A ESTÉTICA DO PLÁGIO EM TOM ZÉ
“Terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada”, diz o músico
Por Leonardo Foletto e Marcelo De Franceschi
Do Baixa Cultura
Inovador é o adjetivo mais usado hoje quando se refere a Antônio José Santana Martins, o multi-instrumentista e compositor conhecido como Tom Zé. De fato, parece ser a única alternativa a ser escolhida para nomear o estranhamento causada por sua música, que contém elementos excêntricos, populares e ao mesmo tempo “sofisticados”. Sons de instrumentos como batedeira elétrica, enceradeira, esmerilhador, liquidificador e tubos de PVC estão presentes nas suas obras desde os anos 1970.
Porém, naquela época de costumes rígidos e ditaduras, seus experimentalismos eram vistos de modo atravessado. No show do álbum Correio da Estação do Brás, de 1978, ele começa a usar os denominados “insTrOMZÉmentos” – cuja origem é contada nessa matéria que faz um bom apanhado de sua carreira – de maneira algo inusitada: a partir de um pedido de sua mulher, Neusa, para consertar uma enceradeira que estava com defeito. Tanto consertou que se apaixonou pelo som do aparelho e descobriu que outros aparelhos da mesma estirpe poderiam tirar um som igualmente interessante.
Em 1998, o músico baiano resolveu escancarar suas ideias sobre plágio e composição com o texto “Estética do Plágio“, encontrado no encarte do disco Com Defeito de Fabricação. Nele, Tom Zé vê o compositor como um plagicombinador que “passa pelo trabalho de outros e se apropria, muitas vezes inconscientemente, de fragmentos (coisas); e, a partir destas apropriações, associadas a outras, terá condições de produzir seu repertório”, como analisa Demétrio Panarotto, mestre em literatura brasileira pela UFSC e vocalista da banda Repolho, neste artigo.
Abaixo, o trecho do encarte em que Zé descreve sua ideia:
A Estética do Plágio
A Estética de Com Defeito de Fabricação re-utiliza a sinfonia cotidiana do lixo civilizado, orquestrada por instrumentos convencionais ou não: brinquedos, carros, apitos, serras, orquestra de Hertz, ruído das ruas, etc. , junto com um alfabeto sonoro de emoções contidas nas canções e símbolos musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva. A forma é dançável, rítmica, quase sempre A-B-A. Com coros, refrões e dentro dos parâmetros da música popular.
O aproveitamento desse alfabeto se dá em pequenas “células”, citações e plágios. Também pelo esgotamento das combinações com os sete graus da escala diatônica (mesmo acrescentando alterações e tons vizinhos) esta prática desencadeia sobre o universo da música tradicional uma estética do plágio, uma estética do arrastão (**).
Podemos concluir, portanto, que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada.
** Arrastão: Técnica de roubo urbano, inaugurada em praias do Rio de Janeiro. Um pequeno grupo corre violentamente através de uma multidão e “varre” dinheiro, anéis, bolsas, às vezes até as roupas das pessoas.
A própria palavra plagicombinação é consequência de um arrastão de Tom Zé que forma um neologismo por aglutinação. As 14 faixas do disco conceitual Com Defeito de Fabricação estão cheias desses neologismos, ao melhor estilo Guimarães Rosa: cedotardar, esteticar, politicar, xiquexique, blacktaiando, smoka-se, tangolomango. Todos essas “palavras novas” foram analisadas num artigo de três estudantes de Letras na Revista Pé da Letra, com direito a explicação de como cada uma é formada – junção de sufixo tal com radical X, adaptação de palavra estrangeira com prefixo Y.
Tom Zé não só pegou o que já tinha de palavras e sons, mas também entregou sons para o ouvinte/espectador formar músicas novas. O álbum Jogos de Armar (Faça você mesmo) lançado em 2000 traz, junto a outras 14 músicas inéditas num primeiro disco, um CD auxiliar: o Cartilha de Parceiros, só com as bases para que o ouvinte faça a sua música/intervenção. Quase um Duchamp diminuindo por gosto a distância entre público e autor, entregando sua música ready-made pra galera montar e desmontar feito lego, como bem compara Julio Cesar Lancia em Cut, Copy and Paste – da reciclagem ao LEGO® em música.
As 11 faixas deste são feitas novamente com os instromzémentos: “a orquestra de herz ou hertzé (uma espécie de “sampler pré-sampler”), o enceroscópio (feito com enceradeiras, aspiradores de pó, liquidificadores), a serroteria (um dispositivo feito com canos de madeira, PVC e outros materiais), o buzinório (um conjunto de buzinas manejadas num teclado) e as canetas Lazzari (pequeno instrumento formado por esferográficas)”.
É com Defeito de Fabricação e Jogos de Armar que Tom Zé volta a excursionar mundo afora e é conhecido por uma nova geração no Brasil. Como se sabe, o compositor foi um dos cabeças da Tropicália, nos fins dos 1960, mas passou boa parte das décadas de 1970 e 1980 no ostracismo hermético-nacional, só sendo redescoberto no final da década de 1980, quando David Byrne [mais aqui], ex- Talking Heads, lança pelo seu selo Luaka Bop duas coletâneas do trabalho do compositor baiano – Brazil Classics 4: The Best of Tom Z (1990) e Brazil 5: The Return of Tom Ze: The Hips of Tradition, de 1992, disco em que finalmente recoloca Zé como um dos mestres da música brasileira.
Com 75 anos completos no último 11 de outubro de 2011, Zé já tem uma longa carreira com 18 discos, que podem ser (quase todos) baixados no Um Que Tenha, e continua na ativa em shows, com uma azeitada banda que segura muito bem ao vivo e garante a sala para o mestre desafi(n)ar o público.
Pra encerrar essa breve digressão sobre Tom Zé e o plágio, vale assistir o vídeo abaixo. É um causo imperdível sobre a música “Se o Caso é Chorar“, de 1972, uma composição em que o músico mostra, passo a passo e numa didática curiosa, como (re)criou uma composição só pegando trechos de outros (Antônio Carlos e Jocafi, Caetano Veloso, Nélson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues).
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