Mac DeMarco
Guitar
Mac’s Record Label, 2025. Gênero: Rock, Indie
Percebo certa indisposição com o trabalho de Mac DeMarco nos últimos anos. Claro, muito por sua “responsabilidade”, já que a cada trabalho o artista canadense foi se afastando de alguns tropos que o fizeram ser um dos artistas mais relevantes do meio indie dos anos 2010. Essa suposta indisposição me parece ter duas faces críticas. A primeira, a de que a obra de DeMarco foi se tornando monótona ao passar dos anos, e perdeu seu brilho juvenil que um dia possuiu. A outra, a de que DeMarco não cansa em se repetir a cada trabalho.
Paradoxal, de fato, aceitar as duas como observações válidas, já que cada uma delas aponta para diagnósticos diferentes das possíveis enfermidades que acometem sua obra. Particularmente, não vejo verdade em dizer que a paleta de sons de DeMarco não mudou nos últimos anos.
Basta revisitar 2 (2012), segundo trabalho de sua carreira – e que pode até ser considerado um primeiro disco por estabelecer os fundamentos estéticos que o coroaram príncipe indie da década. Com aspecto caseiro, gravações sujinhas, guitarras derretidas e um discurso cínico, de humor cotidiano e meio nonsense, o trabalho aparenta querer parecer descontraído, desimportante e desleixado.
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É claro, toda essa plasticidade funcionou bastante, e ganha seu ápice de crítica e público em Salad Days (2014). Aqui DeMarco parece conseguir tudo o que havia tentado até então. A indulgência nesses dois trabalhos parece preencher um lugar esquisito, já que essa aparência “bem-humorada” e desleixada – bastante comum no meio indie da época, inclusive – faz gerar certo paradoxo: há manutenção de um autodesprezo, ao mesmo tempo de um apreço profundo em parecer descuidado.
This Old Dog (2017), por outro lado, possui temática mais íntima e aponta para um apuro estético de suas influências, o que de certo modo, puxa DeMarco para fora dessa anomalia. Era meu particular favorito, até então, sobretudo, por marcar um ponto de virada na sua carreira ao aproximá-lo à delicadeza mínima invés do desleixo descolado. Here Comes The Cowboy (2019) me aparenta ser seu único deslize, justamente por acreditar não conseguir desenvolver nada além do já explorado no disco anterior.
Fica claro, desse modo, que seus primeiros anos de carreira foram marcados por passos específicos na construção de sua obra. Evidentemente, Mac possui um estilo específico de compor, o que aproxima muitas das faixas, mas nem todas as intenções parecem estar no mesmo lugar de seu coração. Sobretudo a virada em This Old Dog (2017), que demonstrava um compositor um pouco mais angustiado consigo mesmo do que em seus primeiros discos.
A dobradinha de álbuns Five Easy Hot Dogs e One Wayne G, ambos de 2023, deixa clara a vinda de uma mudança. O primeiro, um álbum instrumental, absolutamente despretensioso para uma volta depois de seu maior intervalo sem lançamentos – 4 anos -, evidencia uma busca de Mac por uma outra dinâmica de atenção à sua obra. Na medida em que o trabalho não necessariamente desenvolve novos caminhos para seu catálogo, assenta um lento andamento e atenção ao timbre e harmonia indistinta de trabalhos anteriores. Pode não empolgar tanto, mas possui valor na sua redescoberta estética, talvez.

O caso de One Wayne G ganha força pela relevância na indústria, sobretudo, porque inverte lógicas comuns. Ele despeja seu HD, abre um processo criativo. Praticamente desmonta seu próprio mistério. Veja, não significa dizer que tudo ali é relevante, bom ou ruim. Classificações como essa escapam do ponto.
O grande mercado fonográfico constantemente aposta na saturação hiperproduzida, em montagens absolutamente plásticas que se tornam desinteressantes por seu apuro, totalmente maquínico, de soar “bem” em tudo quanto é formato. Lançar, indiscriminadamente, 199 faixas “inacabadas” possui um valor expressivamente humano nesse contexto, especialmente, pela liberdade e vontade do simples fazer, e dar escolha ao ouvinte de ouvir ou, basicamente, ignorar.
Mac, neste sentido, acumulou os restos de seu próprio processo e jogou ao mundo na mesma naturalidade que os concebeu. Sem o peso dos gigabites amontados e de algumas histórias por ele mesmo mal-contadas, um próximo trabalho seria, inevitavelmente, um recomeço. Fica evidente, então, que a segunda face crítica levantada parece ter mais fundamento: DeMarco deve ter perdido seu viço. Sua monotonia, entretanto, parece fazer parte de um tipo de investigação estética de Mac, uma que ganha contornos em seu último lançamento, Guitar, que acaba de sair este ano.
Seu fantasma senta comigo
Já de início, tudo parece estar em seu lugar. A bateria mínima, o baixo seco. A voz de DeMarco em “Shining” se apresenta crua, em falsete modesto. Aos poucos, sua presença vai se delineando cada vez mais clarificada. Sua antiga imagem, antes distorcida pelo chorus e synths desafinados, e do cartunesco humor, começa a parecer cada vez mais uma sátira de si mesmo, um escudo para sua própria melancolia. Não consigo deixar de ver Guitar como esse espelho quebradiço, sob o qual Mac direciona seu olhar. Um trabalho quase autorreferencial, mas absolutamente despido da plasticidade do início de sua carreira.
“Sweeter”, por exemplo, soa cínica e muito pode ser lida a partir do próprio fazer criativo de Mac, ao passo que comenta uma relação com tons muito precisos de resignação: “This time will be sweeter / I can be much sweeter / Some things never change” (“Desta vez será mais doce / Eu posso ser muito mais doce / Algumas coisas nunca mudam”, em tradução livre). Outra na mesma toada é a derradeira “Rooster”: “Things are looking kinda used up / Darling, I don’t mind / Long as we still got each other” (“As coisas parecem meio desgastadas / Querida, eu não me importo / Contanto que ainda tenhamos um ao outro”).
Neste caso, funcionam não somente como narrativas e cenas liricamente muito bem montadas, mas também como paralelos à construção artística de Mac DeMarco, que de certa forma, passa a se relacionar com a ideia de reciclagem e repetição. Pouco importa se ele as concebeu ambiguamente como comentários acerca de sua própria obra, fato é que relações são possíveis de serem estabelecidas, o que por si, já as engrandece.
Além de escritas muito sutis e delicadas, Guitar parece ter consciência de sua própria monotonia, da semelhança entre suas faixas, e isso não aparenta incomodar sua estrutura, tampouco gera direções adversas como tentativa de fuga dessas semelhanças. Nesse caso, Mac faz até questão da indistinção e minimalismo, vide a própria intitulação do trabalho: mero instrumento, que qualquer um pode utilizar.
Nítida, por outro lado, é a transformação lírica de DeMarco. O artista se desprende daquele humor peculiar do início de carreira para aqui delinear temas de irresolução, emoções e cenas um tanto específicas, mas de sentimentos muito relacionáveis. O contraste da leveza monótona do instrumental com a desesperança e resignação de suas palavras trazem ao trabalho uma atmosfera única. O espaço é de conforto, mas nessa simplicidade, se ressaltam as grandes dores de se relacionar e estar vivo.
Seu minimalismo formal permite uma espécie de emancipação individual de Mac. Por isso, não consigo deixar de ver faixas como “Rock and Roll” como reflexões sobre si mesmo: “Rock and roll, I must be dreaming / No control over my feelings for that boy / I’m down here screaming, overjoyed / But still can’t help feeling down / Down, down” (Rock and roll, devo estar sonhando / Sem controle sobre meus sentimentos por aquele garoto / Estou aqui embaixo gritando, muito feliz / Mas ainda não consigo evitar me sentir mal / Mal, mal). E ainda intenta lidar com a própria permanência, das dores e escolhas que o levaram até seu próprio presente, como na beatleniana “Home”: “there are faces and names / that have memories attached, that I’d sooner let go” (há rostos e nomes / que têm memórias anexadas, que eu preferiria deixar ir).
Em Guitar não há ornamentos. Pode parecer que DeMarco simplesmente não arranjou suas composições, não se dedicou a torná-las mais chamativas ao público. Vejo valor cultural nisso. A monotomia tem uma valiosa contribuição à música, sobretudo quando tematicamente articulada. Guitar faz tudo isso, e ainda traz um tipo de tensão rara: aquela em que se espera que algo vá acontecer. Simplesmente não acontece, e ficamos alheios, sozinhos com o vazio que DeMarco deixou para que lidemos.
Entretanto, resignação parece ser, tematicamente, talvez o fator mais relevante para o trabalho. São múltiplos os exemplos em que DeMarco versa sobre: “i’m a wandering terror / That’s just how i was designed” (“Eu sou um terror errante / É assim que fui projetado”) em “Terror”; “All your cures, been put away / You’ve no control now” (Todas as suas curas foram guardadas / Você não tem controle agora) em “Nothing At All”; “Curse / Carried on forever in me / Curse / From which I may never free” (Maldição / Carregada para sempre em mim / Maldição / Da qual nunca poderei me libertar), em “Holy”.
Essa resignação está igualmente expressa em seu instrumental, simples e monotemático. Por mais paradoxal que isso seja, é aí que está o grande exercício de “Guitar”: a gerência de conforto e tensão. É o que a obra traz, de forma sutil. Seu fantasma simples, eterno retorno de estrutura, mesmo assim, assombroso a seu modo. Quase parece que toda a pompa humorada do início de sua carreira foi piada de mal – ou muito bom – gosto. Uma grande sátira de sua própria carreira, ou não, o fantasma do velho DeMarco é que assombra muita gente. Ele mesmo, já o superou há tempos.
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