Um papo com Bárbara Cunha, diretora de Deus É Mulher, exibido em Cannes

Coprodução com a Colômbia e a Estônia, o filme apresenta Alexya Salvador, primeira pastora trans da América Latina

BARBARA CUNHA
Pernambucana leva documentário em produção para Cannes (Foto: Divulgação)

Um dos maiores celeiros do cinema brasileiro, Pernambuco está presente no Festival de Cinema de Cannes com a diretora Bárbara Cunha e seu filme Deus é Mulher, no Docs in Progress, espaço dedicado a apresentar documentários. O longa-metragem é uma coprodução com a Colômbia e a Estônia e apresenta Alexya Salvador, primeira pastora trans da América Latina, abordando a luta da reverenda em democratizar o direito à fé em comunidades religiosas excluídas. “Ela faz parte da parcela mais excluída e mais violentada pelo governo federal”, afirma a cineasta.

Cunha não poderia ter momento mais oportuno para contar fazer essa história, quando várias trans têm sido mortas e vítimas de violência em Pernambuco, com destaque para Roberta Silva, queimada viva no centro do Recife. Ela faleceu após alguns dias internadas num hospital público da cidade. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. No ano passado, 237 LGBTQIA+ morreram no país, de acordo com dados do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).

O Docs in Progress, do qual Cunha participa da edição deste ano, integra o Circle Doc Women Accelerator, laboratório para projetos dirigidos por mulheres no Marché du Film, parte comercial de Cannes. Funciona como uma espécie de vitrine para que os filmes busquem parcerias internacionais para financiamento, coprodução e outras conexões.

Após ter tido sua edição presencial cancelada no ano passado devido à pandemia, o festival celebra o melhor do cinema mundial. E agora, após ter sido adiado de maio para julho, em um momento de menor risco causado pela pandemia, o evento teve início no dia 6 e segue até dia 17 de julho. O uso de máscaras ainda é obrigatório em todo o festival, assim como testes para Covid-19.

“O cinema, a cultura brasileira e os artistas estão sendo dizimados”, lamenta Cunha. Sua fala está em consonância com Spike Lee, que citou Jair Bolsonaro e o chamou de “gângster”, na abertura do evento. O cineasta americano preside a banca de júri da 74ª edição e também é o primeiro negro a ocupar esse posto. Nesta edição, Pernambuco é representado no júri por Kleber Mendonça Filho.

A diretora luta pela equidade de gênero no audiovisual e integra o grupo Mulheres do Audiovisual Brasil, tendo seus filmes a busca por entender o papel da mulher na sociedade contemporânea. Ela dirigiu curtas e séries, além do longa Flores do Cárcere, com Paulo Caldas.

Direto do balneário francês de Cannes, Bárbara Cunha concedeu entrevista, por telefone, sobre Deus é Mulher, inspirações e a atuação das mulheres no cinema. Leia, a seguir, a conversa com a diretora:

Como está o clima no Festival de Cannes após uma melhora da pandemia aí na Europa?

Tudo bem, uma maratona. Tá bom poder ver filmes no cinema e estar nessa bolha de esperança. Aqui está muito mais salutar do que o Brasil.

Qual o clima político do festival, após as falas de Spike Lee, Kléber Mendonça Filho, Karim Aïnouz, com seu filme O Marinheiro das Montanhas na seleção oficial, além de outros artistas sobre o posicionamento do governo brasileiro em relação às artes?

Todo mundo que pode e tem consciência política, independente de onde esteja seu pensamento político, entende que o cinema, a cultura brasileira e os artistas estão sendo dizimados por esse governo. Então, todo mundo tá reagindo: a fala de Kléber eu não vi, porque eu não tinha chegado, mas vi a repercussão online e estava na sessão do Karïm e foi belíssimo. Ele começou com uma fala muito bonita sobre o direito à cultura e à liberdade, fez uma abertura e costurou também o que ele queria dizer sobre o filme dele. No final, vários cineastas brasileiros se juntaram ali pra fazer aquele protesto, que demorou um tempão, batendo palmas, todas revoltados.

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Barbara Cunha apresenta Alexya Salvador, a primeira reverenda trans da América Latina (Foto: Divulgação)

Como é a sua participação no Docs in Progress?

O Docs in Progress é um espaço para filmes em produção e finalização. São projetos que já estão com grande parte filmada, mas ainda precisam de parceiros e fundos. A ideia é apresentar o projeto para potenciais parceiros para o filme ser finalizado. Há um pitching que é um espaço bem diferente, na sala de cinema, num espaço de conferência para toda a comunidade de documentaristas. Não é aberto ao público, é somente pra quem tem credencial para esse mercado que pode assistir. Há uma lista imensa de artistas do mundo inteiro. É um pitching de três minutos mais dois minutos para exibir nosso material filmado. Então, é um espaço bem diferente, não dá pra gente fazer protesto, até porque só tem três minutos pra apresentar, porém, dentro da minha fala e do meu projeto, obviamente, tudo vai contra esse governo. Minha protagonista é uma mulher negra trans, que foi ordenada reverenda em 2020. Dessa forma, ela faz parte da parcela mais excluída e mais violentada pelo governo federal. Óbvio que dentro da minha fala, haverá uma fala política, mas não necessariamente um protesto, porque o meu tempo precisa ser aproveitado para eu conseguir caminhar com o meu filme.

Como as mulheres enxergam e como elas veem o cinema é também uma forma política de se colocar no mundo.

Em que etapa de produção está o “Deus é Mulher”? Já há previsão de lançamento?

Estamos na fase final de produção, em que a gente precisa de uma verba final pra poder concluir o filme. Nossa previsão é que em março do ano que vem, saia o primeiro corte já pra entrar em finalização. Se tudo der certo, nossa meta é estar circulando no meio do ano inscrevendo em festivais.

Como você conheceu a sua protagonista, a Alexya Salvador? E o que pode adiantar da história que você vai contar no filme?

Na EBC [Empresa Brasil de Comunicação], estou com uma série documental para o público infantil chamada Borboletas e Sereias. Nessa produção, eu trabalho a questão da construção da identidade na infância e, dentro desse escopo de personagem, eu tinha crianças trans, crianças não binárias, crianças com identidades fluidas e uma delas era a filha de Alexya, a Ana Maria. Alexya tem duas filhas trans adotadas e mais um garoto cis. Filmamos a série em 2017 e, finalmente, por falta de agenda, não conseguimos filmar com Ana Maria e essa história ficou viva em mim, achei que era uma família extraordinária, com potencial de luta, ativismo e resiliência e não poderia deixar de ser filmada. Então, fiz uma proposta pra Alexya de fazer um filme sobre ela, incluindo as crianças também. A narrativa do filme vai principalmente seguindo Alexya por alguns anos e suas transformações, tudo o que ela passa com esse corpo dentro desse país de 2018 pra cá. É um filme que aborda essa mulher que foi pioneira em tantos aspectos para a comunidade LGBTQIA+ e, principalmente, para as outras transfeministas.

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 Cunha ao lado de Paulo Caldas, com quem divide a direção de Flores do Cárcere (Foto: Divulgação)

Na sua avaliação, há um crescimento do protagonismo das mulheres na função de diretoras no país?

Vejo que tem muito caminho pela frente. Hoje, há um olhar mais atento, mais união. As mulheres também buscaram formas de se organizar na sociedade civil, em coletivos, grupos e instituições para se fortalecerem. Nos últimos dados da Ancine [Agência Nacional do Cinema], até 2018, 21% das produções brasileiras eram dirigidas por mulheres. Houve sim uma mudança, está em processo, em construção, mas ainda tem um longo caminho pela frente, que é preciso uma identificação dessa problemática em toda indústria cinematográfica, para assim, ter uma mudança: mais mulheres curadoras, em bancas de seleção, na pesquisa, na academia e mais mulheres em cargos de poder e decisão na equipe de um filme. Esse é um lugar político, não por uma questão de equidade. É muito mais uma questão de multiplicidade, diversidade de olhar, de construir um olhar que a gente teve durante muito tempo e que foi passado por homens. E que ótimo, foi bom, mas existe outra ótica.

Como as mulheres enxergam e como elas veem o cinema é também uma forma política de se colocar no mundo. As mulheres encaram a história de um jeito, os homens de outro e cada pessoa tem a sua identidade e a sua história de vida e isso vai se manifestar na arte de cada um. A luta por essa equidade é uma luta por um direito político de mostrar um ponto de vista outro e não aquele que a gente já viu tanto e está tão acostumado a ver.

Você integra o Grupo Mulheres no Audiovisual Brasil. Qual o intuito dessa iniciativa?

O grupo Mulheres do Audiovisual Brasil é um coletivo fundado por Malu Andrade, em torno de 2017, com o intuito de formar, apoiar, divulgar e lutar pelas mulheres atrás e na frente das câmeras também. Então, é um coletivo de formação, apoio, colaboração, discussão de oportunidades para outras mulheres. O objetivo é bem claro: nós mulheres unidas podemos conseguir uma luta coletiva do que uma a uma buscando o seu caminho. Estamos num processo de buscar ampliar, celebrar e destacar o trabalho das mulheres não apenas que estão na produção e na direção, mas em todos os espaços da indústria audiovisual.

Como define o seu cinema e quais são os seus principais interesses?

O meu cinema busca entender o lugar da mulher na sociedade e, principalmente, no mundo em que estou inserida na contemporaneidade. As pautas e os caminhos que busco são das mais variáveis possíveis, mas sempre – nos trabalhos que eu fiz e nos que ainda tô desenvolvendo – são pautas femininas. Não são necessariamente feministas, mas geralmente são femininas e feministas. Meu longa Flores do Cárcere, por exemplo, está no streaming e trata de mulheres que superaram a situação de cárcere e transformaram as suas vivências. Tenho essa série sobre identidade e fluidez de gênero na infância e um piloto de série na televisão. Minha pesquisa é pra entender onde estamos e onde podemos chegar. Deus é Mulher é meu próximo longa em documentário, tenho ainda Menino Noiva, uma ficção sobre o casamento infantil no Nordeste do Brasil e outros projetos na agulha sempre com esse escopo de temáticas que me atravessam e, através dessa produção, ler um pouco o meu entorno.