Nos últimos anos, a cidade do Recife tem vivido o movimento da criação de uma cena eletrônica underground montada por e para pessoas marginalizadas, sobretudo pessoas LGBTQIA+. Desde a segunda metade da última década, coletivos artísticos tem surgido e erguido estruturas – ainda que simples – para criar espaços de exibição e circulação de sua arte, como uma alternativa ao circuito heteronormativo ainda muito fechado. Ao fazer isso, também criaram um público próprio feito pelas pessoas que procuram ambientes seguros para se expressar.
Sob esse mote, o coletivo MaddaM surgiu há sete anos com a intenção de impulsionar DJs femininas – com toda a vastidão que esse termo compreende. Mulheres cis, trans, travestis e pessoas não-binárias, todas elas reunidas com a intenção de cruzar experiências e construir uma rede de apoio entre si que possibilitasse a criação de uma cena artística que as representasse.
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Coordenado pelas DJs Nadejda Maciel e Dayra Batista – que assume o nome Makeda no palco -, o grupo organizou espaços que agregaram na carreira de artistas pernambucanas que, hoje, são reconhecidas no panorama da eletrônica nacional. Aliás, o coletivo celebra neste sábado (20) seu sétimo aniversário com algumas de suas participantes no line-up.
Em uma conversa com a Revista O Grito!, as representantes do coletivo MaddaM voltam ao início da suas experiências encabeçando o grupo e refletem sobre as mudanças na cena eletrônica recifense – que foram impulsionadas pela atuação desses grupos independentes – e analisam quais aspectos podem ser lidos como avanços e quais os outros que ainda permanecem no caminho de um crescimento coletivo ainda maior. Leia a conversa completa na íntegra:
O que motivou a criação do MaddaM?
N: A gente começou junto, a gente fundou junto. Eu comecei a tocar há uns 9 anos, e isso foi antes da gente começar a MaddaM em si. Em 2016, quando a gente se conheceu, eu trazia comigo uma inquietação muito profunda de dificuldade, de inserção de mulheres na cena de música eletrônica, porque eu já discotecava, gravava set, já mandava para os meus amigos que tinham festa, mas conseguir gig era uma luta, né?
As festas de música eletrônica, nos estilos de techno, de deep house, sempre eram muito focadas em DJs homens, e assim, de uma realidade muito mais heteronormativa, na verdade, e de uma presença feminina muito limitada. Quando nós nos conhecemos e essa inquietação foi se tornando partilhada, a gente foi partilhando esse processo. Dayra participando dos eventos comigo, adentrando também nesse universo de discotecagem, aprendeu a discotecar, começou a tocar também, aí a gente pensou: poxa, vamos fazer um rolê para as meninas poderem ter espaço para tocar, um rolê onde nossos corpos estejam seguros de estarem transitando naquele ambiente, onde a gente consiga colocar e expor a nossa pesquisa musical e nosso tom artístico de maneira respeitada, minimamente profissional e minimamente respeitada, porque não era muito levada a sério.
Em 2016 a gente sentou e teve essa grande conversa sobre esse assunto e Dayra foi uma grande incentivadora da minha inquietação, e aí a gente pegou na mão da outra e disse, “Vamos fazer um rolê”. 2017 foi o lançamento da primeira festa, mas desde 2016 que a gente já reunia amigas. Na casa da Dayra, mesmo, a gente reunia amigas, montava o equipamento, brincava, mostrava como é que estava a pesquisa, mostrava o que estava tocando, o que gostava de tocar e tal.
Eu vejo um pouco dessa forma, sabe, Dayra? Eu acho que aquele 2016 foi meio que uma grande preparação – germinando a parada – para, em 2017, a gente entender isso como algo formatado, o que a gente quer fazer, entende? E daí começamos a fazer os eventos em 2017, e em 2017 nós começamos também a fazer as oficinas já.
Mas a gente já vinha desde 2016 nesses encontros com manas, com gatas cis e trans, pensando em fazer uma comunicação, porque partilhávamos dessa dificuldade de inserção na cena da música eletrônica. A união realmente fez a força para que a gente conseguisse fazer uma comunicação. Rolê prioritariamente para elas, priorizando elas. E em 2017 foi a primeira festa, desde então a gente não parou de fazer festas.
Queria que vocês falassem um pouco sobre esse período inicial das atividades do MaddaM. Como foi entrar, com um coletivo feito por e para mulheres, em uma cena tão masculinizada?
N: Eu acredito que a cena está, sim, um pouco mais plural e, de certa forma, houve avanço. Mas, se você for parar para pensar, quantos coletivos daqui, quantas produtoras, selos, realmente priorizam uma forma de colocar à disposição o acesso à informação, tecnologia, os aparatos, etc, a projetos como o nosso? Na época quando a gente começou, era também uma cena emergente, então esses coletivos também foram se construindo junto com a gente. Então a pauta é uma só: é justamente essa pluralidade.
D: Até passaram pelas nossas vivências, vivenciaram conosco pessoas que hoje, encabeçam coletivos, que estão pautando a diversidade, a presença e o protagonismo trans e a presença LGBTQIAPN+ com mais força e tal, com mais maturidade, mas que passaram pelo nosso projeto lá em 2016, em 2017. Artistas do porte de Libra, Geni, a própria Cherollaine, Paulete [Lindacelva] pessoas assim, que hoje estão em cena nacional. Então, lá em 2016, eram pessoas que iam nesses encontros, que iam passar tardes com a gente, pra gente falar sobre música, sobre sonhos, desejos, para a gente falar sobre como a gente poderia fazer um negócio massa.
Naquele mesmo período, pessoas como o Paulete já fazia a Infecciosa, um rolê underground, dissidente, com corpas plurais, então, já tinha isso, mas era um nicho muito pequeno, ainda pouco conhecido de um grande público. Quando a gente começou a ganhar uma certa visibilidade, e eu percebi isso a partir de 2017, 2018, 2019, a gente conseguiu levar o MaddaM para o Palco do [No Ar Coquetel] Molotov, em 2019. A gente fez uma curadoria partilhada com a Batestaca, que foi o palco do Som na Rural, dentro do festival.
N: Ela estreou como DJ no Coquetel Molotov por um reconhecimento do palco Som na Rural, que nos convidou. Roger [De Renor] nos convidou e Pedro de Renor, filho dele, que faz a Batestaca hoje em dia, teve esse contato carinhoso conosco. Disse “meninas, vamos nessa, vamos partilhar uma curadoria, já que, assim, seria uma maneira de furar a bolha e entrar no festival”. Entrar no sentido de poder trazer nossas artistas, trazer uma diversidade de minas que já trabalhavam conosco. Mas, complementando a informação que Dayra trouxe, eu entendo também que já era uma cena emergente a partir dali e existiam poucas iniciativas que tinham a para manter os seus rolês funcionando, porque fazer evento é muito suado. São muitos custos, são muitos gastos, é muita logística, é muita organização, é um tino de empreendedor que precisa aflorar naquele momento, tem que ter muita organização, equipes bem sedimentadas de trabalho, para funcionar, para dar certo e para perdurar.
D: Esse projeto começou era só a gente, né? Carregando tudo, montando tudo.
N: Carregando caixa de som na cabeça, montando mesa, forrando mesa com pano de mesa de casa. Mas a gente fazia, a gente fazia, porque o importante era fazer, o importante era existir, o importante era criar um espaço para existir, sabe, esse era o principal. E aí nisso eu comparo o nosso movimento, um pouco como que foi a Infecciosa, com o pessoal da Hypnos também, que também tinha essa necessidade de criar um espaço para a vivência de corpos dissidentes, de uma realidade LGBT, de um público queer, enfim, de diversidades, né, não falo só de uma diversidade, falo de “diversidades”, mesmo.
D: Tanto é que a gente enxerga, hoje, a cena de uma forma cada vez mais… com mais pessoas fazendo isso, com mais pessoas pautando essas ideias.
N: Ainda em 2017 ou 2018, a gente chegou a dar uma entrevista para o Diario de Pernambuco, que era meio, eu me lembro que a chamada era uma coisa assim, “Pé na porta para abrir o espaço”, uma coisa dessa. E aí a gente, desceu o sarrafo, na cena [local]. “É isso mesmo, se a gente não fizer, ninguém chama a gente para tocar.”, e a partir disso se gerou um “pá-pá-pá” e eu entendo que isso foi positivo. Foi negativo naquele primeiro momento porque eles geram um desconforto e todo o desconforto é muito necessário para que existam mudanças positivas, foi necessário o desconforto e a minha inquietação para que fizesse um rolê só de mina e foi necessário criar o desconforto para a cena de uma certa maneira, para a nossa existência na cena e também a existência desses outros coletivos.
Para a gente, acho que naquele momento entre 2017, 2018 e 2019 – 2018 principalmente -, que a gente meio que [entendeu] a cena tá precisando de mudança aí, como é que a gente vai conseguir participar dessa mudança da cena. Naquele momento a MaddaM tinha um pouco mais de estrutura para fornecer acesso a equipamento, fornecer acesso gratuito a oficinas e aulas e palestras falando sobre música.
Está acontecendo, a mudança está aí, a gente reconhece, a gente tá feliz, comemorando e celebrando essa mudança, mas ainda a luta permanece, porque a gente precisa ainda de equanimidade.
Nadejda Maciel
Então, em 2017, a gente fez umas oficinas no Texas; no Festival Sonora, que rolou lá em Olinda; no espaço Se Inspire; ganhamos dois dias de conferência com palestras, com rodas de diálogo, que são um espaço também essencial para uma troca de experiência, porque você pega uma pessoa que já está com uma profissão mais estabelecida e uma pessoa que tá sonhando em fazer aquilo um dia, e ter essa possibilidade de saber a trajetória da pessoa, como ela começou, entender quais são os caminhos mais difíceis mesmo, como que a gente supera as dificuldades, se fortalece para essas dificuldades, como é que a gente cria uma rede de conexões para superar as dificuldades que são inúmeras e estão sempre aí. A partir desse momento eu percebi que a própria cena mudou, porque começou a se tornar uma coisa assim, “E aí a gente precisa fazer uma festa só de mana, porque vocês não chamam?”. Eu às vezes fico meio dividida, porque de uma parte parece que solucionou tudo, porque colocou uma garota para tocar mais de dez DJs [homens], mas eu acho que ainda é muito pouco, eu acho que ainda falta um equilíbrio mesmo, de ter uma quantidade muito mais próxima, equânime, digamos assim, mais equilibrada de presença de artistas, de mulheres cis, trans, não binárias e travestis. A gente precisa equilibrar melhor a cena.
Está acontecendo, a mudança está aí, a gente reconhece, a gente tá feliz, comemorando e celebrando essa mudança, mas ainda a luta permanece, porque a gente precisa ainda de equanimidade, a gente precisa de cachês que se igualem, enfim, qual é a hospitalidade que o evento dá para um artista homem cis e para um artista mulher trans que está indo trabalhar? Como é que funciona isso? Não existe uma análise muito próxima sobre como isso acontece, a gente vivencia a cena e a gente observa. Eu gostaria e desejo que a cena não só traga pessoas que são mulheres para tocar, e sim que traga equilíbrio de cachê, que traga equilíbrio de tratamento como artista, que traga equilíbrio de tratamento profissional, e isso está no caminho certo, eu sinto que as coisas estão melhorando, eu tenho fé que as coisas estão melhorando, mas a gente está aqui para dizer que pode melhorar ainda mais, pode ser ainda melhor, pode receber com mais carinho, pode receber com mais cachê [risos], pode receber com mais hospitalidade,, essas coisas né?
Dentro do coletivo vocês têm atividades meio que pedagógicas, incluindo programa Techtrônica. Vocês podem falar um pouco dele? como que ele marcou vocês?
N: A Techtrônica foi uma forma de a gente colocar pra fora uma pesquisa que a gente já desenvolvia enquanto DJs. Dayra é socióloga, antropóloga, pesquisadora, musicista e mil coisas. Eu sou formada em Direito, sou Mestre em Direito Público, minha área já é mais focada em outras formas de trabalho, mas eu tenho uma veia musical também, de meu gosto mesmo, de minha própria curiosidade. Eu sou uma pessoa curiosa, tudo me interessa, a real é isso. E eu sou uma pessoa também ávida para pesquisa musical. A gente compartilhou muito com a pesquisa musical. É muito isso.
D: Como a gente já vinha de uma área como pesquisadoras, eu acho que foi muito natural a gente buscar esse campo para essa atuação da gente também. Não só em tocadas, em eventos, mas também trazer o que nos movimentava, passar essa ideia, essas pautas.
N: Sempre que a gente escuta algo que nos interessa. Então eu venho, “olha só, descobri isso aqui, e de onde vem? Como é que faz? Gravou onde? Qual é a história do disco? Qual é a história do artista?”. A gente já tem esse ímpeto natural, assim, a gente partilhar muitas dessas informações. A Techtronica foi uma maneira de colocar pra fora, de dar vazão a esse processo de pesquisa, que já existia na gente enquanto DJs, enquanto pesquisadoras musicais.
Agora, a oportunidade da [Rádio] Frei Caneca foi maravilhosa no sentido de que a gente pôde sistematizar a entrega de informação em torno da música. Formatar de uma maneira para conhecer a música por um viés mais aprofundado. Eu estudei em conservatório, Dayra é musicista, formada em dez anos de conservatório também. Então a gente já tem um pouco de conhecimento musical por uma análise um pouco mais perspicaz.
Então falar de cada gênero da música eletrônica, explicar a história do gênero musical. De onde veio a House Music? De onde veio o Techno? O Brega é música eletrônica? Sim, o brega funk é música eletrônica local. Quais são as vertentes? Quem são as pessoas que começaram esse movimento? O Brega-funk, além de um movimento musical, é um movimento cultural, é um movimento de periferia, é um movimento estético, é um movimento de dança. Então, falar sobre tudo isso, com a riqueza de detalhes, foi uma oportunidade de ouro na vida da gente. Acho que nos enriqueceu, como pesquisadoras musicais, porque a gente disse, “Velho, vamos dar o nosso melhor e vamos levar para a rádio”.
D: Tivemos que pesquisar bastante, para escrever os roteiros, passávamos dias mergulhadas nos temas. Cada programa também tem um tema diferença. Várias vezes a gente trouxe pessoas para fazer entrevistas com elas, também, tentando buscar essa coisa da valorização, do reconhecimento daquele trabalho que, às vezes, era inicial, mas que, sendo na Frei Caneca, uma rádio pública, poderia fortalecer nesse caminho.
N: E dentro dessas entrevistas nós tivemos encontros maravilhosos, como Amun-Há, Jéssica Caitano, Nordeste Futurista (Luana Flores), o pessoal da Scapa, que na época era Libra Lima (IDLIBRA), Anti Ribeiro e Biarritzzz. A gente teve contato com pessoas e com produtoras musicais de diversas vertentes sonoras. Tivemos conexão com artistas de fora de Recife através do programa, isso foi bastante enriquecedor, mas poder contar a história da música eletrônica pensando nas mulheres que fizeram parte dela, que era sempre o motte programa.
Em pelo menos um dos blocos, a gente focava exclusivamente em trazer só os nomes [femininos] que faziam sentido. Todas as artistas, a grande maioria das artistas que estavam presentes na discografia selecionada eram mulheres, eram artistas mulheres. O primeiro programa que teve o tema “As mulheres pioneiras na história da música eletrônica”, a música eletrônica nos anos 1970, 1980, 1990, nos anos 2000. Quem eram as mulheres da música eletrônica? Porque elas têm o seu nome apagado dessa história? Então esse mote a gente também aproveitou.
Se teve esse espacinho na rádio, a gente ia com tudo colocar as mulheres que não tiveram o seu nome lembrado na história da música eletrônica. Aí a gente fez isso. E eu tenho muito orgulho. A gente fez isso mesmo. Dayra se dedicava muito na pesquisa. Ela fez a locução da maioria dos programas da segunda temporada porque eu tive umas questões de saúde, aí não fui fazer a locução, ela fez. Ela ficava com “sangue no olho”; dois, três dias lendo sobre o tema, querendo dar o melhor, fazer uma pauta maravilhosa. Eu tenho muita orgulho desse programa.48 edições, 48 estilos da música eletrônica, 48 histórias sendo contadas.
Falando especificamente dessa relação entre as mulheres e a música eletrônica, eu lembro de nomes como Wendy Carlos, Suzanne Ciani e Maria Rita Stumpf, artistas que tiveram pioneirismo no gênero. Para vocês, qual a relação histórica das mulheres com a música eletrônica?
N: Eu acho que música tem arte e está em todos os seres, está em todos nós. Eu não acredito que seja específico de um gênero, mas é interessante perceber que houve uma negação de acesso a desenvolver a música eletrônica para as mulheres. Tem uma socióloga que escreve sobre feminismo confrontando a tecnologia e a presença do distanciamento das mulheres da computação, do mundo da computação. Por muito tempo, se você pensar, a tecnologia que nos foi destinada ou que foi socialmente aceita era a tecnologia dos efetivamente domésticos. Não é uma tecnologia que você possa pensar “Mãe, vou fazer Tecnologia da Informação.”, minha mãe ia olhar e dizer “É o que menina? Sei nem o que é isso.”. É um distanciamento imposto por uma estrutura patriarcal mesmo, sempre foi. Sempre foi um distanciamento imposto às mulheres de estar acessando ferramentas de desenvolvimento intelectual, fosse ele tecnológico ou não, fosse ele mais digital ou não, sempre nos foi negado isso. A gente ter a sorte, hoje, de acessar o ensino, enveredar a fazer…
D: A sorte não, né? É resultado de muita luta.
N: A luta! Muitas foram queimadas na fogueira para que a gente tivesse aqui agora, mas é isso. Eu não acho que é uma demonstração ou uma manifestação artística específica de um gênero; a música e a arte, ela está em todos nós. Apenas o acesso nos foi negado durante muitos anos. E algumas pessoas, algumas vanguardistas que conseguiram perfurar essa bolha e trouxeram esse…
D: E tiveram um reconhecimento negado, que foram as histórias dessas pessoas que foram esquecidas, escondidas, né?
N: Wendy Carlos foi uma mulher trans que teve acesso a fazer a trilha sonora de Laranja Mecânica (1971). Se consagrou dentro de um espectro muito específico, de um nicho muito específico para criação musical, que é o cinema e a televisão. A Delia Derbyshire, ela foi da BBC nos anos 40, nos anos 60, ela criou uma máquina, um equipamento que lembra um pouco o Fax, que você passa uma lâmina de celulose pintada com nankin, e aí a máquina faz a leitura do gráfico que você escreveu, e ele cria uma frequência, a partir da que ela recortava a gravação em fita pra montar a música. Ela estava adentrando uma seara tecnológica que foi aberta, que era a BBC na época e ela fez trilha sonora para Doctor Who e outras séries que da televisão na época, na Inglaterra. Mas isso é uma exceção, da exceção, da exceção nas regras, porque, no geral, é realmente uma negação de acesso à tecnologia.
Eu acho que como a gente vem em um processo de abertura, de facilitação, de acesso às coisas, a partir dos softwares livres, enfim, da revolução tecnológica que a internet trouxe, a gente agora consegue ter mais pessoas entrando em contato com softwares de produção musical, entrando em contato com tutoriais no YouTube, entrando em contato com cursos que são mais acessíveis, mais baratos. A gente faz de graça porque a gente quer ver as manas no rolê. Mas aí já tem uma concentração maior mesmo. E eu acho que só tem a crescer a quantidade de artistas mulheres cis e trans, enfim, artistas.
Fazendo uma comparação entre hoje e quando vocês iniciaram o MaddaM, sete anos atrás, quais diferenças vocês percebem hoje na cena eletrônica do Recife?
D: Começar pelo cachê, né, porque antes não era nem cachê, a galera queria pagar com cerveja. Não tinha nem cachê pra gente, né? Queria pagar com uma vodka e pronto.
N: Era difícil, visse [risos]. Aí a pessoa sai de casa, fica bonita, se prepara todinha, se perfuma, se maquia, faz uma pesquisa, passa semanas pesquisando, montando o set, quer fazer uma coisa linda, uma coisa bem bonita, especial para as pessoas, e aí chega lá e ganha uma cerveja é para se lascar.
Mas eu concordo com Dayra. Tem essa diferença do reconhecimento, da profissionalização, da mulher DJ. Isso é um fator importante a ser levantado. Os coletivos que dialogam muito conosco, em proximidade, tanto de admiração do trabalho, como de parceria mesmo, e de apoio mútuo, como a Reverse, a Batestaca, como Hypnos, a NBOMB, a Syntetica, poxa, tem muita gente. E até quem não é de música eletrônica como a Terça do Vinil ou outros rolês mais abertos a outras sonoridades que não são de música eletrônica no underground, que não é de techno, que não é de house especificamente. Mas esses espaços que já nos abriram portas, disseram “Queremos vocês aqui, tragam sua linguagem, tragam sua assinatura sonora”, coletivos que a gente dialoga de maneira muito franca, muito tranquila.
D: Acho que isso foi se construindo nesse tempo, né, até agora, e é bacana ter isso, porque quando você começa, a gente sozinha, tentando enxergar uma cena ali, e ter o apoio, o fortalecimento deles, os coletivos próximos que vão junto com a gente nesse momento é massa.
N: E acho que é um fortalecimento mútuo, porque nós aprendemos muito com a luta, para poder conquistar esses espaços e do lado lá, também, há um aprendizado de abertura para que essa mudança aconteça, e aconteça em conjunto. Toda mudança é uma mudança coletiva; toda luta é uma luta coletiva, toda conquista é uma conquista coletiva também. Eu acho que a gente está conquistando cada vez mais espaço, mais reconhecimento, mais respaldo profissional e isso está acontecendo de maneira coletiva para nós e de maneira coletiva para a cena, eu acho que é isso.
Eu particularmente enxergo que existe muito mais apoio do que disputa, apesar de que para algumas pessoas existe mais disputa do que apoio, mas isso é para cada um. A gente acredita no apoio. A gente trabalha sempre com a energia do amor ali, para irmos juntas, quanto mais melhor, quanto mais gente aparecendo, quanto mais a gente se torna melhor, então, é abrir espaço e abrir espaço com responsabilidade.
Responsabilidade de reconhecimento profissional, de cachê, digno de cachê honesto e atendimento receptivo no evento de si, que seja coerente com a gente, que está fazendo algo de trabalho. É um trabalho. Vão receber a gente como um profissional dentro do evento, e isso a gente está vendo uma mudança positiva, a gente está vendo que os outros coletivos têm se importado nisso e se importado de maneira cada vez mais profissional, a gente se sente muito abraçado nos eventos que a gente participa, eu posso ver isso por mim e também visualizo como produtora de Dayra, como a pessoa que acompanha os eventos dela, e a gente tem conquistado, realmente, um espaço de respeito, um espaço de compartilhamento de força mesmo, isso é muito bom, a cena está melhorando bastante, já foi mais difícil.
Agora a gente vê também que eventos muito grandes – e aí eu não quero citar nomes, para não ser uma situação – que têm grandes marcas de bebida, que são mais para um nicho mais elitizado, a presença para a menina ainda é muito pequena e, quando existe, às vezes, nem são pessoas daqui, não são meninas daqui, sabe? A pessoa faz um evento grandão, coloca DJs fodões e não chama uma mina da cidade pra tocar, isso é meio mal, poxa…e cobra R$150,00 reais, né? O cara vem aqui, vai sugar a grana da galera da cidade, vai botar um artista de nível nacional homem pra tocar, pra chamar as pessoas pra dentro, uma artista de nível nacional mulher, mas ninguém daqui. A gente fica “Poxa, gente, tá na hora de melhorar isso.”, mas, pelo menos, os nossos nichos, o underground, que trabalham mais um público LGBTQIAPN+, que aí está mais unido, no sentido de alinhamento de pensamento. E como a gente quer fazer uma cena com crescimento pra todo mundo. E tá acontecendo. Eu tô vendo com bons olhos, atualmente.
E o que isso mudou em vocês?
D: Para mim, o ponto principal foi a autoconfiança. Cada vez que eu ia ali, para aquele novo contexto, com aquele público, eu me fortalecia lá. Então, para mim, isso mudou completamente. E como eu já toquei em alguns eventos grandes, já tive a oportunidade de ter um público “maiorzão”, que dá aquela tremedeira, mas de me conscientizar para entregar o meu melhor. Porque eu sou uma pessoa que costumo me dedicar bastante a fazer o set e tal. E é sempre bom que o público receba isso também da mesma forma. E eu passando confiança a lei também, né?
N: Eu acho que para mim, isso é tudo, né? Em 2022, Dayra fez Rec-Beat, né? Que são o quê? 20 mil pessoas passando ali no Carnaval do Recife.
D: Vou tocar agora no Turá, também. Nadejda vai tocar no Wehoo.
N: Em 2020 eu fiz Rec-Beat também. A gente olha o palco lá de cima e não vê o fim. É maluco isso, dá uma sensação maluca mesmo. Dayra falou de autoconfiança, eu acho que é crescimento em vários âmbitos. Pra mim é uma conquista pessoal saber que a gente hoje tem um espaço de reconhecimento na cena, saber que a gente hoje tem um espaço de respeito e, para mim, a principal mudança, e o principal fator que me motiva até hoje, é perceber que a gente faz parte da construção de espaços para mais pessoas como nós, para mais corpos dissidentes. Porque, como mulheres lésbicas, a gente sabe que acessamos até certo ponto as coisas, né? A estrutura, que ainda não nos abraça completamente, tem uma resistência ali pra nossa presença. Então, para mim, o que mais me gratifica nessa caminhada, até então, é ter feito parte do crescimento e da construção de mais espaços para que mais mulheres, e mais lésbicas, e mais travestis, e mais pessoas trans estejam no rolê, estejam seguras do rolê. Seguras. Sair de casa sabendo que vai voltar bem. Sair de casa sabendo que curtir uma festa que te respeita, que te abraça, que te acolhe. Um rolê onde você está entre seus pares, onde você pode ser feliz, onde você pode se expressar musicalmente, com as artistas que estão tocando; na performance de dança, na performance artista, e se expressar enquanto público. Porque eu acho que a pista de dança, ela tem um papel essencial na vida do ser humano, na sanidade mental da gente. Você poder sair de casa para dançar, para se expressar, para abraçar seus amigos, para beijar na boca, sem medo de quem está te olhando, sem medo de quem pode te ferir, sabe?
Construir um espaço seguro para existir, e que a gente vem conquistando com o tempo, e está sendo mais gratificante de ver acontecer e fazer parte disso, porque não é só a gente que faz não, é um bocado de gente que faz, cada um no seu coletivo, cada um com a sua estética, cada um com o seu tom, seu toque, o seu jeito de fazer e todo mundo tá crescendo junto. Como Dayra falou várias vezes: toda mudança é uma mudança coletiva, nada se muda sozinho, tudo se muda em conjunto e a gente faz parte de um grande conjunto e de outros conjuntos que estão fazendo essa força.
Para o futuro, quais os planos do MaddaM?
N: O que eu espero? Ah, eu espero muita coisa [risos]. Vamos lá. Eu espero conseguir viver da arte. A gente ainda não consegue, sendo muito sincera contigo, a gente não vive desse trabalho artístico. A gente faz isso e muitas outras coisas. A gente faz eventos com a temática MaddaM, mas a gente também faz aniversário, casamento, a gente faz de tudo.
D: Produção cultural, também, planejando projetos.
N: Isso. escrevemos projetos para outras pessoas. Trabalhamos com a produção executiva de outros projetos. Trabalhamos em parceria com a Prefeitura do Recife em projetos que nós executamos para outras pessoas. Então, assim, a gente ainda não consegue viver do que a gente produz como arte. A gente acredita nisso como sendo o nosso futuro. A gente acredita.
Mas, para além disso, minhas expectativas é que a gente amplie e que aumente ainda mais o alcance das oficinas, espaços nos festivais, que amplie e alcance ainda mais pessoas, que toque o coração de mais pessoas para uma mudança positiva na cena da música eletrônica. Tocar as pessoas, os produtores, as produtoras, as grandes empresas, as grandes marcas.
D: Eu acho que, principalmente, que se dissolva essa diferença. Eu acho que quando você tem música eletrônica, ainda, na cidade. Tem uma galera que conhece a gente de outros contextos, até nem sabe muito sobre esse tipo de música, e eu acho que pulverizar essa diferença de espaços seria muito gratificante. Poder ver música eletrônica crescendo dentro de outros contextos, não só os reservados à música eletrônica. Eu acho que [seria bom] a galera entender que Brega-funk é música eletrônica, mas que Techno também é música eletrônica e que a gente pode estar juntos em outro contexto.
N: Eu gostaria muito, para o futuro, que a cena realmente processe essa equanimidade, esse equilíbrio da presença feminina e de corpos dissidentes, de pessoas trans nos eventos de uma maneira geral. Porque quando a gente vai num evento formatado por um determinado mercado, por uma determinada marca de bebida, a gente percebe que não existe espaço para a gente existir nesse lugar. E a gente estar nesse lugar muitas vezes gera incômodo para nós, principalmente, de medo, de não se sentir pertencente daquilo ali, e das pessoas, de nos confrontarem ainda com um certo desconforto, até com um certo assédio, com certa violência, sabe? Isso precisa acabar. A música eletrônica é uma experiência de conexão. A música é uma experiência de conexão. A dança é uma experiência de conexão, nós dançamos desde que o mundo é mundo. O ser humano dança, e dançar junto é importante demais pra gente ter esse momento de, sei lá, de simbiose mesmo, com o que nós somos.
D: Mesmo que no nosso contexto seja mais natural compartilhar isso, né? De uma forma leve, boa, alegre, tem lugares que a gente evita ir porque, mesmo sendo música eletrônica, de coisas que a gente gosta, a gente evita ir porque sabe que ele vai ficar desconfortável, porque já sabe que tem esse teor, é ambiente machista, realmente, algumas coisas continuam se repetir, se reproduzir.
N: Mas é uma longa jornada de mudança de toda essa estrutura patriarcal que vem desde que o mundo é mundo. Mas nós estamos aí, no nosso trabalho, esperando que isso melhore, que isso cresça, que a forma da gente fazer as coisas, e desses outros coletivos, que também se alinham conosco nessa forma de entender a música eletrônica, que isso se expanda para outros lugares.
D: Novas gerações aí, né?
N: A gente espera novas gerações, e eu quero que essas gerações cheguem junto, que a gente trabalhe junto, que a gente cresça junto.
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