na tristeza da constatação da adolescência, na perdição da vida adulta, nas escolhas que poderiam ser umas ou outras, nos arrependimentos e passo por tudo que qualquer pessoa passa até chegar na grande perda, nos fatos e nas memórias definidoras. Existem memórias que são lições de caráter, de formação e deformação morais. E precisamos estar atentos a elas, mais do que a qualquer outra. Elas estão em questões pequenas e estranhas, em ocasiões que negligenciamos, mas que são definidoras. Por exemplo, quando eu era pequeno, costumava vestir as roupas da minha mãe e somente, hoje (dias atuais), descobri que eu apanhava muito quando fazia isso. Minha memória omitiu isso de mim. Talvez eu fosse outrem hoje. Outros caminhos, outras escolhas, outras ideias. Mas eu jamais seria quem eu sou hoje. A memória é esse campo que dá pena e tesão ao mesmo tempo. Pena pelo que eu poderia ter sido, tesão pelo que me fez chegar até aqui.

Somos essa colcha de fatos ordinários. São eles que nos definem. E a memória é a construção dessa colcha.

Uma pesquisa recente revelou que o romance brasileiro é predominantemente branco, heterossexual e de classe média. Acredito que isso também se aplica à poesia. O seu trabalho, por outro lado, traz outras sensibilidades, fala do amor entre homens, parte da periferia. Chegou a refletir sobre essa representatividade?

Eu falo de um lugar. Todos nós falamos de um lugar. Por mais que Guimarães Rosa fale de um Sertão imaginário, aquele Sertão é dele. Aliás, ele é um dos autores brasileiros cujo o texto é mais autobiográfico do que se pensa. Imagine pensar Guimarães como Diadorim ou vice-versa. A gente precisa parar de ter medo disso. Nenhum texto fala por si só. Nenhum texto é só texto. Todo texto tem traços da autoria, toda autoria é um sujeito composto pelos seus textos. Eu sou um homem negro, periférico. Eu falo desse lugar. Mas ao falar desse lugar eu também digo que esse lugar é ordinário. Como qualquer lugar é ordinário. Não interessa. Poderia ser Madonna ou Calypso, se a música fala de amor, é amor. E ponto final. A gente precisa parar de colocar as coisas em caixas como se fossem separadas. Elas não estão separadas. Elas estão juntas. Por exemplo, o racismo é uma invenção do homem branco. O racismo começa e termina no homem branco ocidental e de razão europeia. Mas quando o negro reconhece a existência do racismo que lhe é atribuído, aí reside o ponto de mutação, o lugar da inflexão. Aí começa a construção de si e a reconstrução do outro. Eu falo do lugar do homem negro, periférico não só pela sua moradia, mas pela sua existência e que é LGBTQIA+. Mas esse lugar, também, é o do homem branco heterossexual abastado. Porque estando do lado que estiver, houve decepções e omissões. E, ao me equiparar ao outro, eu ressignifico o meu lugar e coloco o outro em outro lugar. O branco hétero jamais será branco hétero em qualquer coisa que eu escrever. Ele, OBRIGATORIAMENTE, terá que descer do seu panteão, se igualar a mim para ser sujeito da narrativa. A decepção amorosa dele é minha antes de tudo. E essa inflexão está lá. Em todos os 13 poemas. Como diria Gramsci, a revolução começa aqui, no lugar que eu ocupo. Meu lugar de fala é, antes de mais nada, um lugar de chamamento à humildade e à observância. Altaneira, sempre. E eu não estou fazendo aquela narrativa tosca motivacional do ator Morgan Freeman não. Me poupe. Mas, ao fazer um homem heterossexual pensar que o lugar de uma decepção amorosa também é o lugar de um homem negro e periférico é revolucionário, pelo que ela guarda em si. Quando a gente se compara e não vê diferença, a gente refunda nossa existência e a existência do outro. E isso passa por reconhecer quem somos e pensar que o outro pode ser eu. Existir é um difícil exercício de alteridade.

Fala um pouco da sua relação com a poesia. O que te despertou para esse tipo de escrita? Que nomes mais te inspiram?

Falar de referências é sempre sorrateiro. É como o golpe de misericórdia do Batman, com Gotham City à espreita. Eu leio muito. Eu sempre li muito. Mas eu entendo que tudo, até o que não presta, me molda. De forma que eu amo Maurício de Sousa e amo também os X-men. Eu tenho o número #1 de algumas revistas em quadrinhos, numa coleção inocente e pueril escondida dentro do guarda-roupa. Não porque eu tenho vergonha do que elas são, ou do que eu posso ser para elas, mas porque a esse foi o meu jeito de construir minha existência. Eu já li muito Monteiro Lobato antes de perceber que eu era um homem negro. E a gente tem muito disso na nossa essência que, algumas vezes, pode ser roubada pelo outro. Mas depois que eu vi que Tia Anastácia era uma escrava e que tinha esse nome por causa de uma princesa europeia perdida depois de uma revolução que mudou o mundo, as coisas mudaram de sentido. Literatura é isso. É uma constante mudança de sentido. De significado das coisas. Literatura é como é a memória. Ela pode ser um relato grandiloquente ou insignificante de alguém, de uma época ou de outrem. Ela pode ser um relato de reconhecimento, reforço ou de mudança. A memória é essa areia movediça em constante mutação. Elas encaram muito bem a metáfora da raiz. Tem coisa mais mutante que uma raiz? Sempre crescendo, sempre sendo outra, sempre fundando sua árvore, a cada dia, dizendo que ela é forte ou mais fraca que outras. As raízes são, também, essa metáfora, todo leito é mutante, diariamente mutante, muito mais do que imaginamos. As raízes estão sempre se reconstruindo, com novos laços a cada camada de solo. Eu posso te falar das referências de hoje. Elas são Conceição Evaristo, Danez Smith, Jericho Brown e Alda Merini. Hoje eu estou lendo muito essas pessoas. Mas amanhã lerei outros e outros e outros, numa vertente em constante construção.

Leia alguns poemas de Apaguei a Playlist, Comecei a Dançar:

Henrique

depois do orgasmo

tudo ficou opaco

a voz de locutor am

o nariz imperialíssimo

o ar de riso mais canastrão 

que coronel nascimento

eras tão altivo

gato por lebre

como a subida da serra das russas

esse sonho funesto

nunca estamos indo para outro país

essa suíça que nunca deixou os alpes

é fácil te esquecer

duas doses alcatrão

mel e limão cigarros

troquei dois hollywood

por um real

é o quanto você vale

m  o  e  d  i  n  h  a

esse poseidon sem mar

pescador sem tarrafa e nem arrasto

dança dando os ombros

na radiola de ficha que eu escolhi

está tocando o seu melô da liberdade…

corra que ainda dá tempo

mas eu realmente gostaria de ficar

com você um pouco mais

Lucas I

   foi tudo muito súbito
tudo muito susto
   tudo assim como a resposta
fica quando chega a pergunta

Paulo Leminski

mordi

foi fraco mas com gosto

tinha sal na tua pele

azeite vinagre balsâmico

ajinomoto

estavas bem temperado

de encher a barriga

satisfação aos famélicos da

terra

não tinha outro jeito

lacan diz que a gente só tem um desejo

e se for verdade

gastei minha única cartada

no meu jogo eu tinha

o anjo

a morte

e o diabo

joguei o

 l    o    u    c    o

fui levando uma trouxa 

voltei de mãos vazias

o louco é vigésimo segundo arcano maior. ele é representado, nos baralhos antigos, com uma trouxa nas costas e, em outra carta, está de mãos vazias. em todos os baralhos um cão morde-lhe as pernas, alertando-o dos perigos de andar ao largo do precipício. o conselho desvelado pelo louco é seguir com espontaneidade, aceitando o que as circunstâncias têm a oferecer.

quando te vi

sentei na mesa 

fiz minha prece

agradeci a shiva a refeição

para vishnu

fiz oferenda acreditando ser ali

a encruzilhada

de andrômeda com perseu

era

perdi a oportunidade de gerar helena

troia inteira está em festa

filha de cefeu e cassiopeia, andrômeda deu à luz gorgófona, cujo filho, tíndaro, adotou helena. aqui, neste poema, a neta cumpre o destino da avó.

dez minutos

trinta quarenta cinquenta

foram três quatro cinco músicas

dei o tempo necessário

paguei de gatão descolado

despretensioso

fiz as vezes de

r    e    s    i    g    n    a    d    o

e de repente

teu suor encheu o vazio do meu deserto

que alívio

no meu ombro

você pediu serenidade

e eu insistia em acreditar no

eterno bolero

desesperado

sou mais evita

que perón

mais nestor que cristina

pois quem serena termina

e para ti

eu quero ser eternidade

sou um homem de

sorrisos quebrados

covinhas cobertas com barba

ex-marido pós-apocalíptico

mas tão integrado

que estranharia

qualquer relampejar de

r    e    v    o    l    u    ç    ã    o

farroupilha

meu barbero só faz mediação

da navalha com minha pele

e isso faz com que todas as culturas

híbridas sejam

somente

uma experimentação tola

resultado inexorável

do destino de julieta e romeu

ninguém nos ensina

a arte

de abandonar

também sente angústia

aquele que

d    e    s    i    s    t    e

mas a verdade está escrita

em um outdoor na rua da praia

como

eu

    queria

              viajar

               de novo com você.

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