“A Sociedade da Neve” retrata o poder da coletividade pela sobrevivência 

Sucesso no Netflix e indicado a dois Oscar, filme foca mais nas reflexões e menos no espetáculo da tragédia em narrativa que destaca mortos e sobrevivência

Society of the Snow lead
Divulgação.
“A Sociedade da Neve” retrata o poder da coletividade pela sobrevivência 
4.5

Sociedade da Neve
J. A. Bayona
ESP, 2024. 2h24. Gênero: Drama. Distribuição: Netflix
Com Enzo Vogrincic, Agustín Pardella e Matías Recalt


A humanidade não é nada sem a humanidade. Assim como a maioria dos seres vivos da terra, o ser humano precisou desenvolver um senso de coletividade ao perceber que isto determina a sua sobrevivência. Em situações extremas, quando a existência se coloca em ameaça, tal senso se comprova. No longa A Sociedade da Neve (2024), recente sucesso da Netflix, para que a vida prospere, cada um importa, tanto os que permanecem vivos quanto os que se foram.

O filme foi disponibilizado no streaming em janeiro deste ano após passar por festivais de cinema internacionais mirando o Oscar de 2024 para representar a Espanha, o que deu certo. Além da indicação de melhor filme internacional, a produção disputa ainda melhor cabelo e maquiagem.

Dirigido pelo cineasta espanhol J.A. Bayona (O Impossível), o filme retrata um dos acidentes aéreos mais famosos do mundo. Do Uruguai, o caso do voo 571 de 1972 chocou o planeta por sua história aparentemente impossível de sobrevivência no que ficou conhecido como “o milagre dos Andes”. O avião levava 45 passageiros de um time de rugby uruguaio em direção a Santiago, no Chile, quando caiu na congelada cordilheira dos Andes, fronteira montanhosa remota entre a Argentina e o Chile, por um erro de cálculo da pilotagem. 72 dias depois, 16 sobreviventes foram resgatados, contrariando o padrão de perda total em ocorrências como essas, principalmente diante das condições climáticas inóspitas do local e a demora no resgate.

Bayona aplica ao fato um esquema de roteiro sobre desastres que já utilizou em O Impossível (2012) quando ficcionalizou a luta pela sobrevivência de uma família durante o tsunami ocorrido na Tailândia em 2004. Neste novo filme, o diretor se apoia no trabalho minucioso do livro documental homônimo de Paulo Vierci, jornalista que era amigo dos sobreviventes. Assim como na obra inspiradora, o cineasta contou com o aval e participação dos sobreviventes na montagem da narrativa.

O resultado é uma retratação crua, angustiante, que busca recontar com bastante realismo o que de fato aconteceu nas montanhas ao longo dos 72 dias. A atenção aos detalhes impressiona: os atores escolhidos são todos uruguaios e os efeitos especiais reproduzem com exatidão o local da queda.

As cenas chocantes do decorrer do acidente, no choque da aeronave com a montanha, na perda das primeiras pessoas, contrariando uma cautela e a censura em recriar mortes geralmente tomada pelos filmes baseados em fatos, atam um nó na garganta. Este permanece ao longo do desenvolvimento da trama e só é desfeito ao final da exibição. É como se o telespectador também estivesse preso naqueles restos de fuselagem, diante do frio, da fome, da perda constante de pessoas amadas e na falta de esperança pelo resgate.

O nó da garganta desata. Porém, outros são atados na cabeça. O longa instiga reflexões que nos confrontam com noções éticas do que se entende por moral. Lidando diariamente com a possibilidade da morte, assistimos o grupo viver o inferno do que sempre parecia ser o último dia, além do frio, da fome e da urgente dependência humana de saná-la. A obra se chama “sociedade da neve” justamente pela necessidade dos sobreviventes em criar uma nova naquele ambiente inóspito. Para que isso acontecesse, tudo de conceito existencial da vida “normal” precisou se desfazer. Fé, concepções espirituais e a noção do divino são colocados em jogo quando as únicas alternativas existentes são a luta pela sobrevivência ou a entrega de si mesmo a uma morte que lhes flertava a todo instante. 

Sociedade da Neve.
Longa impressiona pela atenção aos detalhes. (Divulgação).

Neste sentido é onde o coletivo se concretiza como a única saída. Coletivo que inclui os vivos nas articulações para manter a vida, e os que se foram pelo mesmo propósito. Os sobreviventes precisarem se alimentar dos que se foram, certamente, julgaria-se como um embate moral, caso as condições fossem outras. Sem alternativa, ainda assim se mostrou um desafio precisar escolher entre o que a religião dita que é certo, e entre o necessário a ser feito. Além disso, considerar que essas pessoas eram amigos, familiares, torna tudo mais difícil e ao mesmo tempo traz a possibilidade de ressignificar o ato considerado desde a primeira menção abominável, já que sem esse recurso ninguém permaneceria vivo por tanto tempo. 

Um dos maiores trunfos de A Sociedade da Neve, além do cuidado com os cenários e o tratamento realista em todos os seus detalhes, é seu elenco. As atuações e a caracterização ao longo dos dias nas montanhas, torna tudo mais chocante e crível.

Ao serem resgatados, o trajeto dos sobreviventes é tratado pela mídia como um milagre. Entretanto, toda a jornada nas montanhas nos mostra o oposto. Milagres consistem na participação divina na vida humana. Ainda que a fé consista em crer em algo que não se vê, apenas se sinta, debaixo da neve não havia tanto o que sentir a não ser o frio, a fome, o desespero. Não havia um ser divino que respondesse às orações, não havia sinais de um poder maior. Havia cooperação, abnegação, entrega e resiliência. Talvez, A Sociedade da Neve venha nos provar que a humanidade, em casos extremos como esse, pode ressignificar a fé (e também o milagre).