Jaloo tem sido um dos nomes mais relevantes do pop brasileiro nos últimos dez anos. Como ela mesma define, a artista paraense vem de uma cultura que valoriza o papel da produção musical, uma atenção especial ao feitio musical e a construção das faixas, aspecto que fica evidente nos seus três discos: #1 (2015), ft (Pt.1) (2019) e MAU (2023), além dos projeto paralelo Os Amantes, que rendeu o álbum homônimo lançado em 2021.
Com um olhar cuidadoso e preciso em suas próprias produções – ou nas de outros artistas em que ela aparece na produção como “mão de obra” – , Jaloo fundiu referências brasileiras, sempre destacando a herança nortista, e referências internacionais do pop alternativo, uma estética que influenciou na construção da música pop brasileira que conhecemos hoje, sempre atenta aos movimentos contemporâneos que surgem a partir do funk, forró ou brega.
A cantora chega ao Recife no mês de dezembro para apresentar o show de seu último disco no No Ar Coquetel Molotov, na UFPE. Em uma entrevista para a Revista O Grito! Jaloo se aprofunda nos processo de elaboração do MAU e os cruzamentos da sua produção artística com as mudanças pessoais dos últimos anos. Leia a entrevista na íntegra.
MAU é um álbum 100% solo depois de um período de colaboração em Os Amantes e o ft. part 1. Minha dúvida é se, depois desse tempo em contato com outros artistas, você não ficou meio…
De saco cheio? [risos]
[risos] Isso, ficou de saco cheio, e aí por isso que o disco se tornou um espaço para a solitude.
Eu sou muito fã do Acaso, né? O Acaso me trouxe muitas respostas pra perguntas que eu nem sabia que tinha. Mas, o primeiro disco, ele é um disco onde eu produzo, onde tem algumas colaborações. Eu produzi todas as faixas, mas tem uns dedinhos, uns arranjos [de outras pessoas], tem composição da MC Tha, então já tinha essa coisa colaborativa, mas era um disco bem autoral. No ft. (part 1.) eu já fui pra esse lado de querer produzir muito com outras pessoas, de exercitar isso em mim também, dividir um pouco, porque eu sou bem individualista; e deu muito certo, foi muito bom.
Eu queria muito exaltar também outros produtores, né? Além de mim, tipo, teve BADSISTA, teve o Nave, e eu venho dessa cultura de produtor musical, de fazer remix, de produzir outras coisas, produzir as próprias músicas, eu acho que isso permeia muito meu trabalho, até eu faço questão de exaltar quando eu percebo que as pessoas estão esquecendo. E o terceiro, eu acho que foi por essa série de colaborações, incluindo um próprio disco que era sobre isso. Eu fiquei de saco cheio mesmo, queria fazer algo novo, então o que estava faltando era fazer tudo 100%. Eu sabia que eu dava conta, já estava nesse lugar de amadurecimento, de dizer “nossa, eu consigo, consigo fazer, vai dar certo”. Eu acreditei e foi.
Acho que essa confiança que você teve se traduz muito na personalidade do disco. Tem samples de outras músicas suas, tem até o “Gemidão do Zap” na faixa “MAU”. Essa experiência de estar sozinha te fez entender que você podia fazer o disco como quisesse?
Esse disco é exatamente isso. É um disco que pensei ‘Ah, quer saber? Não quero saber como é que tá dando certo, se a batidinha ali e aqui está certa ou quais são as tendências. Eu vou fazer o que eu quero. Eu vou fazer o que eu quero. Se der certo, deu, se não der, não deu.’
E uma das coisas que eu queria fazer pra fechar esse ciclo era samplear a música dos dois discos anteriores. Então, tem um sample de “Say Goodbye”, né? E tem um de “Last Dance”, pra ter essa coisa de unidade, e tal. É um disco também muito ousado. Eu acho que ele não é muito triste em comparação aos outros, nada muito extremado, intenso, e ele também fala de assuntos meio delicados. E eu já tinha uma ideia de que, “MAU”, por exemplo, que tem um gemidão, seria uma faixa que as pessoas iam ouvir e pensar, ‘que porra é essa?’, e eu produzi essa faixa para as pessoas pensarem exatamente isso, enquanto estivessem ouvindo.
Eu tô em Salvador, né? Encontrei ontem um fã numa festa e, durante o show, um menino me parou e falou umas coisas muito legais, mas teve uma coisa que me marcou porque ele disse assim: ” ‘MAU’ é muito foda, mas o povo só vai entender daqui uns dez anos”. Eu fiquei meio assim, sabe? Logo “MAU”, que é uma música que dividiu os fãs? Mas que legal isso. É muito bom quanto vem dos outros. E eu acho que esse disco tem muito disso, de ter chegado cedo demais talvez? Mas eu gosto disso, eu gosto de pensar dessa forma.
Relacionamentos são um tópico recorrente sua discografia, mas sinto que MAU tem uma visão muito mais realista. Ao longo do disco você fala não só das coisas boas no amor, mas também das traições, do ressentimento, carência e da ausência. O que é bem diferente dos seus outros trabalhos, que são mais melodramáticos. O que mudou o seu jeito de cantar sobre esse tema?
Ele vem muito dos anos que eu estou vivendo e fazendo análise, ele é um disco bem psicanalítico, acho que dá pra perceber, e na psicanálise tem muito de tentar sair do lugar de vítima. Eu sei que é muito difícil às vezes, principalmente no contexto que você se insere, eu, por exemplo, uma travesti, tô lascada. Mas é um exercício de se tirar do lugar de vítima, de sempre assumir os B.Os, não que todos eles sejam responsabilidade nossa, isso a gente não comanda, mas só nesse exercício a gente começa a se tornar mais forte, autossuficiente, consegue bater de frente e perder um pouco daquele medo, e esse disco eu acho que ele reflete muito isso.
Eu me humilho de uma maneira em “Quero te ver gozar” e eu lembro que um amigo meu, Pedrowl, que é produtor também, e a primeira vez que ele ouviu a música, ele falou ‘nossa, amiga, que franca, que sincera’, e eu falei ‘ai, amiga, parece que eu botei aqui o que eu falo na terapia’, o lugar de se assumir também como o responsável pelas relações. É porque a gente viveu uns anos atrás aí que era muito, ‘ah, é tóxico’, e aí com esses anos de exercícios eu consegui me colocar no gozo. Tudo é um gozo. Se estou conseguindo me manter aqui é porque, de alguma forma, estou gozando. E essa música tem um nome muito explícito e vai para esse lugar em que as pessoas já jogam para o sexo, mas não é sobre sexo, é sobre outro tipo de prazer.
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Em um dos primeiros posts de divulgação de MAU, o single, você fala o quão bom é ficar quieta, sozinha, sem dividir nada com o mundo. Qual a razão principal que te fez sair do hiato – tanto o artístico quanto o pessoal, já que você voltou depois de passar pela transição – e como foi lidar com essa apresentação ao mundo?
Ah, aquele vídeo foi algo muito especial para mim, que a gente fez muito na brincadeira. São todos amigos ali, mas foi muito legal exercer esse lugar de roteiro, que eu gosto de escrever, então de fazer um texto, de dirigir as pessoas que nem são atores e estão atuando, então fiquei muito feliz com o resultado, porque chegou num lugar divertido. Acho que que funcionou.
Eu acho que eu já estava toda cheia de mim quando eu lancei o disco, tanto que tirei a foto do disco pelada, eu já me achava mais gostosa. Mas eu lembro que, nossa, eu sou uma pessoa meio esquisita, tá? Eu estou pensando aqui ‘que maluca!’ Quando eu comecei a tomar os hormônios, quando eu comecei a fazer os processos, eu criei uma pessoa, não sei se tu lembra disso, que não mostrava o rosto e que tinha o cabelo louro, e falava com a voz fina. E eu me divertia com aquilo, só que eu percebia também que muita gente estava achando que eu estava doida.
E aí, logo em seguida, teve Os Amantes, a banda, onde eu encarei o meu drag king, eu me montei de bofe. Eu botava o bigode que eu comprei na internet, a peruquinha e fazia O Amado, que era aquela persona, tudo isso estava acontecendo enquanto eu estava tomando hormônios, passando pela transição. No último show dos amantes, eu fiz uma coisa que eu queria que fosse divertido, mas no final foi muito emocionante. Antes de acabar o show, nas três últimas músicas, eu arranquei o bigode, tirei a peruca e uma camisa bem masculina, e aquilo foi muito intenso, assim, pra muita gente que estava lá, e eu só queria mostrar que tinha outra pessoa por baixo. Lembro com muito carinho desse dia.
[…] com esses anos de exercícios eu consegui me colocar no gozo. Tudo é um gozo. Se estou conseguindo me manter aqui é porque, de alguma forma, estou gozando.
E depois disso, já no pós-transição, qual o papel que a divulgação e promoção do novo álbum teve no processo de entenderem a Jaloo?
Uma coisa que eu percebi é que eu tive que ser muito paciente. Eu acho que no começo a gente quer se afirmar muito e tudo certo nisso, mas às vezes quem me conhecia há anos errava o pronome, quem acabava de me conhecer falava direitinho, e aí nos fãs é a mesma coisa, né? porque as pessoas estão há quase dez vivendo e falando de um jeito, então tive que ter um carinho de mãe, quase, que é como o povo tá me chamando agora e eu tô assim ‘como é esse negócio?’ [risos].
Eu via nos comentários a galera perguntando se era ele ou ela, qual eram meus pronomes. Eu nunca respondi porque eu acho que naturalmente as coisas foram caminhando para o seu lugar, e eu também nunca quis transformar isso em um pronunciamento, é algo pessoal.
Você lançou remixes de “Mau” com Cyberkills e “Quero te gozar” com MU540. Já pensou em fazer uma versão remix do álbum, ou sente que ele chegou para encerrar a trilogia e que já é hora de ir para outras coisas?
Eu não paro de fazer outras coisas, né? Já estou planejando ano que vem lançar um single novo. A gente está com um plano bem ousado, até, mas por baixo eu vou costurando coisas. Saiu esse remix, esses dois remixes, então já são duas faixas. Eu já estou de conversa com alguns artistas para as outras. Então, se a gente terminar as 10, vira um álbum de remix. Se não, a gente continua lançando assim mesmo.
Faz oito anos da primeira vez que você veio para o No Ar Coquetel Molotov, em 2016. Quais lembranças você tem desse dia?
Caralho, faz tempo. Eu tenho uma lembrança bem forte. Eu acho que eu estava ainda com aquele cabelinho, uma roupa rosa e o show era num lugar aberto. E me contaram que tinha 9 mil pessoas. Eu pensei ‘caralho, isso é sério?”. Quando a gente subiu no palco, eu senti uma coisa muito intensa. Foi muito bonito. Inesquecível. [risos]
Os discos da trilogia têm, entre si, quatro anos de diferença entre seus lançamentos, e você até chegou a dizer que não ia mais demorar tanto para lançar coisas novas, então o que esperar de Jaloo para o futuro próximo?
O MAU acabou de completar um ano, agora em outubro, mas eu já tô doida pra lançar coisa nova. Parece que eu me libertei de uma coisa que eu mesmo criei pra mim, desses lugares de álbuns muito biográficos, de ter eras muito bem definidas, então talvez esteja mais focada na música agora. Eu estava até pensando em lançar disco com um nome gigante, lançar disco sem foto minha, de me colocar em lugares novos, já que eu já ocupei esse lugar meio de diva, de eras.
Eu sou muito fã da Lana Del Rey e eu gosto muito como ela foca na música. Ela tem todo o visual, uma forma de ser, de agir e tal, mas tem um foco muito na música, eu acho que eu tô querendo me debruçar mais na métrica. Eu estava até ouvindo um podcast sobre Camões que fez o aniversário agora, aí estavam falando sobre os decassílabos […] eles ficaram falando sobre as métricas, e pensei ‘nossa, eu quero mergulhar nisso agora’, ficar mais aqui na letra, sabe, na riqueza de detalhes e não parar de produzir nunca. Eu acho que no final de contas eu sou uma produtora musical, foi o que me trouxe pra cá.
Ouça MAU, de Jaloo:
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