Super-heróis no divã

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SUPER-HERÓIS NO DIVÃ
Ícones da cultura pop, esses personagens fantasiados acompanharam as transformações na sociedade no último século no Ocidente. Hoje vivem crise criativa e enfrentam o problema de renovação de leitores

Por Paulo Floro
Da Revista O Grito!

Desde que Superman apareceu numa revista periódica vestindo sua apertada fantasia vermelha e azul e dando longos saltos entre prédios (ele ainda não voava nesse primeiro momento), que os super-heróis mexem com o imaginário popular e influenciam a cultura do Ocidente. Presentes em diversas mídias, se tornaram nas quase oito décadas de existência uma poderosa máquina de produzir dinheiro, com números que impressionam em quantidade de exemplares vendidos e mais recentemente, em bilheteria nos cinemas e em royaltes de merchandising. Produtos intrinsecamente ligados à cultura norte-americana, são estudados por seu poderio simbólico, que para críticos, superam em muito os superpoderes que mostram nas histórias. Representariam um discurso imperialista baseado na velha luta contra o mal, que por vários momentos mudou de representação: o nazismo nos anos 1940, os comunistas nos anos 70 e 80 e atualmente, o terrorismo. O meio acadêmico passa a ver esses personagens uniformizados com um olhar histórico e se apoia na filosofia, sociologia e até teologia para buscar entender o que os super-heróis representam para a sociedade de nossa época e no que eles foram importantes nas transformações vividas no século passado. Já os editores se debruçam sobre outro problema. Os quadrinhos vivem uma crise criativa sem respaldo da crítica e sofrem com o problema de renovação de leitores.

Uma cueca por fora das calças
Os quadrinhos já eram consumidos em larga escala desde o início do século 20, através das tiras de jornais como Yellow Kid, Flash Gordon, de Alex Raymond, entre outros. Mas foram as revistas periódicas de super-heróis que sedimentaram o gênero dos quadrinhos como um entretenimento de massa. As tiras eram distribuídas pelos syndicates, agências especializadas que as vendiam para jornais de todos os EUA. Com as revistas, os personagens conquistaram o público infantil, que agora não dependiam do jornal dos pais para acompanhar suas histórias preferidas. Essas revistas tinham suas origens nos pulps, folhetins publicados em papel barato e tinham um apelo maior para os pequenos do que a narrativa de três quadros das tiras.
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Para os pesquisadores Carlos Patati e Flavio Braga, autores do Almanaque dos Quadrinhos, a expansão do gênero dos super-heróis nas revistas representou uma simplificação ideológica das HQs, que levava o leitor a identificar o herói não só na primeira página, mas no primeiro quadro, com a ajuda dos chamativos uniformes coloridos. As histórias exploraram à exaustão a ideia da dicotomia bem contra o mal. Num período anterior, algumas tiras conseguiam trabalhar com roteiros mais realistas, a exemplo de Agente Secreto X-9, um herói não uniformizado escrito por Dashiel Hammett, autor do bestseller O Falcão Maltês. Outras traziam traziam um texto elaborado, com influência da literatura.

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Anúncio da revista mensal do Batman: formato ajudou a popularizar o gênero dos super-heróis (Divulgação)

O primeiro herói mascarado surgiu nos jornais, o Fantasma, de Lee Falks, em 1936. Sucesso nos diários americanos, o personagem, a exemplo de Mandrake e outros, teve compilações em formato revista, mas ainda tendo o público adulto como alvo. Os criadores do Superman, Jerry Siegel e Joe Shuster tentaram seguir o mesmo caminho ao tentar vender a ideia para editores de jornais. Ouviram recusas com a alegação de que o público não aceitaria algo tão inverossímil como um homem com superpoderes. Eles foram encontrar nas crianças um meio mais fértil para crescer e transformar o negócio numa explosão global. O famoso herói inaugurou em 1938 uma nova publicação, a Action Comics, ainda hoje em circulação no mercado norte-americano. “As histórias faziam uma mistura de vários gêneros que já eram sucessos na imprensa, a fantasia, o policial e a aventura”, analisa Marco Tulio Vilela, historiador e pesquisador de quadrinhos, autor de Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula (Editora Contexto). “Os roteiros trabalham com as frustrações do leitor, um estilo escapista que causou empatia imediata com o público. Trata-se de um arquétipo idealizado do ser humano”, diz.

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Aumento da criminalidade gerou obras com forte teor político, como Watchmen (Divulgação)

A ideia de ter uma identidade secreta e possuir um superpoder falava diretamente com as necessidades dos leitores da época, interessados em histórias menos realistas. No final da década de 1930 e início dos 40, os comics, como ficaram conhecidas as revistas em quadrinhos se tornaram sucesso de vendas, o que levou editores a encomendarem outros personagens fantasiados. A criação de Batman um ano depois do Superman, por Bob Kane, polarizou o combate ao crime com um visual mais soturno e histórias mais violentas, incluindo alguns assassinatos por parte do protagonista. A partir daí teria início a indústria que se tornaria um mercado competitivo anos mais tarde com a chegada da Marvel Comics, casa do Quarteto Fantástico, X-Men e Homem-Aranha.

Heróis estrelados
Até a década de 1940, existia no mundo um vilão muito conhecido e temido, o nazismo, e isso não passou em branco na indústria dos comics. O Capitão América, um soldado que vestia um uniforme com as cores da bandeira dos Estados Unidos foi criado em 1941 e logo depois apareceu em uma revista própria esmurrando a cara da personificação do mal, Adolf Hitler. Mais icônico, impossível. “É possível fazer um estudo das transformações na sociedade através dos super-heróis”, diz Nadilson Silva, Doutor em Sociologia e pesquisador Nadilson Silva, da Universidade Católica de Pernambuco. “Esse gênero explora o imaginário de poder e isso mudou através das épocas, passando do nazismo para o combate ao comunismo no período da Guerra Fria, chegando hoje a uma atualização dos dilemas trazidos pelo terrorismo do mundo muçulmano”. “Os heróis estão sempre combatendo o mal, que pode ter uma representação simbólica, como seres de outros planetas até versões mais explícitas”, acredita.

Numa outra leitura, Túlio Vilela enxerga o período da Guerra Fria como um momento onde as histórias puderam explorar a ambiguidade. Foi um momento de queda das vendas das revistas, o que seria revitalizado com o surgimento dos super-heróis da Marvel nos anos 1960, que exploravam o universo adolescente e as origens pseudocientíficas para os superpoderes, a exemplo do Homem-Aranha, um nerd franzino que ganha dons sobre-humanos após ser picado por uma aranha radioativa. O Quarteto Fantástico faz alusão à corrida espacial entre EUA e União Soviética ao falar de uma família que consegue poderes após uma exploração espacial. Hulk remete ao uso da energia nuclear e suas implicações. Num acidente em uma usina que utilizava raios-gama, o cientista Bruce Banner não ganhou deformações nem câncer, mas se transformou num monstro forte e indestrutível, mas sem controle. Os X-Men, grupo de superseres nascidos com mutações que lhe conferem poderes fazem uma leitura do preconceito sofrido pelas minorias ao defender um mundo que os hostiliza.

Na DC, casa de Superman e Mulher-Maravilha, roteiristas como Alan Moore, Dennis O’Neil e Neal Adams exploraram nos anos 1970 e meados dos 80 tramas com temáticas da vida real, como drogas, miséria e racismo. “As HQs acompanharam o crescimento do público. A cada década as histórias e os personagens são reformulados e por isso eles raramente envelhecem”, diz Viana.

O aumento da criminalidade gerou histórias mais violentas a partir dos anos 1980, como Batman O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e culminaram com textos mais adultos e de forte teor político, a exemplo do clássico Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. “Foi também neste momento que os super-heróis passaram a perder público novamente, desta vez por conta da competição com outras mídias, entre elas a televisão e atualmente, a Internet, que se tornaram entretenimento de massa mais atraentes”, analisa Tulio. A indústria dos comics não demoraria a ganhar o mundo, com maior ou menor inserção, dependendo da influência que exerceram na imprensa local. No Brasil, os super-heróis estão presentes desde os anos 1940, com as publicações da editora Ebal, como detalha o escritor Gonçalo Júnior no livro A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras). Seguiram durante longos anos catequizando o leitor de quadrinhos, chegando a ser sinônimo do gênero, ainda que outros tipos de histórias, entre elas o terror, competissem por leitores. Nos anos 1980 e 90, a editora Abril dominou as bancas com o apelo colecionável de suas revistas mensais. Mas, uma nova crise se avizinhava. Os leitores cresceram mais uma vez.

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X-Men First Class é bom exemplo de como os super-heróis podem ter sobrevida nas telonas

A morte lhe cai bem
Depois de décadas inundando as bancas com lançamentos, o futuro dos quadrinhos de super-heróis pode estar nas livrarias, com material mais caro e de melhor acabamento. É o que acredita profissionais da área e jornalistas que cobrem HQ. “O leitor mais jovem tende a priorizar o mangá, o quadrinho japonês. As revistas de super-heróis passam, então, a dialogar com os adultos, com maior poder aquisitivo”, explica Paulo Ramos, jornalista e doutorando em Filologia e Linguística pela USP, autor de A Leitura dos Quadrinhos (Contexto) e Bienvenido- Um Passeio Pelos Quadrinhos Argentinos (Zarabatana). A maior crise de público aconteceu nos anos 1990, quando a editora Abril entregou os pontos e desistiu de publicar quadrinhos. A multinacional Panini há oito anos trouxe estabilidade, qualidade editorial e mais fidelidade aos originais, que os heróis não tinham antes. Ultimamente, enfrentam críticas de público e crítica. “A morte tirou o crédito das histórias do gênero. Todos sabem que o personagem vai voltar daqui a pouco. Existe hoje uma crise criativa e não é das pequenas”, segundo Sidney Gusman, fundador do Universo HQ, principal fonte de informação dos quadrinhos no Brasil. O problema do envelhecimento do público, que foi driblado em décadas passadas, começa a afetar a indústria. “Não há renovação. As histórias hoje estão intricadas com a cronologia, não dá margem para o leitor ocasional entender. Marvel e DC estão olhando para o próprio umbigo, com sagas que nunca terminam”, diz Gusman.

As comics passaram a abastecer Hollywood e os heróis agora prosperam em novos formatos e públicos, como videogames. Desde o início dos anos 2000, depois de um longo período de produções fracassadas, que novas franquias conquistaram plateias e críticos, como Homem-Aranha (três continuações), Batman, do diretor Christopher Nolan, Quarteto Fantástico e até o controverso Hulk. Essa popularidade nas bilheterias não chegaram a trazer novos leitores para as revistas em quadrinhos regulares, hoje mais ligado a um público adulto e colecionador. “Esse incremento das adaptações pode ser explicado pela necessidade da indústria em se apoiar na popularidade dos super-heróis para atingir o público mais jovem”, diz o crítico e doutor em Cinema pela Universidade de Sorbonne, Alexandre Figueirôa. “É natural que hoje com a convergência midiática não se pense na criação de personagens apenas para serem veiculados num único suporte”.

Se a indústria dos comics, curiosamente, sobrevive no cinema, esse leitor nem sempre migra para o bom e velho gibi. “A procura pelos personagens tende a aumentar durante a exibição de seus respectivos filmes. Depois, as vendas sofrem pequeno reassentamento. Em alguns casos, temos uma retenção de novos leitores”, explica o editor-senior da Mythos Editora, que edita as HQs na Panini, Levi Trindade. Como principal personagem desse novo momento, Levi também tem sua opinião para o futuro do gênero. “Os jovens estão mais concentrados nas novas tecnologias, principalmente redes sociais. Acredito que todas as editoras vão ter que repensar sua forma de trabalhar. Quadrinhos digitais podem ser um via pra alcançar esse objetivo”, arrisca.

A reportagem foi publicada originalmente na edição de maio da Revista da Cultura, pelo próprio autor.