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O escritor e jornalista Chico Felitti está entre os indicados. Foto: Marcus Leoni/ Divulgação.

Um papo com Chico Felitti, autor dos livros “A Casa” e “Ricardo & Vânia”

O escritor comenta o processo de apuração de suas reportagens, relações com as fontes e qual seria o gênero literário do Brasil de 2020: "com certeza um livro de terror"

Publicado originalmente no site Buzzfeed, o perfil de Ricardo Correa da Silva, conhecido por muitos moradores da cidade de São Paulo como “fofão da Augusta” ganhou repercussão e prêmios e revelou ao Brasil o autor dessa reportagem sensível: o jornalista paulista Chico Felitti. Após a publicação, novos elementos surgiram, incluindo um figura central na vida do Ricardo, o seu grande amor, Vânia. O fato – e tantas novas histórias sobre o casal – levaram Felitti a escrever o seu primeiro livro, Ricardo e Vânia – o Maquiador, a Garota de Programa, o Silicone e Uma História de Amor” (Todavia, 2019). 

Em 2020, Chico lançou A Casa (Todavia, 2020), sobre o líder espiritual João de Deus. Ancorado em uma apuração consistente, que trouxe à tona histórias e depoimentos impressionantes e chocantes, o livro revela não apenas a trajetória do guru que construiu um verdadeiro império e se envolveu em escândalos que vão de denúncias de assédio sexual e outras crimes. Conta muito sobre a pequena cidade cravada no Cerrado brasileiro. “Era um lugar completamente atípico, e eu fiquei me coçando para descobrir (e contar) como nasceu esse lugar, que estava morrendo”. 

Na entrevista a seguir, Chico Felitti conversou com a Revista O Grito! sobre seus dois primeiros livros, processos criativo e seu novo trabalho. Um romance “infanto-juvenil” que está em processo de finalização em plena quarentena e que, segundo o autor, “nasceu muito do clima de 2020. Do clima de medo, de impotência e, acima de tudo, de raiva”. 

Como você classifica seus dois primeiros livros – “Ricardo e Vânia e “A Casa”? O quanto do jornalista Chico Felitti está presente na produção das duas obras? E o quanto do escritor?

Ricardo & Vânia é um livro de buscas. Primeiro a busca pelo nome de um artista de rua que passou décadas nas ruas de São Paulo, mas que era conhecido pelo grosso da cidade apenas por Fofão da Augusta, porque tinha injetado silicone no rosto. Depois, a busca de uma pessoa que esse homem amou, que hoje se chama Vânia, pela identidade própria, uma busca que passou por transição de gênero e várias mudanças de nome na Europa. Nesse livro eu estou de corpo inteiro, e acabei virando um personagem da narrativa, meio sem querer e junto com a minha mãe, que na verdade é a melhor investigadora do livro (risos).  

A Casa é um livro que conta a história inédita da Casa de Dom Inácio de Loyola, o centro místico onde João de Deus atendeu por 40 anos, em Abadiânia, interior de Goiás. É um livro mais impessoal, eu só estou lá observando e catando os cacos dessa história aterrorizante que nunca havia sido contada. 

A reportagem sobre o Ricardo teve uma repercussão grande. Esperava que a história dele pudesse render um livro? Partiu de você a decisão de contar melhor essa história? 

Não esperava que pudesse virar um livro, não. Inclusive eu era bem avesso à ideia. Tinha medo de cair na arapuca de escrever mais sobre essa história só porque o perfil que o Buzzfeed News publicou foi bem recebido. Então, eu recusei o convite de alguns editores para continuar essa história. Mas daí apareceu a figura da Vânia, que era uma lacuna na primeira matéria. Quando comecei a conversar com aquela mulher, e ela me contou que tinha revolucionado o mercado de sexo na França, mudando de nome e de identidade de tempos em tempos, e eu fiquei embasbacado. Queria muito escrever a história da Vânia, que por si só já valeria um livro. Foi aí que eu decidi juntar tudo em um livro: a história da busca do nome do Ricardo, como a vida dele mudou (e chegou ao fim) depois que a reportagem foi publicada e a história de vida da Vânia.

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A história do Ricardo se confunde com a de milhares de brasileiros marginalizados e “invisíveis”. Foi muito difícil escrever sobre esse personagem? Teve dúvidas quanto à condução da narrativa? Incluir a Vânia e contar a história sob a perspectiva da relação dos dois foi uma opção desde o início?

Foi zero difícil escrever a história do Ricardo, inclusive acho que foi um dos textos que fluiu mais facilmente para mim. A apuração era difícil, sim, estávamos buscando uma agulha num palheiro – um nome numa cidade com 20 milhões de pessoas. Mas a investigação foi me levando para lugares tão peculiares e tão lindos, com personagens tão poéticos, que era como se o texto se escrevesse sozinho. O desdobramento narrativo no livro também foi muito natural. A Vânia tinha tido muita coisa em comum com o Ricardo, inclusive a aparência do rosto dos dois foi igual, por causa do silicone que injetaram, mas sua vida rumou para um caminho completamente oposto. E era natural que ela viesse depois do ocaso dele, mostrando toda uma vida que poderia ter sido, mas que não foi.

 No livro “A Casa” você pensou em declinar do convite para escrever o livro, apontando como um dos motivos achar que não ia render escrevendo sobre um personagem que não admirasse. Como conseguiu driblar este obstáculo? Depois dessa experiência, acha que consegue escrever sobre qualquer personagem?

Eu não só pensei em declinar o convite para escrever esse livro como de fato declinei (risos). Eu não queria escrever uma biografia do João Teixeira de Faria, o vulgo João de Deus. Achava que corria o risco de glorificar um criminoso que ganhou muito poder em quatro décadas justamente porque foi glorificado pela mídia e pelos três Poderes. Mas, quando cheguei a Abadiânia pela primeira vez, em janeiro de 2019, meu queixo foi para o chão. Percebi que a minha história era a cidade. Aquela cidade do interior de Goiás que tinha tudo para ser um canto esquecido, com nem 10 mil habitantes, mas que por causa de um líder místico tinha virado um polo global de turistas. Era um lugar completamente atípico, e eu fiquei me coçando para descobrir (e contar) como nasceu esse lugar, que estava morrendo. 

A investigação (do livro Ricardo & Vânia) foi me levando para lugares tão peculiares e tão lindos, com personagens tão poéticos, que era como se o texto se escrevesse sozinho.

Depois de apurar tantas informações, e com fontes tão diversas, como foi o processo para decidir o que iria entrar no livro “A Casa”? Como foi o processo de “curadoria” / seleção das fontes? 

A seleção de fontes foi num estilo metralhadora giratória mesmo. Qualquer um de Abadiânia que topasse conversar era uma boa fonte. Mas a cidade ainda vivia com muito medo, então eram raras as pessoas que se dispunham a contar suas histórias. Mas, no curso de um ano, consegui conquistar a confiança de bastante gente lá, e também achar outras pessoas fundamentais na história da casa, como a aposentada que afirma ter sido contratada para fingir que era paraplégica dentro da Casa de Dom Inácio, e levantar da cadeira de rodas depois que João Teixeira fazia uma “cirurgia espiritual” nela. Depois de apurar muito, levantar muito documento, ler dezenas de livros e ver centenas de horas de filmagens, eu comecei a escrever. E só entrou no livro o que poderia ser provado. Então, por mais que haja muitos crimes inéditos no livro, ouvi relatos de outros tantos que não foram para o papel porque nunca foram denunciados ou investigados. 

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Durante o período que esteve em Abadiânia, e por estar lidando com uma história tão complexa e com um personagem central com tanto poder, chegou a sentir medo? Temeu pela sua própria integridade física?

Sim, senti muito medo. Eu passava o dia todo ouvindo abadianenses contarem de gente que sumiu depois de entrar no caminho da Casa. Descobrindo de gente que foi morta (inclusive duas pessoas foram baleadas dentro da Casa), apurando história de avião que explodiu… Enfim, assuntos nada leves. E quando chegava a noite naquela cidade, batia uma insegurança sim. A vida ainda vale muito pouco em alguns pedaços do Brasil — ou talvez no Brasil inteiro, parando para pensar.

Ao final da apuração, porque você acha que tanta gente – de celebridades a pessoas comuns – foram envolvidas pelo João de Deus? Acha que ele poderia ter, de fato, algum poder especial que foi canalizado para o “lado do mal’? Ou realmente ele não passa de mais uma charlatão como tantos outros que vemos no Brasil e no mundo?

Eu felizmente não tive de responder se os poderes que ele afirmava ter eram reais ou não. O propósito do livro é narrar como uma seita que nasceu no coração do Brasil, no meio do cerrado, virou essa coisa imensa que arrastava dezenas de milhares de gringos para Goiás todos os anos. Que trouxe ao Brasil Oprah e Shirley MacLaine. Mas, no processo de investigar essa história, encontrei vários indícios de charlatanismo, como pessoas que afirmavam ser contratadas para fingir estar doentes dentro da Casa, para depois “se curar” com ajuda de João Teixeira, ou médicos que explicam como os truques que ele usava eram antigos, e havia uma lógica para as pessoas não sentirem dor. Do outro lado, ouvi dezenas de relatos de pessoas que afirmam terem sido curadas na Casa, e não questiono a experiência delas. Mas, se você me perguntar existe prova documental de cura dentro da Casa, eu vou responder que pesquisei por um ano, e não encontrei nenhuma.

A história de João de Deus não é o primeiro caso de um líder espiritual que se envolve em escândalos sexuais e de assédio. Porquê isso é tão recorrente?

Acho que é o tipo de problema que nasce quando se dá muito poder na mão de uma pessoa. Essa pessoa passa a achar que não se submete às leis. E por quase quatro décadas João Teixeira de fato não se submeteu às leis, porque se tivesse sido julgado de acordo, já teria sido impedido há décadas de cometer as atrocidades que cometeu.

Nos dois livros, a cronologia dos fatos não segue uma linearidade e as informações sobre as histórias dos personagens se misturam com detalhes da própria apuração. Porque escolheu essa forma para conduzir a narrativa?

Ricardo & Vânia foi um livro que se escreveu sozinho (risos). Como a história começa num esquema de saga, de a gente procurar o nome dessa pessoa que não tinha nome, me vi incapacitado de contar de outro jeito: tinha que ser uma busca por algo. E assim é a primeira parte do livro. E a segunda e a terceira partes são meio um resgate de todas as outras perguntas que não conseguimos responder na primeira parte do livro.

A Casa foi um formato pensado. Eu queria muito contar o que foi a Casa de Dom Inácio de Loyola, do fim dos anos 1970 até hoje. Mas também tinha muito a reportar sobre o que está acontecendo hoje em Abadiânia. Para costurar o passado e o presente, montei um livro zigue-zague, que tem um capítulo dos primórdios da Casa seguido de um capítulo atual, de o que está acontecendo hoje com Abadiânia. Assim o passado e o presente andam juntos, e é possível mostrar como um redundou no outro.

Falando agora de novos projetos: pensa em escrever alguma obra de ficção? Já tem algum em processo?

Sim. Estou terminando na quarentena  um romance infanto-juvenil. Na verdade, nem sei se é infanto-juvenil. Nasceu como uma ideia para jovens, de uma adolescente que vive numa cidade grande e violenta num futuro próximo. Uma cidade em que a polícia é inimiga, o governo é inimigo, todos são inimigos. E então surge um grupo de oprimidos que fazem justiçamentos. Saem matando quem faz mal às pessoas parecidas com eles.

O Brasil de 2020 poderia render um livro. De qual gênero, na sua opinião?

Com certeza seria um livro de terror e de violência. Esse livro que estou escrevendo nasceu muito do clima de 2020. Do clima de medo, de impotência e, acima de tudo, de raiva. 


CHICO FELITTI INDICA 
Três livro-reportagens incríveis lançados no Brasil

O Holocausto Brasileiro, da Daniela Arbex
“Uma obra-prima de texto e uma obra ainda maior de humanidade, ao recontar a tristíssima história de o que o Brasil fez com centenas de milhares de pacientes de instituições psiquiátricas”. 

A Grande Luta, do Adriano Wilkson
“Um livro super delicado em um universo bem do bruto. O Adriano acompanha a vida de um lutador de MMA de várzea, que está tentando ganhar a vida com a luta, mas é uma batalha dura”. 

A Menina da Montanha, da Tara Westover
“É um livro com as memórias de uma mulher que cresceu em uma família fanática religiosa no meio dos EUA nas décadas de 1980 e 1990. Para se ter uma ideia, ela só aprendeu a ler quase adulta. Mas, mesmo assim, chegou à universidade de Oxford. Mas não se deixe enganar, não é uma história de superação, é um livro que expõe as entranhas de uma família de um jeito cru que eu jamais tinha lido”. 

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